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Não existe cachaça no Brasil
Simpósio na Unicamp discute o que vamos consumir no século 21

Não existe cachaça no Brasil, assegura o pesquisador Douglas Wagner Franco, do controle de qualidade de aguardente da USP de São Carlos. Antes que se desfaça o espanto, Franco trata de explicar que praticamente todas as aguardentes produzidas no país são justamente isso: aguardente destilada de cana. “A cachaça é feita do melaço, ou melado da cana, e a única fabricada por esse processo era a São Francisco”, garante.

A boa aguardente é resultado de uma mistura equilibrada de produtos químicos, onde estão metanol, acidez volátil, ésteres, aldeídos e álcool superior, em meio a 400 componentes contidos em cada litro. O tipo de cana ou de solo tem pouca influência no produto final. “Não existe uma cepa de fermento específico para a cachaça, como existe para o vinho e outras bebidas. Os produtores utilizam açúcar e geralmente o mais barato, de pior qualidade”, lamenta o pesquisador.

Para se conseguir um bom produto, todo o processo atual de fabricação precisaria passar por profunda mudança. Se não importa o tipo de cana ou de solo, o mesmo não se pode dizer da diferença entre a utilização de cana queimada ou de palha, que resultam em produtos distintos. O material do próprio alambique – cobre ou inox – também provoca diferenças essenciais. “Alguns produtores chegam a divulgar que seus produtos não têm cobre. A verdade é que se necessita de um pouco de cobre para uma boa aguardente, condenável é o excesso”, explica Franco. Mesmo os alambiques de inox, mais modernos, produzem uma pequena quantidade de ferro. Entre os problemas encontrados em aproximadamente 180 amostras analisadas, estão a presença de carboneto de etila, sulforados, flocos e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos.

O pesquisador da USP iniciou seus estudos com degustação de vinhos, quando descobriu que não existia uma pesquisa mais aprofundada sobre a cachaça, apesar da importância econômica e cultural do produto no Brasil. O processo de fabricação da pinga, na grande maioria das destilarias, ainda é rudimentar, com moagem da cana e destilação do caldo. Estima-se uma produção de 1,5 bilhão de litros por ano, 99% consumidos no mercado interno, enquanto as exportações somam apenas 1%, sem contar a fabricação em centenas de destilarias informais e artesanais. A Caninha 51, por exemplo, fabrica um milhão de litros por dia. É um mercado potencial de US$ 5 bilhões, que emprega 500 mil trabalhadores só no Estado de São Paulo.

Ressaca – “O nome ‘cachaça’ pegou porque fica mais bonito quando falado em francês”, explica Franco. Mas existe um outro motivo para que se mude a definição de aguardente: as bebidas classificadas como cachaça sofrem alíquota menor na exportação, pois são similares ao rum; a classificação de todas as aguardentes como cachaça manteria o marketing externo e reduziria a alíquota.

O pesquisador falou também sobre os testes revelando que a quantidade de aldeído – tido como responsável pela dor de cabeça na ressaca – é maior em uísques importados que na cachaça. “Meu tio tem uma teoria sobre a dor de cabeça: ele dizia que o uísque, por causa do preço, bebe-se com moderação; já a cachaça, que é barata, toma-se um litro. Daí a dor de cabeça”, brinca. Já o inevitável “bafo” é culpa do dimetilsulfeto, quando colocado em quantidade excessiva na bebida alcoólica.

Remédio em porções

á duas tendências mundiais na área da alimentação: a constante, pautada na tradição da cultura oriental, e a variante, da cultura ocidental baseada na inovação e modernização. Dentre elas, a última tem tirado vantagens com a expansão em nível internacional do mercado de conveniência, potencializada pelos meios modernos de comunicação. “As prioridades hoje são a praticidade e conveniência, com produtos adaptados a especificidades como profissão e estilo de vida do consumidor”, avalia o professor Jaime Amaya Farfan, da Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp.

Segundo o pesquisador, que concedeu palestra do IV Simpósio Latino-Americano de Ciência de Alimentos, os produtores estão mais conscientes sobre a implicação nutricional dos alimentos, mas as grandes prioridades na indústria ainda são as características sensoriais. “Culturalmente os alimentos nunca foram vistos como remédios, mas esta visão está mudando. O efeito da pesquisa nutricional é imediato. Divulgada na mídia, é automaticamente absorvida pelo produtor e consumidor. Contudo, a velocidade com que a indústria responde a certos apelos, pode levar a precipitações e resultados inesperados, como na divulgação dos benefícios do beta caroteno, que depois entrou na lista de suspeitos de causar câncer”, exemplifica.

A história da industrialização dos alimentos vem da preservação da matéria-prima (beneficiamento de arroz e moagem de trigo), acelerada a partir de 1.700 d.C. As vitaminas, seus efeitos bioquímicos e a conscientização sobre seus benefícios conquistam importância no período de 1900 a 1940. Já o melhoramento das propriedades sensoriais e nutricionais ocorre de 1930 a 1990, incluindo o sucesso das fibras nos anos 80. A última década foi a da garantia de inocuidade, da segurança alimentar e da preocupação com os transgênicos.

Atualmente a humanidade passa pela fase da consciência sobre as substâncias bioativas, fitoquímicos e novas classes de nutrientes, com seus efeitos na saúde. “A tendência é de cada vez mais o alimento ser visto como remédio. Nos Estados Unidos, metade da população consome alimentos vitaminados ou fortificados; 1/3 se automedica com alimentos antes de procurar o médico; e 72% investigam a qualidade do que consomem. O consumidor brasileiro ainda é pouco exigente em relação à qualidade dos produtos novos e seus efeitos”, destaca o professor.

Enganos – Um dos enganos cometidos pela indústria alimentícia é a produção de alimentos com baixo teor de gordura em resposta ao aumento da obesidade; outro equívoco está na priorização dos estudos toxicológicos em detrimento dos nutricionais. “A eliminação da gordura nos alimentos não ajuda a reduzir a gordura corpórea. Na ótica do tecnólogo, o alimento é um pacote de nutrientes que deve ter preço acessível, enquanto para o nutricionista é um veículo de nutrientes com fatores que influem no desenvolvimento. O ideal é combinar estudos toxicológicos, sensoriais, nutricionais, preços e exigência dos consumidores”, avalia Farfan.

Já entre os acertos da indústria figuram a adição de vitaminas, produtos destinados à alimentação infantil, leite com menor teor de gordura, margarinas sem ácidos graxos, introdução de substâncias bioativas e a tendência de substituição de açúcar, gorduras e carboidratos. O professor da FEA afirma que a produção de alimentos industrializados saiu da fase de crescimento fisiológico para atender a outras necessidades, e que o desenvolvimento de produtos dietéticos, métodos epidemiológicos e genômicos podem ampliar as soluções de processamento. “O tecnólogo deve dar maior valor ao aspecto nutricional”, insiste.


 


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