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Tão
bisbilhoteira quanto Emília
Pesquisadora conta como descobriu raridades de
Lobato num velho porão em Santos
TATIANA
FÁVARO
Curiosidade
de Emília. Foi esta característica da jornalista e
pesquisadora Cilza Bignotto uma das principais alavancas - se não
a principal - no processo de negociação e doação
do arquivo pessoal de Monteiro Lobato ao Cedae. Em 1997, quatro
anos depois de se formar em jornalismo, ela decidiu que não
era esse o caminho a seguir na vida. Queria voltar a estudar, de
preferência na Unicamp. Como a primeira oportunidade de contato
com a Universidade era um concurso para a vaga de técnica
em informática, não hesitou. Fez a prova, passou e
logo estava se enveredando nas trincheiras da pesquisa literária,
pelas mãos da professora Marisa Lajolo, que lhe deu a oportunidade
de construir um site dentro do Projeto Memória de Leitura.
Três
anos depois, Cilza prestou novo concurso, desta vez para o mestrado
em Teoria Literária. Não teve dúvidas na hora
de escolher o tema para seu projeto: Monteiro Lobato. Lembrou-se
de quando, ainda menina, puxou da estante da biblioteca de Santa
Bárbara DOeste, sua cidade natal, o livro Negrinha.
Aos 10 anos de idade, já conhecia a menina do nariz arrebitado
e achou que a personagem da obra, voltada para adultos, fosse uma
Narizinho negra.
Curiosidade
de Emília. Por ser de Lobato, estava entre os livros
para crianças. Quis ver o que era e, na verdade, tratava-se
da história de uma filha de escravos. Um conto de tema horripilante,
triste, mas que depois de lido tornou-se para mim um libelo contra
o racismo, recorda. Cilza leu sentada no chão, de um
só fôlego, e chorou. Não li mais o livro
depois de adulta e fui abri-lo apenas durante o mestrado, tamanha
a impressão que meu causou. A experiência de
leitura ficou tão nítida na memória, durante
tanto tempo, que a pesquisadora delimitou o tema de sua tese a uma
comparação entre as personagens infantis criadas por
Lobato: aquelas da literatura dirigida a crianças com aquelas
para adultos.
Empreitada
Cilza Bignotto embrenhou-se em bibliotecas e arquivos, atrás
das primeiras publicações do escritor. Era uma
tarefa muito difícil. As edições que
eram sempre alteradas por Lobato eram muito difíceis
de encontrar. Percebi como existem bibliotecas jogando preciosidades
fora, por serem velhas, conta. Assim como ocorre com os bolsistas
da Fapesp, a pesquisadora conseguiu verba para a compra de material,
participação em congressos, viagens, mas não
a utilizou no primeiro momento. Guardou boa parte, sem saber o que
a aguardava.
Em
Santos, onde morou por um tempo durante o mestrado, descobriu um
verdadeiro tesouro. Um dia, andando pela Avenida Conselheiro Nébias,
uma das principais da cidade, viu um rapaz vendendo cartões,
moedas, livros e outras antiguidades, debaixo da marquise de um
prédio. Aproximou-se por instinto da banca de Luís
Martins. Curiosidade de Emília.
Ao
passar os olhos sobre os títulos espalhados sobre uma mesa
de armar, percebeu obras raras de Monteiro Lobato. A preço
de banana, surpreendeu-se Cilza, lembrando que havia livros
a partir de R$ 2,00. De imediato, perguntei ao rapaz aonde
tinha encontrado aqueles títulos e ele disse que tinham pertencido
a um colecionador, recorda, com o mesmo misto de ansiedade
e entusiasmo que sentiu naquele dia.
O dono
da mina havia sido Newton Nebel dos Santos, que dedicou sua via
a colecionar tudo o que tivesse pertencido a Lobato, o que incluía,
claro, praticamente todas as suas obras. Ele chegou a montar
um pequeno museu em Santos, para mostrar algumas correspondências
de Lobato, originais de ilustrações para livros (feitas
por Belmont), aquarelas e quase todas as edições,
conta a pesquisadora.
Coisas
no porão Luís Martins, o vendedor de moedas
e selos, não tinha idéia do valor de mercado dos títulos
em cima da mesa, mas sabia que eram importantes para a história
da literatura brasileira, motivo pelo qual os comprara da família
de Newton.. Ele me disse que havia mais coisas num porão,
na casa do irmão, lembra a pesquisadora. Devagar, o
livreiro foi percebendo o interesse crescente de Cilza em conhecer
o material e acabou convidando-a para ir até o local em que
estava o patrimônio, praticamente esquecido.
Era
um porão antigo, escuro, com apenas um metro de altura. Para
entrar, Cilza o fez quase deitada. Agachada, de cócoras ou
engatinhando, teve de ser ágil, conferindo o que ali estava
guardado e ao mesmo tempo driblar ratos e baratas. Na hora,
nem prestei atenção nos bichos. Só pensei em
tirar os livros antes que virassem poeira.
Cilza procurou ser direta nas negociações com o comerciante:
gostaria que os livros fossem preservados e aquele não era
o ambiente ideal para manter o material.
Expliquei
que era pesquisadora da Unicamp e falei do meu interesse em recuperar
aquele tesouro. E Martins concordou em vender livros, aquarelas,
revistas e o que mais restasse no porão por preço
quase igual ao que pagou pelo material, a fim de que a coleção
recebesse tratamento adequado e servisse ao estudo da obra lobatiana,
por meio da Unicamp. Por 500 volumes, cobrou R$ 2 mil, preço
que se paga por um ou dois volumes raros de Monteiro Lobato em sebos
da Capital. Em meio a diamantes brutos, havia primeiras edições,
traduções, O Sítio do Picapau Amarelo
em russo, revistas com textos do escritor, entre outros.
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Verba
pública para o bem público
O
dinheiro da Fapesp foi muito bem empregado, avalia Cilza Bignotto.
Mais que isso, ela decidiu colocar as preciosidades de Monteiro
Lobato ao alcance do público, usando verba da Fapesp para
poder doar ao Cedae tudo o que comprou em Santos. Muita gente
me criticou por não comprar as obras para mim, mas para a
Unicamp, já que eram tão baratas. Mas pensei que era
uma boa chance de colaborar com a democratização do
conhecimento, gastando a verba pública num bem para a comunidade.
Os
membros do Cedae receberam o material e organizaram uma exposição
para lançar o que chamaram de Coleção
Biblioteca Lobatiana. Por ter contato com familiares do escritor,
a professora Marisa Lajolo achou por bem convidá-los para
o evento. Assim, a neta de Lobato, Joyce Campos, e seu marido, Jerzy
(Jorge) Kornbluh, souberam do esforço de pesquisadores do
IEL para resgatar a obra de Lobato e conheceram as técnicas
do Cedae para recuperação, organização
e conservação do acervo. E sinalizaram com o interesse
em doar para a Unicamp o restante do arquivo do escritor e de Maria
Pureza da Natividade, guardado na residência da neta em São
Paulo.
O material descoberto por Cilza Bignotto, que já estava à
disposição do público, ganhou corpo com a negociação
do acervo guardado com os Kornbluh, apesar de os arquivos estarem
separados.
A
pesquisadora ainda se embaraça quando tenta explicar o que
sentiu ao se ver diante daquelas raridades. Lobato me ajudou
a crescer. A aventura e a didática, na infância; a
formação de valores, ao longo da vida. Com ele aprendi
a ser mais crítica e questionadora. E, para sorte de
todos, curiosa como Emília.
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Carta
anunciando vinda a Campinas
Rangel,
Tenho
cá a tua de 7 de setembro, contando que soubeste de minha
doença. Hoje é o primeiro dia em que me sento à
máquina e bato umas linhas. Sim, meu caro, a doença
me pegou também. Tive um kisto no pulmão, um kisto
de ar, enorme, do tamanho duma manga coração-de-boi
e do formato delas. A expansão desse parasita me ia reduzindo
a capacidade respiratória e por fim não agüentei
mais. Tive de extirpar o inimigo. Estou agora livre dele, e a
parte do pulmão que ele levou tanto tempo comprimindo procura
reajustar-se e talvez em parte volte a funcionar. Acha o médico
que posso ganhar 50% da minha capacidade respiratória normal.
Se me vierem 20% estou feliz.
Amanhã vou para a fazenda do Chapadão em Campinas,
por uma quinzena. E lá começarei a rever as provas
das Obras Completas. Acho meio esquisito esta história
de Obras Completas com o autor ainda vivo e portanto ainda podendo
produzir. O fato, porém, que em vida um autor dar Obras
Completas significa firme determinação de não
escrever mais nada. Mesmo assim, se eu sarar bem, ainda botarei
uns ovos infantis. Meu publicozinho está reclamando um
livro novo onde não ensine nada, só haja aventuras.
Assim,
Rangel, a árvore velha, já ameaçada de tombo,
continua de pé, a dar, ou a pensar em dar, uns frutosinhos
extemporâneos como os ovinhos de galinha velha. E
será assim até o dia em que já não
houver operação possível e passagem inevitável
se faça.
Adeus,
caro, querido e velho camarada de peregrinação.
Lobato
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