Edição nº 570
Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 12 de agosto de 2013 a 18 de agosto de 2013 – ANO 2013 – Nº 570Literatura faz “Novo Jornalismo” reencontrar prestígio
Se você começou esta leitura, depois de ver o título aí de cima, tem algum interesse sobre o assunto. Este primeiro parágrafo deveria conter o “lead”, a notícia mais forte desta apuração e o que o faria continuar a ler. É o tipo de jornalismo com o qual você está acostumado. Tudo para conquistar sua atenção e garantir a tão apregoada objetividade jornalística. Peço licença para começar diferente desta vez, porque seria impossível falar de “Novo Jornalismo” ou de “Jornalismo Literário” sem mostrar este contraste técnico e que faz parte de uma série de grandes rupturas iniciadas nas redações de jornais e revistas a partir dos anos 60.
O herói desta história é um ser milenar em mutação. Ninguém sabe de onde ele veio, para onde irá e qual o limite de sua força. Todos, porém, reconhecem a dimensão do seu poder. O Jornalismo já viveu a fase dos grandes registros históricos da antiguidade, das fofocas, das notícias que suportavam o comércio entre povos, avançou aceleradamente com as novas tecnologias, com a imprensa, as máquinas da revolução industrial, com as guerras mundiais, com o rádio, a TV e a internet. O “superpoder” do Jornalismo advém de suas células, os “repórteres”, que o alimentam e o protegem de todo o tipo de ameaça em um mundo hostil. Num determinado período, como uma autodefesa diante dos efeitos “enfraquecedores” da cultura do “lead”, houve uma mutação inesperada: alguns repórteres do corpo do Jornalismo passaram a processar uma nova substância sintetizada a partir da literatura e que deu a ele um novo tipo de poder, revolucionando o modo de contar histórias e de apurar os fatos. O herói desta história, no caso, agora está devidamente apresentado a você: o Jornalismo.
O parágrafo que acaba de ler foi inspirado em uma das estruturas narrativas incorporadas pelo “Novo Jornalismo”, chamada pelo sociólogo norte-americano Joseph Campbell (1904-1987) de a “Jornada do Herói”. É o mesmo modelo que George Lucas seguiu na saga do filme “Guerra nas Estrelas” (Star Wars): o herói parte em uma jornada, passa por treinamento, enfrenta desafios, supera os inimigos, entre outras etapas, e retorna para ponto de origem, sua casa, pleno de poderes. “O jornalismo literário não é tão diferente assim da própria literatura. A diferença mais significativa é que enquanto na literatura percebemos um apagamento do autor, no jornalismo literário ele se revela muito importante, coloca-se em evidência”, afirma a jornalista, também formada em letras, Cyntia Belgini Andretta, autora da tese de doutorado “A ideia de literatura nos romances do novo jornalismo”, orientada pelo professor Antonio Alcir Bernárdez Pécora, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
Em seu trabalho, Cyntia passou por obras de quatro ícones do Jornalismo Literário americano (veja texto nesta página), analisando publicações desde a década de 50 até os anos 2000: Joseph Mitchell (“O Segredo de Joe Gould), Norman Mailer (“A Luta”), Gay Talese (“A Mulher do Próximo) e Tom Wolfe (“Ficar ou não Ficar”). Por dois anos, a professora de jornalismo literário da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC) “dissecou” essas obras para estudar a linguagem, o enredo, os personagens, a construção e o foco narrativo, entre outras particularidades. “Os autores lidam com personagens reais, com fatos reais, o que indica que não podem inventar e manipulá-los, como faz o autor de ficção. Mas isso não significa que os autores desse gênero não inventem um pouco também”, explica a pesquisadora, ao analisar os limites dos escritores, que se permitiam algumas liberdades como recriar de cabeça diálogos, ambientes etc, até mesmo de forma indireta, por meio do depoimento de outras testemunhas.
O “New Journalism” foi um fenômeno do jornalismo norte-americano que viveu seu auge de 1960 a 1980 e influenciou também o jornalismo e autores no Brasil. Era um movimento de contracultura, que questionou os padrões da época, segundo a pesquisadora.
O Jornalismo Literário não usa “lead”, mas sim uma abertura (parágrafos iniciais) diferenciada, e a estrutura do texto não segue o padrão do relato jornalístico, com a inclusão de diálogos, da intervenção do narrador. Além disso, a construção da narrativa imita modelos da literatura – por exemplo, o da citada “Jornada do Herói”, perceptível em “A Luta”, de Norman Mailer.
“Durante a década de 1960, os jornalistas tiveram seu momento de destaque ao descobrirem-se como contadores de história. A função de contar um fato noticioso já era o que definia a profissão, só faltava a aproximação com a literatura para que o fato relatado se tornasse, então, fato contado”, diz Cyntia, em seu trabalho. “A aproximação da literatura foi somente o primeiro passo, outros viriam. O uso de metáforas, metonímias e demais figuras de linguagem começaram a deslocar o discurso jornalístico para a função conotativa da arte literária.”
Na época em que o Jornalismo Literário nasceu, os repórteres tinham acesso a informações em primeira mão, contato direito com interessantes personagens e histórias reais, mas estavam limitados pela cultura do “lead”, que sistematizou e padronizou a linguagem nas redações. De acordo com a pesquisadora, alguns jornalistas viram na grande reportagem uma oportunidade para alcançar uma posição de prestígio, experimentada até então pelos romancistas, segundo a opinião de Tom Wolfe. “No começo dos anos 60, uma curiosa ideia nova, quente o bastante para inflamar o ego, começou a se insinuar nos estreitos limites da statusfera das reportagens especiais. Tinha um ar de descoberta. Essa descoberta, de início modesta, na verdade, reverencial, poderíamos dizer, era que talvez fosse possível escrever jornalismo para ser... lido como um romance. Nem mesmo os jornalistas pioneiros nessa direção duvidavam sequer por um momento de que o romancista era o artista literário dominante. Tudo o que pediam era o privilégio de se vestir como ele”, escreveu Wolfe.
Características do Jornalismo Literário:
Pesquisa etnográfica sempre
Entrevistas sempre
Narrador, autor e personagem secundário são os mesmos
Ponto de vista em primeira pessoa como personagem secundário
História já conhecida
Detalhes (até para status de vida do personagem)
Intensidade e densidade na mesma obra
Espaço: histórias urbanas
Tempo: contemporâneo
Personagens representativos de um grupo social. Particular que se universaliza.
Enredos trazem os bastidores da notícia, sempre um fato noticioso
Fonte: Tese de doutorado “A ideia de literatura nos romances do novo jornalismo”, de Cyntia Belgini Andretta/Instituto de Estudos da Linguagem/Unicamp
SAIBA MAIS
O segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell
Último livro publicado por Joseph Mitchell, que tinha carta branca para escrever o que quisesse e em quanto tempo quisesse pela revista The New York. Foi um dos primeiros repórteres a descrever histórias reais com técnicas de ficção. “Mesmo não escrevendo mais nada desde 1964, Mitchell continuou a receber salário até morrer em 1996, de câncer. Era famoso por escrever perfis e fez o primeiro texto no gênero sobre o famoso boêmio Joe Gould, ou Professor Gaivota (como era conhecido nos bares de Nova York), em 1942. Em 1964, recuperou a história e quis contar o que teria acontecido com o projeto a que Joe Gould, seu personagem, se dedicou: o livro das histórias orais.” “O primeiro perfil é mais otimista e pudera, pois conta com as revisões do próprio Joe Gould. O segundo perfil é escrito depois que Joe Gould morre e talvez por isso soe mais sincero.”
A luta,
de Norman Mailer
“Um livro para contar a história de uma única luta de boxe. Mas essa luta foi com os maiores boxeadores do século: Muhammad Ali e George Foreman, realizada no ano de 1974. A história tem como cenário o Zaire e todos os holofotes de Norman Mailer se voltam para o momento da luta, seus personagens, seus antecedentes, os temores e o contexto histórico da época. Ali vence e essa vitória é interpretada de modo complexo, como uma vitória do esporte para o cenário mundial, para os negros norte-americanos e para todos aqueles que, como ele, se recusaram a participar da Guerra do Vietnã, condenando esse episódio.” “O repórter Norman Mailer faz a cobertura desse evento esportivo e coloca em evidência a luta pela emancipação dos negros na década de 70 nos EUA. Ali é visto como o herói do livro, como também o próprio repórter se coloca como uma espécie de herói.”
A mulher do próximo,
de Gay Talese
O livro é resultado de nove anos de pesquisa e participação no movimento revolucionário sexual da década de 1960 e 1970, nos Estados Unidos. “A Guerra Fria e o modelo artificialmente criado do american way of life são colocados à baila na obra, pois o cenário dessas décadas era de uma revolução completa em vários sentidos, inclusive o sexual, embora o puritanismo anglo-saxão queira esconder até hoje. A mulher do próximo narra essa revolução em consonância com as demais, passa pelo movimento hippie e conta a história do editor Hugh Hefner, da revista Playboy. À primeira vista, parece um tema da subliteratura, mas apresenta análises contundentes de uma época, aproximando muito a obra ao realismo social.” O livro debate a liberdade sexual de uma era que antecede a descoberta da Aids. O próprio autor diz ter feito uma imersão no assunto e vive intensamente essa liberdade.
Ficar ou não ficar,
de Tom Wolfe
“Um livro de ensaio, com artigos produzidos em vários momentos da vida do autor. Conta-se, nessa obra, a história de personalidades que influenciaram o ambiente artístico, científico e religioso do século passado e que, contudo, são pouco conhecidos, quase considerados anônimos da sociedade contemporânea. Além disso, explora por meio de observação como é o comportamento dos jovens de modo geral nessa cultura contemporânea e finaliza tratando especificamente sobre a crítica de livros, mais especialmente, o autor pretende defender-se de acusações sobre seus textos escritos em estilo de jornalismo literário. Ao que se refere a esse estilo de Tom Wolfe, destaca-se a ironia, o processo de caricaturização de seus personagens, o deboche e também alguns trechos com intertexto.” A obra reúne assuntos relativos à década de 1990 e início dos anos 2000.
Fontes: Tese de doutorado “A ideia de literatura nos romances do novo jornalismo”, de Cyntia Belgini Andretta/Instituto de Estudos da Linguagem/Unicamp; entrevista com a autora
Publicação
Tese: “A ideia de literatura nos romances do novo jornalismo”
Autora: Cyntia Belgini Andretta
Orientador: Antonio Alcir Bernárdez Pécora
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)