Edição nº 630
Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 29 de junho de 2015 a 02 de agosto de 2015 – ANO 2015 – Nº 630Unicamp passa a ter o maior acervo de Grassmann
Gravuras foram doadas pela professora Lygia Eluf, que coordena pesquisa sobre o artistaA Unicamp será detentora do maior acervo, disponibilizado para o olhar público em todo o mundo, de gravuras de Marcello Grassmann (1925-2013), um dos principais artistas gráficos brasileiros. As obras, que foram adquiridas com financiamento Fapesp, para fundamentar a pesquisa da professora Lygia Arcuri Eluf, do Instituto de Artes (IA), foram doadas pela docente à Biblioteca Central Cesar Lattes (BCCL) e estão em processo de incorporação à seção de Coleções Especiais e Obras Raras. Trata-se de três grandes caixas azuis contendo 220 gravuras em metal, especialidade de Grassmann, relacionadas a mais de meio século de produção artística.
A coleção é uma entre oito edições das obras, feitas a pedido do colecionador de arte de São Paulo Pedro Hiller, proprietário das matrizes. “O Marcello nunca fez edição, a não ser que alguém encomendasse. Você encontra algumas dessas imagens por aí. O Hiller pegou todas as matrizes e fez oito conjuntos nomeados para Marcello, a família e alguns amigos. Só essas pessoas têm esse acervo, além da Unicamp”, ressalta a pesquisadora. Também há gravuras em metal do artista na Pinacoteca do Estado de São Paulo, mas em número menor. Marcello Grassmann, paulista de São Simão, é tido por muitos críticos como o maior gravador brasileiro, e suas obras estão em acervos dos melhores museus do mundo.
Lygia fala de Marcello, assim mesmo, chamando o artista apenas pelo primeiro nome, com muita intimidade. E não é para menos. A professora, também artista gráfica e criadora do Centro de Pesquisa em Gravura do IA da Unicamp, conviveu com Grassmann, de quem era muito amiga, o que a fez conhecer em profundidade as obras. Ele morava em um apartamento em São Paulo e, perto da morte, teve até mesmo dificuldades financeiras, diz Lygia, por conta da absoluta falta de tino comercial. “O Marcello não tinha nenhuma preocupação em vender, ele não sabia fazer isso”.
Ademais, as gravuras de Grassmann nem sempre encontravam aceitação. Talvez, observa a docente, não coubessem na parede as figuras sombrias, seres mitológicos, cavaleiros em armaduras, animais estranhos e toda uma escuridão que é parte do universo do artista. “Lygia, vamos escolher as obras mais ‘palatáveis’ para a exposição?”, ele perguntava, quando recebia um convite. “Marcello, nada do que você faz é palatável, é tudo sombrio, tudo de dar medo”, a amiga respondia. “E ele dava risada”, relembra a professora.
Não é comum olhar para a morte, sobretudo com doçura e humor. Para Lygia, Grassmann era de uma “linhagem” de artistas que tem um jeito peculiar de ver o mundo. “Nos ensinam a história da arte cronologicamente e não por universos semelhantes. Mas existem pessoas durante todas as épocas que pensam igual. Acredito que o Marcello pensava como determinados artistas que o influenciaram, como o Kubin (Alfred Kubin, 1877–1959, Áustria), Bosch (Hieronymus Bosch, 1474-1516, Holanda), o Dürer (Albrecht Dürer, alemão, 1471-1528). Essa turma pensava assim, tem um modo de olhar o mundo semelhante, não importa se foi na Idade Média, se foi no começo do século 20, ou se foi o Grassmann que morreu há dois anos e tratava a morte com escárnio.”.
Lygia conta que o artista tinha um grande acervo de imagens na memória, que ele acionava toda vez que começava um trabalho. A busca dessas referências moveu a viajar recentemente para Viena para refazer alguns passos de Grassmann. Na década de 1950, ele viajou para a Itália e Áustria com o dinheiro que recebeu do primeiro lugar obtido no 1º Salão Nacional de Arte Moderna. Passou longo período estudando as obras do Gabinete de Estampas da Academia Albertina. Em um mês de imersão nas mesmas obras, como parte da pesquisa, Lygia começou a descortinar a biblioteca interna de imagens do gravurista.
“Influenciado pelo Goeldi (Oswaldo Goeldi, 1895- 1961, Brasil) que tinha uma correspondência com o Kubin, o Marcello foi terminar a formação dele em Viena e tentar um contato com o artista austríaco. Fiquei um mês ‘olhando’ os artistas que influenciaram o Marcello, sobre os quais ele falava muito. Queria saber o que impressionou tanto o jovem Grassmann e o que tornou esse trabalho dele tão especial”. Lygia encontrou semelhanças entre as obras de Grassmann e trabalhos de Bosch, Bruegel (Pieter Bruegel 1525-1569, Bélgica) e Albrecht Dürer. O mais impressionante, no entanto, foi a relação direta de um trabalho de Marcello com uma gravura de Kubin, que são muito parecidas.
A pesquisadora afirma que o senso de humor, “aquela ironia fina do Marcello”, vem desses artistas. “Aquele tipo de simbologia que eles usavam na Idade Média, que para eles era uma coisa completamente diferente do que a gente vê hoje, o Marcello olhou aquilo com olhos contemporâneos. Ele trouxe aquela simbologia transformada”.
Reconstituir o arquivo de imagens da memória de Marcello Grassmann é um ideal para Lygia que, com a doação do acervo para a Unicamp, pretende dar início, ou “lançar a pedra fundamental”, para a criação de um gabinete de estampas na BCCL, incluindo obras do Centro de Pesquisa em Gravura do IA. “Perceber que essa visão de mundo é especial é entender o Marcello, esse universo, eu acho que mais do que definir as coisas. Vamos tentar desvendar um pouco desse universo sombrio e sarcástico, interessante e inteligente e torcer para que muita gente possa usufruir disso”.
As gravuras foram digitalizadas pelas alunas de pós-graduação do IA Angie Niño e Mariângela Guelta, esta fã confessa de Grassmann. “Quando eu era adolescente e visitava exposições em que tivesse um Grassmann, eu parava ali, a exposição acabava para mim. Nunca poderia imaginar que um dia eu estaria de cara com esse material que eu amo tanto”.
PESQUISA
Com vigência até maio de 2016, o projeto de pesquisa “Coleção Gráfica: Marcello Grassmann”, de Lygia Eluf, propõe uma investigação na área de procedimentos técnicos tradicionais da gravura em metal na coleção de 220 obras. O trabalho foi dividido em duas etapas. A primeira delas é a realização de um memorial descritivo inventariando as técnicas e variações utilizadas por Grassmann. A segunda etapa prevê uma análise da obra do artista, “considerando como o uso e o desenvolvimento pessoal dessas técnicas permitiu a criação de uma obra com características únicas, que pode ser inserida dentro da produção de ponta da gravura brasileira contemporânea por suas características de extrema qualidade”.
A professora exemplifica. Com uma lupa pede uma observação mais atenta para as linhas em duas gravuras do artista. Cerca de quinze anos separam as duas peças. “Nas obras mais antigas, se você olhar a gravura de perto, vai ver linhas muito limpas, secas, a construção da imagem era muito rigorosa. As linhas tinham um caráter mais duro, elas funcionavam fazendo sombras e luzes muito determinadas. Trata-se de uma consequência da técnica de água-forte e do buril que ferem o metal na gravação da placa. O Marcello, com o tempo, foi transgredindo, modificando as técnicas tradicionais da gravura”.
Observando a outra gravura, mais recente, esta feita com outro tipo de técnica, Lygia comenta que as linhas se aproximam muito mais de um desenho, “são mais soltas, tem mais fluidez. Isso é decorrência de uma experimentação que ele fez para gravar a mesma coisa, mas com mais liberdade de ação da mão que não ficasse tão condicionado à técnica tradicional”. Nas palavras da docente, a pesquisa tenta demonstrar como os procedimentos técnicos são capazes de alterar a poética do artista.
“O universo dele é o mesmo. As figuras da morte, do cavaleiro, da donzela, gente, bicho tudo meio grotesco. Essas figuras não mudam, mas vão ficando mais engraçadas e mais expressivas. É um artista único”.
Lygia narra um episódio que ilustra bem o seu interesse pelo trabalho de Grassmann. Ainda na faculdade, ela passeava pela rua Augusta e entrou em uma galeria em liquidação, prestes a fechar as portas. Viu “em um canto” uma gravura do artista, enquadrada, a figura de um cavaleiro e seu cavalo. Com dificuldade de pagar, ainda assim ela comprou a obra e a levou para casa, onde ficou por muitos anos até um dia em que um colecionador foi até sua casa para adquirir trabalhos da própria Lygia. Ocorre que o comprador acabou se entusiasmando e convenceu a professora a vender para ele a gravura de Grassmann. “Fiquei muito arrependida e tentei desfazer o negócio, mas não teve jeito”. Na ocasião da compra do acervo que doou para a Unicamp, Lygia recebeu um presente, de um sobrinho do artista: a gravura do cavaleiro foi retomada.
Lygia era jovem quando conheceu Marcello Grassmann e, em meados dos anos 2000, passou a ficar muito próxima do artista. “Quando a gente começava a conversar, ele já na cama, sem conseguir andar, me pedia para eu pegar um livro e mostrava alguma coisa. Ele sempre fez isso e quase morrendo fazia a mesma coisa. ‘Tá vendo isso aqui? Eu ainda vou fazer isso’, ele dizia. Era uma imagem do Dürer, um desenho muito solto, muito bonito”.
Exposição vai reunir 15 obras Uma exposição de quinze gravuras do acervo de Marcelo Grassmann doado à Unicamp será aberta no dia 2 de julho no andar térreo da Biblioteca Central César Lattes (BCCL) da Unicamp. A mostra teve a inédita curadoria das funcionárias da BCCL, a diretora Tereza de Carvalho, a bibliotecária Isabella Nascimento Pereira e a técnica em biblioteconomia Fernanda Festa Mira. Elas fizeram uma primeira seleção das obras e depois foram ajudadas pela professora Lygia Eluf. Foram escolhidas gravuras de diferentes períodos, inclusive a primeira em metal feita pelo artista, que utilizou a técnica de ponta seca, que é a gravação direta na placa. “Não era a técnica preferida do Marcello, mas tenho certeza absoluta que algumas obras nunca foram expostas, inclusive esta primeira gravura”, comenta a docente. O artista que “aparece” na exposição é alguém muito próximo do que Marcelo Grassmann foi de verdade, acrescenta a professora, “alguém muito aberto, transparente e embora haja essa primeira impressão de um universo sombrio, era um homem de extrema doçura e de uma generosidade que poucos reconhecem”. Para as funcionárias foi uma experiência singular. “Nem tudo o que escolhemos são coisas que nos agradam no gosto pessoal, isso é uma experiência interessante. É engraçado porque a primeira impressão de um trabalho muito sombrio foi se desfazendo. Selecionar as gravuras me aproximou dele, de uma pessoa que não conheço”, afirma Isabella. Ainda no dia 2, a partir das 15 horas, no auditório da BCCL, haverá um colóquio que reunirá o impressor Roberto Grassmann, irmão do gravador, a gravadora e ex-mulher do artista Zizi Batista, o crítico e professor Leon Kossovitch, o artista plástico Nori Figueiredo e o historiador da arte Denis Molino. |