Livro
explora
criação
coletiva de
rede social
16/01/2014 - 12:28
Os moradores do bairro Vila União, na cidade de Campinas, contam com uma rede social própria, o Vila na Rede, desenvolvido pelos próprios moradores, em parceria com pesquisadores da Unicamp e do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI), do governo federal, como parte do projeto e-Cidadania. Essa experiência de codesign – “um processo compartilhado de se fazer design, onde o designer atua como um facilitador. Boas ‘ideias’ podem vir de qualquer lugar ou qualquer pessoa”, como explica a pesquisadora Maria Cecília Baranauskas, do Instituto de Computação (IC) da Unicamp – é explorada a fundo no livro Codesign de Redes Digitais, do qual Baranauskas é uma das organizadoras. A obra foi lançada em 2013, como parte da celebração dos 30 anos do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied) da Unicamp, durante a Conferência Brasileira de Informática na Educação.
Dividido em 15 capítulos, escritos por 17 diferentes autores, o livro discute as bases teóricas da proposta, apresenta estudos de caso e olha para o futuro, apresentando e discutindo tendências em sistemas inclusivos. “Dentre os pesquisadores, vários desenvolviam na época teses de doutorado ligadas ao tema do projeto”, disse Baranauskas. Além dela, são também organizadores do livro Maria Cecília Martins, do Nied, e José Armando Valente, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp.
“Na narrativa que este livro ofereceu, ao longo de cada capítulo, ‘usuário’ não é mais o termo apropriado” para se referir à pessoa que interage com o sistema de informática, disse a pesquisadora. A partir da experiência de codesign, o participante traz “sua vida inteira para a situação, sua cultura, emoção, experiência”.
Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista concedida, via e-mail, por Maria Cecília Baranauskas ao Portal Unicamp:
O que foi o projeto e-Cidadania?
“e-Cidadania: Sistemas e Métodos na Constituição de uma Cultura Mediada por Tecnologia de Informação e Comunicação”, foi um projeto de Pesquisa desenvolvido entre 2007 e 2010. O projeto foi apoiado pelo Instituto Virtual Fapesp-Microsoft Research, selecionado no 1º. Edital desse Instituto, que reconhecia que “as possibilidades engendradas pelo avanço da computação e da tecnologia de informação precisam e podem ser estendidas além da base de usuários tradicionais para serem acessíveis a pessoas que, até agora, não têm acesso a essas tecnologias” e que “o acesso à conectividade digital é cada vez mais crítico para o progresso econômico, educacional e social.” O objetivo dessa linha de financiamento foi criar novos conhecimentos que contribuíssem para expandir as capacidades da tecnologia de computação para atender mais e melhor os desafios sociais e econômicos de comunidades desfavorecidas, rurais e urbanas.
O projeto foi motivado por um dos cinco Grandes Desafios da Computação no Brasil 2006-2016, lançado pela Sociedade Brasileira de Computação (SBC): o “Acesso Participativo e Universal do Cidadão Brasileiro ao Conhecimento”. Mas, como pensar o acesso ao conhecimento a todo cidadão brasileiro? Podemos considerar diferentes perspectivas: conceitual, buscando fundamentos em abordagens inclusivas para tecnologias da informação e comunicação; metodológica, buscando novos modelos de processos de design e desenvolvimento de software, e pensando as interfaces dos sistemas segundo uma visão sociotécnica; e de formação de nossos profissionais, repensando o currículo de forma alinhada às necessidades que essa realidade nos coloca. No e-Cidadania, buscamos dar algumas respostas a esse desafio, investigando a relação que as pessoas estabelecem nas suas comunidades informais, organizadas em torno de algum interesse especial, com o uso de artefatos da sociedade, incluindo a tecnologia.
Qual a população assistida?
Dentro da concepção do projeto, para “codesign de sistemas inclusivos” não se fala em população “assistida”, mas sim “parceira” no processo de (co)criação. A adesão da Secretaria de Cidadania da Prefeitura de Campinas possibilitou o trabalho com pessoas e associações da comunidade da Vila União, em Campinas, SP, ao longo de todo o desenvolvimento do projeto; não como “assistidos”, mas de fato como “parceiros”.
Em termos gerais, o projeto visou estudar e propor soluções para os desafios de interação e design de interface de usuário para sistemas no contexto do exercício da cidadania. Para alcançar este objetivo, a equipe desenvolveu ações conjuntas com a instituição parceira para conduzir o processo de investigação e de design de um sistema de rede social inclusiva – o Vila na Rede.
A tarefa principal do livro é descrever a experiência do e-Cidadania?
Não exatamente. A tarefa principal do livro é mostrar uma maneira de fazer “codesign” de sistemas interativos inclusivos. O projeto e-Cidadania serviu para concretizar e materializar esse propósito.
Entendemos que a e-Cidadania pressupõe capacitar as pessoas para que se percebam como cidadãos, através do uso de sistemas que sejam perceptíveis, operáveis, inteligíveis e façam sentido para elas. O livro trata da criação de sistemas computacionais que estejam ao alcance de pessoas comuns, especialmente aquelas não familiarizadas com as TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação); ou seja, a grande maioria da população brasileira. Falta de familiaridade com as TIC não seria um problema tão difícil, se não estivéssemos trabalhando em um cenário real de analfabetismo funcional e dos poucos anos de escola a que essas pessoas estiveram expostas.
Codesign é um processo compartilhado de se fazer design, onde o designer atua como um facilitador. Boas “ideias” podem vir de qualquer lugar ou qualquer pessoa, mas como uma ideia é traduzida e articulada estrategicamente, de forma criativa e holística, é fundamental para garantir resultados de co-criação que não sejam a junção desconexa de contribuições dos participantes. Codesign como construção conjunta é um processo ativo; é principalmente sobre como fazer, escutando, aprendendo e comunicando; tudo em um processo; codesign tem o potencial de promover mudanças uma vez que é um fazer com, não fazer para; nesse sentido aproxima-se do conceito de Design Participativo (DP).
Qual o envolvimento seu, e dos demais autores, no projeto?
Eu coordenei o projeto e-Cidadania e sou uma das organizadoras do livro, juntamente com os colegas Maria Cecília Martins, do Nied e José Armando Valente, do IA. Por sua natureza genuinamente interdisciplinar e sóciotecnica, o Projeto envolveu pesquisadores de várias unidades internas e externas à Unicamp. Além do Instituto de Computação (IC), unidade na qual sou docente, e do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied), participaram do projeto pesquisadores do Instituto de Artes (IA), da Faculdade de Tecnologia (FT) da Unicamp e pesquisadores do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI).
Como as populações parceiras participaram?
As atividades do projeto e-Cidadania foram hospedadas em uma espécie de “Telecentro”, na Vila União: um espaço físico onde ocorrem várias iniciativas da comunidade para a inclusão digital, associadas aos governos federais e locais; Casa Brasil, Centro de Referência da Juventude (CRJ) e Jovem.com são alguns exemplos dessas iniciativas.
Alguns dos membros da rede social offline (moradores, trabalhadores ou representantes da comunidade) foram convidados a compor um grupo para atuar no projeto e-Cidadania. Esse grupo participou ativamente de 11 Oficinas Semio-participativas do projeto, contribuindo com suas experiências, opiniões e visões de mundo. A representação de líderes da comunidade no grupo trouxe os elementos essenciais de redes sociais que nos interessavam, especialmente considerando o objetivo de criação de um sistema de rede social inclusiva. Eles, de certa maneira, possuíam autoridade para representar as habilidades e dificuldades presentes na comunidade.
No e-Cidadania, atividades de design e de desenvolvimento de sistemas de software eram articuladas em torno das Oficinas Semio-participativas que, ora punham em primeiro plano o foco no design do sistema, ora o design era fundo para atividades de desenvolvimento de software e de seu uso. Esse movimento era ritmado pelas necessidades do projeto, de conhecer mais da realidade cotidiana e da percepção dos participantes, sobre a maneira como aos poucos iam fazendo sentido para as funcionalidades e elementos de representação do sistema que ajudaram a conceber e passaram a utilizar. Participaram das oficinas, além dos membros da comunidade da Vila União, pesquisadores, desenvolvedores, e outros parceiros convidados, constituindo em média um grupo de 25 a 30 pessoas.
O projeto envolveu o design de interfaces específicas para os excluídos digitais. Essas interfaces eram sistemas específicos, fechados em si, ou vias de acesso para facilitar a interação com os sistemas e redes comerciais?
O objeto de criação e reflexão, e também um dos subprodutos do Projeto, é o Vila na Rede, o sistema de rede social inclusiva “codesigned” pelas partes interessadas ao longo do projeto.
A pesquisa subjacente ao projeto e-Cidadania investigou e propôs modelos de interação e interfaces para a diversidade de usuários e de competências que incluem o cenário das pessoas digitalmente pouco letradas em nossa sociedade. Não se trata de criação de interfaces específicas para os excluídos digitais, mas da criação de recursos de interface que fizessem sentido para eles e que pudessem favorecer o seu “letramento digital”, servir de “via de acesso”, ou promover o uso dos demais sistemas digitais que qualquer pessoa utiliza hoje na Web.
Diferentemente das soluções que outros países em desenvolvimento têm adotado para o acesso de analfabetos às informações digitalizadas, procuramos soluções sob os princípios do Design para Todos: O design de produtos e ambientes para serem utilizados por todas as pessoas, na maior extensão possível, sem a necessidade de adaptação ou design especializado. Em nossa leitura, isto significa que as soluções não devem discriminar os menos capazes. Além disso, as soluções de design devem promover a sua aprendizagem e, potencialmente, permitir uma melhoria geral na sua condição de acesso ao conhecimento e à tecnologia em suas vidas.
Em princípio, toda interface digital é criada com o objetivo de ser "amigável" para o usuário. Quais os desafios que distinguem a criação de uma interface para excluídos digitais de uma interface comum?
Depende de quem é o “usuário” e como se define o “amigável”... A expressão “amigável” [friendly] tem sido associada ao conceito de “usabilidade”, que é definido, pela International Organization for Standardization (ISO), como “A medida em que um produto pode ser usado por usuários específicos para alcançar objetivos específicos com efetividade, eficiência e satisfação em um contexto de uso especificado.”
Note que, nessa definição, tudo é específico: o conjunto de usuários, os objetivos que eles devem alcançar com o uso do sistema e, também, o contexto de uso. Essa definição e conceito já não se adaptam bem quando pensamos, por exemplo, no contexto de e-Cidadania, e-Gov, onde o perfil dos usuários de uma população não é homogêneo – basta ver a diversidade que temos na população brasileira – e o sistema deve ser “para todos”...
Métodos para o design de sistemas interativos têm sido tradicionalmente criados sob um paradigma conservador, que considera uma realidade objetiva a ser descoberta, modelada e representada no software. No livro, discutimos a mudança de uma perspectiva racionalista para a inclusão de aspectos interpretativos, sociais e comunicativos no design de sistemas interativos. Assumindo uma postura subjetivista que reconhece o caráter situacional do design, o livro apresenta o Modelo Semio-participativo de Design, suas bases epistemológicas, e a forma como foi vivenciado no projeto e-Cidadania.
As propostas de solução foram arquitetadas em práticas participativas com as partes interessadas, sustentadas por um referencial construído a partir da Semiótica Organizacional (SO) e da Interação Humano-Computador (IHC). A área de IHC tem um papel especial por introduzir o ponto de vista da centralidade humana no design de sistemas interativos. Esta posição não é tomada apenas para a otimização da qualidade da interação, ou da “amigabilidade”/”usabilidade”, mas principalmente para desenvolvimento explícito de abordagens que deem conta de buscar e representar, nos sistemas, elementos que façam sentido na sociedade em que se situam tais sistemas.
Por que a exclusão digital é um problema?
A sociedade contemporânea caracteriza-se pelo conhecimento mediado pela tecnologia digital de informação e comunicação. A quantidade de informação disponível digitalmente cresce todos os dias, e os meios para difundir esse conhecimento estão disponíveis através de artefatos tecnológicos que a sociedade cria. No entanto, nem todos são capazes de acessá-lo. Alguns dizem que as barreiras de acesso ao conhecimento não têm natureza tecnológica, e sim social e econômica.
De fato, barreiras ao acesso ao conhecimento no mundo contemporâneo passam por vários tipos de analfabetismo (literal, funcional, digital) presentes em regiões sócio-economicamente desfavorecidas, uma realidade que muitos países em desenvolvimento enfrentam, especialmente o nosso. Entretanto, assumir que os impedimentos são de natureza social e econômica é assumir uma visão simplista para o problema, e não nos exime da responsabilidade de criar tecnologia que ajude a reverter esse quadro... Não existe neutralidade na tecnologia: a falta de acesso a ela aumenta o fosso entre os que podem mais e os que podem menos fazer uso do conhecimento veiculado por ela.
O que será feito com a experiência adquirida no e-Cidadania?
O livro mostra que é possível promover o acesso participativo e universal das pessoas ao conhecimento, como propõe o Desafio de Pesquisa 4 da Sociedade Brasileira de Computação, com uma abordagem socialmente responsável para o design de tecnologia. O livro mostra como se constrói sistemas que são inclusivos: sistemas que não excluam pessoas com pouca experiência no uso de TICs e tampouco os “nativos digitais”.
O livro aborda tópicos teóricos, assim como práticos, mostrando como um sistema pode ser construído de maneira inclusiva e participativa, considerando todas as fases da construção, desde a concepção até o uso contínuo, que moldará o sistema de modos que nem se imaginavam no início. Utilizando o Vila na Rede como exemplo recorrente, o livro indica que o que foi proposto é factível e viável.
Na maneira como o humano e o artificial, o social e o técnico, o processo e o produto, o diverso e o particular, coabitam nas contribuições do livro, há subjacente nossa “perspectiva sócio-situada” para entender e desenhar a interação com tecnologia como uma forma de construção de sentido.
Na narrativa que este livro oferece, ao longo de cada capítulo, “usuário” não é mais o termo apropriado para referência ao sujeito, que deixou o papel de sujeito da observação da interação com o produto da tecnologia, para participar no codesign de uma rede social inclusiva, trazendo sua vida inteira para a situação, sua cultura, emoção, experiência.
Na complexidade dos cenários apresentados, também os pesquisadores, designers e outras “partes interessadas” misturaram-se na multiplicidade de contextos e fronteiras, na aventura de construir conhecimento em design de tecnologia para todos. Esse conhecimento tem sido apropriado e contextualizado em novas práticas e novos projetos.
Em pouco mais de dois anos, o projeto e-Cidadania gerou inúmeras publicações em jornais e conferências nacionais e internacionais, formou pesquisadores em diversas áreas e criou oportunidades para que comunidades pudessem fazer sentido e incorporar o uso da tecnologia como parte da sua cultura.