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O
escritor e o caipira
Criador de Jeca Tatu, mais tarde Lobato
se arrependeria
de ter estereotipado o homem do campo
JOÃO
MAURÍCIO DA ROSA
Hoje, os ambientalistas
do mundo inteiro reclamam das queimadas que consomem a Amazônia
brasileira nos verões de junho a setembro. Não sabem,
porém, que esta prática já era combatida por
Monteiro Lobato, em um artigo publicado no jornal O Estado de São
Paulo em 1914. Sob o título Velha praga, o escritor
atacava a figura do caipira, a quem denominou impiedosamente de
Jeca Tatu, Chico Marimbondo e Manuel
Peroba, acusados de antigo e desastroso hábito
caipira de tocar fogo no mato.... O texto causou tanto impacto
que o tornou famoso.
Classificando
Jeca como piolho da terra e orelha de pau,
Lobato foi na contramão dos patrioteiros plantonistas, que
idealizavam os encantos dos sertanejos compostos pela
minoria caboclos, negros e caipiras. (...) uma choça
que por eufemismo chamam casa, brota da terra como um urupê.
Tiram tudo do lugar, os esteios, os caibros, as ripas, os barrotes,
o cipó que os liga, o barro das paredes e a palha do teto.
Tão íntima é a comunhão dessas palhoças
com a terra local, que dariam idéia de coisa nascida do chão
por obra espontânea da natureza se a natureza fosse
capaz de criar coisas tão feias, escreveu sobre os
caipiras.
A fama tornou
Lobato requisitado para novos textos e conferências, o que
o levou a escrever Urupês, novamente atacando
o sertanejo, lembrando que urupê é uma espécie
de fungo que brota da madeira podre.
Songomongas
Mais tarde, o escritor admitiu ter sido injusto, pois passou
a entender que o caipira não era um ser preguiçoso
por herança genética, mas que assim se encontrava
por causa das doenças que grassavam pelo Brasil das primeiras
décadas do século 20. No mesmo O Estado, através
de uma série de artigos transformados no livro O problema
vital, afirmou que o Jeca não é assim,
está assim: (...) a saúde pública
brasileira vai mal e a apatia do caipira é decorrente de
suas enfermidades, destacando-se a ancilostomose, a leishmaniose,
a tuberculose e a subnutrição.
O livro foi bancado pela Sociedade de Eugenia de São Paulo
e pela Liga Pró-Saneamento do Brasil, funcionando como propagador
da campanha sanitarista liderada por Miguel Pereira, Belisário
Pena e Artur Neiva. Dentro de sua nova visão dos caipiras
paulistas, Lobato pregou que milhões de criaturas,
no meio de uma natureza tão forte e rica, songomongam rotos,
esquálidos, famintos, doridos, incapazes de trabalho eficiente,
servindo apenas de pedestal aos gozadores da vida que literatejam
e politicalham nas cidades bradando para o interior.
Patrioteira
A oposição patrioteira não demorou.
A professora Marisa Lajolo selecionou uma pérola, não
assinada, publicada em um jornal do interior de São Paulo
como pretensa resposta aos artigos de Lobato, intitulado De
pé, Jeca tatu. Classificado pela pesquisadora como
inconsistente e oportunista, o texto descreve o Jeca como uma figura
poética e ingênua: Vivendo na plena liberdade
do sertão, envolto nesse imenso amplexo da natureza amiga,
sem preocupações com o dia de amanhã, ora de
cócoras a descansar, ora em movimento para atender as solicitações
da existência, lá vai ele seguindo sem empurrões,
o suave caminho de seu destino....
O texto termina
com uma crítica à campanha sanitarista em andamento:
Todos os governos reunidos e dispondo do mais aperfeiçoado
aparelhamento de engenharia e higiene, jamais poderiam vencer as
hostilidades mortíferas daquelas regiões sem o sacrifício
da saúde e da vida. Sacrifício interesseiro nadando
em rios de ouro orçamentário.
Lobato retrucou
com uma de suas histórias mais populares, o Jeca Tatuzinho,
o caipira sarado que prospera, o inverso do outro Jeca,
indolente e pobre. Uma personagem com a qual o escritor também
vai lucrar, em aliança com a indústria farmacêutica.
O Jeca Tatuzinho vai ser garoto-propaganda do Biotônico Fontoura
(beabá-beebé-beibiotônico Fontoura),
naquela que a professora Marisa classifica como a primeira parceria
entre os pioneiros da indústria literária e da indústria
farmacêutica no Brasil. (J.M.R.).
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O
Sítio inaugura literatura
para crianças no Brasil
Homem
de tantos empreendimentos, Monteiro Lobato marcou o grande ponto
de seu currículo em 1921, ao publicar O Sítio
do Picapau Amarelo no mesmo ano de A menina do
narizinho arrebitado. Com O Sítio
Lobato inaugura a literatura infantil brasileira, lembra a
professora Marisa Lajolo em seu livro Monteiro Lobato, um
brasileiro sob medida.
O
surgimento de livros para crianças pressupõe uma organização
social moderna, por onde circule uma imagem especial de infância:
uma imagem da infância que veja nas crianças um público
que, arregimentado pela escola, precisa ser iniciado em valores
sociais e afetivos que a literatura torna sedutores. Em resumo,
um público específico, que precisa de uma literatura
diferente da destinada aos adultos, explica.
E
a professora prossegue: A obra infantil lobatiana é
um projeto literário e pedagógico sob medida para
o Brasil, que a viu nascer e multiplicar-se ao longo de mais de
vinte anos. Monteiro Lobato aposta alto na fantasia, oferecendo
a seus leitores modelos infantis as personagens cujas
ações se pautam pela curiosidade, pela imaginação,
pela independência, pelo espírito crítico, pelo
humor, define.
Embora
sua obra denuncie a burocracia do Estado e a chatice da escola de
então, Marisa Lajolo observa que Lobato não hesitou
em usar a rede estadual de ensino como trampolim para a difusão
de seus livros. Ardiloso, distribuiu 500 exemplares para escolas
paulistas e acabou vendendo 30 mil para o governo de São
Paulo, então chefiado por Washington Luís, que tinha
como secretário de Educação Alarico Silveira,
amigo do escritor.
Na
mesma busca de sintonia com seu tempo, Lobato não deixa de
incorporar às histórias que inventa um lastro sólido
de informações muitas vezes coincidentes com o currículo
escolar. Assim, em vários de seus livros, encontramos uma
escola alternativa onde Dona Benta desempenha o papel de professora,
observa Marisa, lembrando que particularmente na década de
30, O Sítio se transforma numa grande escola,
onde os leitores aprendem desde gramática e aritmética
até geologia e o beabá de uma política nacionalista
do petróleo.
A
pesquisadora ressalta que os livros de Lobato formam uma série,
o que teria sido fundamental para seu sucesso. A repetição
de um mesmo espaço e de um grupo constante de personagens
parece um recurso eficiente quando o que está em jogo é
a fidelidade dos leitores. Nesta linha, sua obra infantil estende-se
por muitos títulos, sempre mencionando outros livros, próprios
e alheios, onde uma história faz referência a outra,
sublinhando com isso o caráter circular de sua obra, conjunto
de livros cuja leitura pode recomeçar infinitamente de qualquer
ponto, como sucede hoje com hipertextos, compara.
Lobatiana
Marisa Lajolo é considerada uma das principais especialistas
da obra de Monteiro Lobato no país. Ela constata que, mais
recentemente, os estudos lobatianos vêm sendo consideravelmente
fecundados pela publicação de diversas obras, sobre
diferentes aspectos do escritor e sob diferentes pontos de vista.
O fato de muitas publicações se originarem de
trabalhos universitários, parece sugerir que está
se ampliando o espaço que o escritor vem ocupando na vida
acadêmica brasileira, conclui. (J.M.R.).
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