Médicos defendem humanização
na relação com os pacientes
17/10/2014 - 15:30
O Fórum Construindo Vidas Despatologizadas foi encerrado nesta sexta-feira (17), na Unicamp, com as palestras de dois médicos uruguaios que discutiram a humanização da relação entre paciente e médico e a medicalização e o consumismo na sociedade contemporânea. Ao longo de quatro dias, cerca de 20 especialistas de diversas áreas do Brasil, Argentina e Uruguai se debruçaram sobre o tema despatologização no Centro de Convenções.
São indiscutíveis os progressos alcançados no campo médico nas últimas décadas, no entanto, é necessário estar alerta para os novos e inéditos desafios que esse progresso científico oferece, defendeu o psiquiatra uruguaio Marcelo Viñar, autor do livro Exílio e Tortura. Segundo ele, é necessário rever a assimetria do ato médico, em que um dos sujeitos "sabe, prescreve e atua" e o outro "é o que sofre, que teme e que põe seu corpo". Para ele, deve-se estabelecer uma relação de cumplicidade entre médico e paciente, buscando a empatia em uma "reciprocidade horizontal", para que o último possa se sentir coautor do tratamento a que está sendo submetido.
"A racionalidade da tecnologia funciona como um escudo ante as emoções, os temores e angústias", criticou o médico, referindo-se ao uso excessivo de tecnologias médicas em detrimento do contato humano. Viñar afirmou que a soberba de seus colegas da classe médica sempre causou nele uma "irritação inenarrável".
Há cerca de 50 anos, o psicanalista fez parte de um grupo uruguaios que propôs modificações na abordagem do médico com o paciente, por meio de uma experiência que contemplava a realização de esboços biográficos dos pacientes a partir de entrevistas feitas pelos alunos de medicina. O resultado, visto inicialmente com reticências pelos professores, foi posteriormente muito elogiado por permitir melhores históricos clínicos, anamneses e exames clínicos. A iniciativa, entretanto, foi abortada com a ditadura militar uruguaia, que durou de 1973 a 1985.
Viñar criticou o fato de os pacientes hoje serem considerados meros clientes ou usuários em um contexto empresarial da saúde, devido à influência do marketing no setor. "Considero grande a importância desse fórum pelo debate sobre a exclusão da humanidade na medicina", afirmou, "o que exige uma pausa reflexiva para se pensar os efeitos colaterais desse progresso científico", concluiu Viñar.
Para o médico e professor uruguaio Alvaro Díaz Berenguer, "a medicalização é um processo que se autoalimenta e cresce". Díaz Berenguer define a medicalização como "um processo antropológico que determina o que é mau e o que não é". Ele destaca que esse fenômeno se ampara nos valores da sociedade de consumo, onde a paisagem cotidiana é composta por imagens de marketing e em que muitas das necessidades humanas são induzidas.
"A saúde é agora um bem de consumo", constata o médico e professor uruguaio, autor do livro Medicina Desalmada. Em sua palestra, ele apontou que, no exercício da medicina, sistematicamente os profissionais têm ignorado o dom de se escutar o paciente. Para isso, concluiu Díaz Berenguer, é preciso dispor de tempo, algo que a vida moderna e a desumanização da medicina não têm permitido.
Direitos humanos e violência na infância
No terceiro dia do evento, na quinta-feira (16), os debates abordaram a genética como aliada nos direitos humanos e o problema da violência contra crianças e adolescentes, entre outros assuntos.
Apesar do crescente aumento no consumo de medicações, pouco tem se discutido sobre seus efeitos colaterais. A psicanalista Luci Pfeiffer, coordenadora da Associação DEDICA (Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), de Curitiba, discutiu a alta incidência de agressões físicas e psicológicas em crianças e apresentou vários casos alarmantes relacionados ao uso de medicamentos. Luci classifica como "violência química" os casos em que drogas são usadas para inibir reações próprias da natureza da criança.
Para ela, a administração desses medicamentos tem a função de complementar muitas vezes uma situação de violência física ou sexual, que leva a criança a ser silenciada e invisibilizada. A droga, assim, é usada para anestesiar a vida de sofrimento. Luci Pfeiffer também criticou o conceito de déficit de atenção nas crianças e adolescentes, já que o que ocorre é um "deslocamento de atenção", de atividades indesejadas para atividades mais interessantes. A psicanalista apontou a necessidade de se ouvir a criança e analisar seu contexto familiar, em vez de se impor um comportamento uniforme.
Genética e publicidade
O risco do determinismo genético, que em outras décadas levou a movimentos pseudocientíficos como a eugenia, foi um dos temas tratados pelo argentino Victor Penchaszadeh. O geneticista e docente de Genética, Saúde Pública e Bioética da Universidad Nacional de La Matanza diz que não se pode separar a contribuição do ambiente e dos genes na definição das características humanas. No entanto, há um movimento na indústria médica reduzindo a conduta humana a explicações exclusivamente genéticas. Penchaszadeh critica a indústria farmacêutica, responsável pela "criação" de doenças, cujos ensaios clínicos são terceirizados em países em desenvolvimento, onde custo e fiscalização são menores.
O alto consumo de remédios está ligado também à publicidade, que amplia o poder dessas pseudo-soluções. O pediatra Daniel Becker criticou a mercantilização da saúde promovida pela indústria farmacêutica. Entre os casos de remédios prescritos para pessoas saudáveis, ele citou as estatinas, que apenas diminuem o valor do colesterol, mas não melhoram a saúde cardiovascular, que é composta de outras variáveis. O paciente geralmente se coloca como sujeito passivo das doenças e transfere a responsabilidade ao médico, que a usa de forma opressiva, promovendo o consumo desnecessário de medicações, alertou Becker.
Nesse cenário, a psicóloga Carla Biancha Angelucci, professora da Faculdade de Educação da USP, afirma que não existe relação entre sujeitos quando o médico vê o paciente como objeto, pois, nesse momento, ele também se torna objeto. A prática da desumanização no meio médico é estimulada pela busca da eficiência, destaca Biancha, enquanto a verdadeira solução para o problema do paciente se encontra em uma saída criada em conjunto com o médico.
Ligia Moreiras Sena, autora do blog "Cientista que virou mãe", cujo conteúdo é voltado para ajudar mães no desafio da criação dos filhos, abordou a necessidade de uma rede de cuidados despatologizantes. No seu trabalho de interação pelas redes sociais, ela afirma que muitas vezes os internautas sugerem soluções medicalizantes para situações corriqueiras, em que a criança se comporta apenas como uma criança. Ao longo de sua experiência acadêmica e de interação com as mães, ela concluiu que a solução do cenário da patologização só pode ser superado por meio de fatores como o empoderamento, a autoestima, a autonomia e a informação.
Veja aqui como foram os dois primeiros dias do evento
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