Realizar um intercâmbio técnico no exterior pode ser uma ótima oportunidade para um servidor técnico-administrativo aprimorar o seu trabalho, trazendo ganhos tanto à universidade com o conhecimento cientifico aprimorado para ele por conta da bagagem cultural adquirida. Mas no caso de João Pereira de Góes Filho a realização de um estágio internacional acabou sendo uma oportunidade de presenciar in loco um momento único do século XX, ao conhecer o modo de vida da antiga Alemanha Oriental, pouco antes do início do processo de reunificação com a República Federal. E as memórias de sua estadia dentro da 'Cortina de Ferro',  um ano antes da queda do muro de Berlim, foram publicadas no livro Reise in die DDR (Viagem à RDA), lançado em agosto na Alemanha.

Funcionário do Laboratório de Física Experimental Básica, do Instituto de Física Gleb Wataghin, João Góes trabalha na Unicamp desde 1979, ao ingressar como técnico de nível médio, chegando tempos depois a ir trabalhar no Laboratório de Recuperação de Lasers. A necessidade de atuar com equipamentos de origem alemã na Universidade, no começo da década de 1980, o levou a estudar o idioma em uma escola de Campinas por incentivo do seu então chefe, o professor Artemio Scalabrin. E o conhecimento do idioma e dos equipamentos acabou levando à possibilidade de realizar um intercâmbio na Alemanha Oriental em 1988, por conta do programa bilateral conhecido como Acordo do Café, entre o país europeu e o governo brasileiro.

Os sete meses em que passou na cidade de Jena, em estágio na fábrica Carl Zeiss e na Universidade Friedrich-Schiller, teve contato com uma realidade diferente do que imaginava, ao ter tido apenas contato prévio com informações culturais da Alemanha Ocidental, e com o modo de vida dos moradores do leste que aos poucos foram alterados com a queda do Muro de Berlim e a implementação da Unidade Alemã, em 1990. Manteve um diário durante sua estadia na Alemanha Oriental, onde relatava o seu dia-dia e suas impressões de uma realidade que não era conhecida nem dos alemães que moravam no Ocidente, a algumas centenas de quilômetros de distância.

Além de suas anotações, João Góes também realizou registro fotográfico da cidade de Jena e em viagens trem pelo país, além de manter o hábito de colecionar os rótulos dos produtos que comprava, preservando hoje a memória de produtos que não existem mais e de um peculiar modo de controle de preços da época. "Eu comprava um queijo ou um refrigerante, tirava o rótulo e guardava, pois vinha o preço do produto, que era tabelado para sempre. Talheres eram vendidos com o preço já fundido no cabo", relembra. Outra coisa que chamou sua atenção foi a receptividade da população e a solidariedade das pessoas da comunidade. “O regime praticamente fez as pessoas se aproximarem. Se a pessoa tivesse um problema no telhado, tinha que entrar numa fila para que o Estado fizesse o conserto, um processo demorado. Então as pessoas se juntavam no final de semana, faziam um churrasco e consertavam o telhado do vizinho. Outros vizinhos se juntavam para fazer consertos dos carros”.

Mas o clima amigável da população em muitos momentos não escondia o medo por estarem vivendo sob um ambiente opressivo da ditadura, em especial de alguém por alguma opinião dissidente ser denunciado à Stasi, a polícia secreta do regime. “Durante uma visita à casa de um colega, de repente ele começou a falar a opinião dele sobre o governo e a esposa ficou extremamente preocupada. Ela tinha medo de algum vizinho escutar”, relata. João Góes voltou para Jena em 1996, onde teve contato com algumas das pessoas que conheceu na década passada e presenciou as mudanças econômicas e sociais decorrente do processo de unificação entre as duas repúblicas. 

Escrito ao longo de quase dois anos em alemão, o livro Reise in die DDR dialoga com um site produzido como trabalho de conclusão de curso da especialização em jornalismo científico que João Goes realizou no Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp em 2012, onde colocou parte dos relatos de sua viagem à Alemanha Oriental e do material iconográfico levantado durante sua estadia naquele país. O desejo em escrever seu livro de memórias desta viagem surgiu ao ajudar pela internet uma amiga alemã da família que estava aprendendo português, e ela acabou incentivando e colaborando na busca por uma editora que se interessasse pelo material. Mas a primeira experiência em publicar parte das histórias desta viagem já havia ocorrido em 2008, quando João Góes teve uma carta relatando um episódio de racismo presenciado próximo ao Muro de Berlim publicado no livro Racismo: São Paulo Fala!",  editado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.

Saiba mais
O livro Reise in die DDR, de João Pereira de Góes Filho, foi lançado pela editora alemã Lebensreise e pode ser adquirido sob demanda pelo site. No próximo ano deve ser disponibilizada uma versão em inglês.

Já o site Praia do Góes, contendo parte do material levantado durante sua estada na Alemanha Oriental em 1988, pode ser acessada pelo linkhttps://sites.ifi.unicamp.br/goes/deutsch/