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As
cartas não mentem jamais
Será mesmo?
MARISA
LAJOLO*
Corria
o ano da graça de 1945. Ano ímpar, em que nasceram
todos os que por agora contam cinqüenta e sete risonhas primaveras.
Afora
o nascimento de tantos cinqüentões e cinqüentonas,
1945 foi também um ano cheio de eventos marcantes. Não
bastasse o final da Segunda Guerra, ele assinalou ainda o final
do Estado Novo aqui no Brasil: presos políticos anistiados,
comunistas fazendo comícios em São Paulo, festejos
gerais da liberdade recém conquistada. A ditadura de Getúlio
e os horrores do nazi-fascismo pareciam arquivo morto. Arquivo que
tinha deixado cicatrizes feias, mas estava morto. Talvez por isso,
aquém e além fronteiras, o mundo respirava a esperança
de dias melhores. A chilena Gabriela Mistral ganhava o Prêmio
Nobel de Literatura e o mundo das letras brasileiras preparava-se
para os novos tempos: Drummond de Andrade publicava A rosa do povo
e em São Paulo, ocorria o I Congresso Brasileiro de Escritores.
Na
vida de Monteiro Lobato, já então com sólidos
sessenta e três anos, o ano de 1945 foi também cheio
de novidades. Umas melhores, outras nem tanto.
Começou sendo um tempo cheio de traduções importantes,
de projetos de novos livros infantis. Em setembro, no entanto, um
quisto no pulmão levou o escritor para a mesa de cirurgia.
A operação deu certo, mas a recuperação
foi lenta e deixou-o de molho por um tempinho. Também neste
mesmo ano, Monteiro Lobato assinou contrato com a editora Brasiliense
para a publicação de sua obra completa, aqueles trinta
e tantos volumes encadernados que tantos de nós sessentões,
cinqüentonas e quarentinhas temos em casa, ainda, quem
sabe, com as marcas da infância de dedos sujos que os devorava
e relia sem parar.
É
a propósito destas obras completas que a vida de Monteiro
Lobato cruza com a cidade de Campinas. Que traços e sotaques
campineiros se aninham entre os tantos milhares de páginas
que compõem a obra completa do criador do Sítio do
Picapau Amarelo?
A pergunta
é rica pelas sugestões que deixa no ar.
Uma até hoje pouco conhecida relação Campinas-Lobato
pode conferir novo sentido à bela cerimônia na qual
em cinco de dezembro último, o Centro de Documentação
Alexandre Eulálio (Cedae) do Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL) tornou-se depositário do acervo de documentos que os
herdeiros de Monteiro Lobato confiaram à Unicamp.
Como é mesmo?, pergunta com razão o leitor
impaciente deste sisudo jornal universitário.
Deu-se,
leitor atento, que entre o quase meio milheiro de cartas incluídas
no acervo depositado no IEL , uma delas (sem data, mas ao que tudo
indica escrita em 1945), menciona a intenção do escritor
de iniciar a revisão de suas obras completas na Fazenda do
Chapadão em Campinas, onde diz que passará quinze
dias. Satisfeito, leitor ranzinza? Não ainda? Vamos então
às palavras do próprio escritor, muito mais charmosas
do que a transcrição do pesquisador. Diz Monteiro
Lobato a Godofredo Rangel, velho amigo de tantas cartas: Amanhã
vou para a fazenda do Chapadão em Campinas por uma quinzena.
E lá começarei a rever as provas das Obras Completas.
E não
é que esta cartinha inédita, não incluída
em A Barca de Gleyre onde Monteiro Lobato publica sua correspondência
com Godofredo Rangel, veio parar aqui na Unicamp, pertinho da fazenda
onde Lobato diz que começaria a fazer os acertos finais em
sua obra?
Quem
gosta de boleros vai dizer que foi o destino quem quis.
Vai ver, foi mesmo...
Fica
em aberto, ao som do bolero, um bom punhado de perguntas: Fazenda
do Chapadão? Onde? De quem? Lobato esteve mesmo lá?
Trabalhou mesmo nas obras completas na fazenda campineira? E se
veio e se trabalhou, não deixou nenhum registro disso? Nenhum
papelucho? Os prezados leitores estão convidados a compartilhar
o boné de Sherlock: pesquisadores da história de Campinas,
pastores das memórias da cidade, guardadores de relíquias,
penhorado, o IEL agradece vosso auxílio!
A carta
que origina estas elocubrações, datilografada num
papel hoje amarelecido pelo mais de meio século que a separa
de nós é cheia de desafios para quem bate os olhos
nela.
Primeiro, não tem data, como já se disse.
Mas também como já se disse, embora sem data é
quase certo que tenha sido escrita em 1945, leitor desconfiado:
um rabisco anônimo escreveu 1945 acima da primeira linha.
Mesmo
se desconfiarmos do anonimato da mão que, a lápis,
rabisca os quatro algarismos na parte superior direita do papel,
há outras pistas, inclusive mais internas ao documento.
A nitidez
com que Lobato, no primeiro parágrafo, descreve sua doença,
traz para a carta cheiro de clorofórmio e as vozes cuidadosas
de médicos descrevendo padecimentos pulmonares alheios. O
clima hospitalar aponta, de novo, para o ano de 1945, já
que se sabe que em setembro deste ano
Monteiro
Lobato foi, efetivamente, internado num hospital (o Santa Catarina)
para uma cirurgia grande. Também na abertura, a menção
a uma carta de Godofredo Rangel datada de sete de setembro
dia seguinte ao da internação de Lobato reforça
a tese de o ano da carta ser 1945: afinal, companheiros de longos
anos, Rangel não perderia tempo para escrever ao amigo sabendo-o
doente e hospitalizado.
Isto bate o martelo na questão do ano.
Mas
mês e dia já são enigma mais complicado.
O segundo volume de A barca de Gleyre recolhe três cartas
de Lobato a Rangel, posteriores a setembro de 45, datadas todas
de dezembro: dia 16, dia 19 e dia 26. Na primeira delas, Lobato
menciona a revisão de provas da obra completa, assunto que
retorna na última carta, onde, junto com votos de bom Natal,
ele resmunga da trabalheira da revisão.
Assim,
recorrendo a outras cartas do mesmo Monteiro Lobato ao mesmo Godofredo
Rangel, torna-se quase irresistível a hipótese de
que a carta, agora sob guarda do IEL e sob vossos olhos, gentis
leitores, tenha sido escrita em algum momento entre setembro e dezembro
de 1945. O registro, logo no início da carta, de que Hoje
é o primeiro dia em que me sento á maquina e bato
umas linhas parece apontar no sentido de uma carta escrita
ainda em plena convalescência do escritor. Com os detalhes
da doença tão vividamente relatados, ao lado de recomendações
de repouso, os sherlocks interpretarão as pistas com maior
segurança se descobrirem quanto tempo durava a convalescença
de uma operação de pulmão no Brasil dos anos
quarenta. Mestres da nossa FCM, doutores de Campinas... vossos saberes
são inestimáveis!
No
corpo da carta que contemplamos à direita da página
4, ecoa uma melancólica resignação. Encerrado
o assunto doença, mas talvez contagiado pelo detalhado relato
de dispnéias e similares desconfortos, é a propósito
da publicação de suas Obras Completas que Monteiro
Lobato encontra pretexto para tematizar a morte. Que sentido tem
publicar obras completas de um escritor vivo?
O peso
da questão deixa um travo amargo nos planos confidenciados
a Godofredo Rangel. Planos, sim, como sempre, mas sem o entusiasmo
costumeiro. A metáfora da árvore velha tira a luz
do futuro, tornando-o sombrio.
No final da carta, antes do fechamento, encontramos uma imensa rasura
que veda, aos olhos curiosos, a continuidade do assunto.
Datilografada
em tempos anteriores à máquina elétrica, o
original confiado ao IEL mostra empastelamentos, algumas trocas
de letra, outras tantas correções e uma imensa rasura
no último parágrafo. Documento antigo parece quase
sempre ter sido datilografado com fita velha: as letras ficam clarinhas,
destacando-se pouco do papel. Mas no caso desta carta de que falamos,
trata-se de um texto absolutamente legível, exceto a parte
recoberta pela rasura.
Grossos
traços de tinta, cruzando-se na vertical e na horizontal
ocultam parte das seis linhas censuradas por implacável e
decisiva caneta. Caneta de quem?, pergunta o leitor
curioso...
De
quem era a mão que rasurou a carta?, perguntam também
os pesquisadores. Do próprio Monteiro Lobato? Se ele mesmo
foi o autor da rasura será que se trata de uma rasura feita
antes de a carta ser enviada a Rangel, ou depois, quando Lobato
recebe de volta a correspondência para preparar a edição
de A barca de Gleyre? O caso é que se trata de uma rasura
exata, traçada por mão firme, que risca um conjunto
coeso de sentenças cuja exclusão, entretanto, não
compromete a parte restante, isto é, mesmo sem as linhas
rasuradas, a carta continua fazendo sentido. Se, então, foi
mesmo Monteiro Lobato quem rasurou a carta, como preparação
para a inclusão dela em A barca de Gleyre , e por qualquer
razão desistiu da inclusão... isto não deixa
no ar a hipótese de que a versão que conhecemos das
cartas a
Rangel
publicadas pode não ser integral?
Claro
que deixa e claro que pode.
Mistérios
e mais mistérios.
Seguidos
de apelos e mais apelos.
Onde
estão os originais das cartas de Monteiro Lobato a Godofredo
Rangel? E as cartas de Godofredo Rangel a Monteiro Lobato? E as
outras tantas cartas deste incansável escriba, que tinha
entre seus correspondentes Oswald de Andrade, Getúlio Vargas,
Luís Carlos Prestes, crianças de grupo escolar, presidiários,
donas de casa, Érico Veríssimo e Coelho Neto, para
não falar de Henry Ford, onde estão?
Palpites
dos generosos leitores e, sobretudo, notícias e cessão
de cartas ajudam muito. Conhecer melhor a produção
deste excepcional escritor paulista é fundamental para conhecer-se
melhor a vida cultural brasileira que ele viveu. Os documentos recolhidos
no IEL são o primeiro passo para fazer da Unicamp centro
de referência de estudos lobatianos, vocação
talvez já antecipada no projeto do escritor, de iniciar a
revisão de sua obra na Fazenda do Chapadão em Campinas,
em algum momento do segundo semestre de 1945.
Vamos conferir?
Marisa
Lajolo é professora titular do IEL
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