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Dom Quixote Gordo
Mulheres invisíveis
 

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‘É afortunado o fato de termos uma certa condensação do processo partidário’




ÁLVARO KASSAB

Continuação da página 5

“A polaridade PSDB-PT mostra que esses partidos não só têm uma maior identificação popular, como também JU – Como atuar nesse terreno?

Fábio Wanderley Reis – É difícil, especialmente num mundo que se apresenta com novas feições e novos desafios, em conseqüência da derrocada do socialismo e da globalização. O PT é um exemplo. Nasce com uma ideologia, seus filiados e militantes se entendem como socialistas e mesmo revolucionários etc. À medida que o PT vê seu acesso ao poder viabilizado, vê também o mundo mudar de figura. Lula chega à presidência da República num mundo onde as políticas que se esperariam de um partido de esquerda, numa perspectiva convencional, são aparentemente inviáveis. E não só aqui e a partir de agora. Já eram inviáveis com o governo Fernando Henrique Cardoso, que afinal de contas também chegou à Presidência com a imagem e uma longa trajetória de esquerda. Foram inviáveis com Felipe Gonzalez na Espanha; com Mitterrand, na França; com Schröeder, na Alemanha; com os trabalhistas que chegaram ao poder na Grã-Bretanha. Em todos esses casos, há uma espécie de capitulação realista diante da nova dinâmica imposta pela globalização, da necessidade de flexibilidade, de aumentar a produtividade, de atuar no nível dos fatores de produção, em vez de no nível da demanda, como no keynesianismo. Não temos condições de escapar da pergunta: até que ponto, para ser eficiente, mesmo em nome dos objetivos sociais, não seria fatal tratar as coisas com realismo? Isso talvez possa ser ilustrado com referência a certas denúncias que andaram sendo formuladas pela esquerda do PT.

JU – Quais denúncias?

Fábio Wanderley Reis – Francisco de Oliveira e Paulo Arantes, já em meados do ano passado, após seis meses do governo Lula, diziam que, com aquela política econômica, o governo estaria aderindo a uma lógica férrea que restringiria as opções.

JU – Mas as críticas não procediam?

Fábio Wanderley Reis – No momento em que foi formulada a crítica, claramente as opções do governo já aumentavam em relação ao seu início, na posse, quando o que estava posto era a ameaça de uma crise catastrófica.

De lá para cá, patentemente, são maiores as opções do governo e dos agentes econômicos brasileiros, com os quais tem-se que contar se se quiser desenvolvimento. É óbvio que os bons resultados econômicos que se vêm obtendo permitem que você tenha maior margem de manobra, e eventualmente que se possa contar com mais recursos para agir com maior eficácia mesmo no plano social. O desafio é esse: como acoplar adequadamente a política social e a política econômica. Obviamente, há um certo nível em que você precisa do mero assistencialismo por parte do Estado, tendo em vista a desigualdade brasileira, as carências e urgências de uma grande parcela da população. É algo como, no limite, matar a fome. Nesse contexto, acho que se justifica em princípio um programa como o Fome Zero, ainda que existam problemas na sua implementação. Porém, claramente, isso não pode ser tudo.

JU – Quais as outras medidas que poderiam ser adotadas?

Fábio Wanderley Reis – Se a gente não quiser cair no mero assistencialismo, é preciso que a política social esteja, sim, acoplada a uma política econômica capaz de criar um processo consistente de incorporação social. E esta não pode deixar de ser atenta para as circunstâncias e para as condições reais do ambiente em que ela opera. Esse é o dilema: a grande questão é saber como se enfrenta a desigualdade social. E seguramente é uma grande bobagem apostar ou contar com que a gente venha a resolver esse problema em alguns anos ou em um ou dois mandatos deste ou daquele presidente. Isso é trabalho para gerações, tendo em vista o peso do legado negativo.

JU – O fisiologismo e a dança das cadeiras partidárias são, na mesma medida, criticados e praticados em nome de uma suposta governabilidade. A que o senhor atribui essa distorção?

Fábio Wanderley Reis – Acho que isso tem a ver, antes de mais nada, com o fato de os partidos não terem maior consistência. Não estou falando necessariamente de partido ideológico, daquela velha idéia de partidos distribuídos num eixo que vai da esquerda à direita e cada um deles dirigindo seu recado a uma certa fração do eleitorado. Essa fantasia corresponde na verdade, no máximo, a experiências fugazes de alguns países europeus. Falo do fato de os partidos serem objeto de identificação popular real. Isso é algo que tem sido impedido pelas turbulências do processo político-partidário brasileiro. Quando o eleitor começou a achar o rumo e se identificou com o PTB no período 1945-64, desmontou-se a estrutura partidária. Quando a dinâmica permitiu que um MDB surgisse como opção popular, precisamente por isso houve a ação que alterou as regras do jogo. Acho ilustrativo o fato de que, no período 1945-64, em que tivemos o enfrentamento PSD-UDN e, aos poucos o PTB, que foi ganhando a simpatia do eleitorado, não tenhamos registrado a “dança das cadeiras”. Por quê? A mim me parece que a razão principal é a presença de Getúlio Vargas e o apelo popular que ele tinha. Havia uma conexão muito clara, positiva ou negativa, dos partidos com ele. Isso permitiu que esses partidos rapidamente se enraizassem na percepção popular. Em Minas, por exemplo, em muitos lugares a coisa continua até hoje posta em termos da disputa entre PSD e UDN... Na medida que o eleitor estava identificado com o partido, ficava inviável para o político ficar mudando de agremiação. Ele era punido pelo eleitor. Aliás, hoje mesmo isso acontece. A taxa de reeleição dos parlamentares que mudam de partido é menor do que a dos demais.

JU – O que pode ser feito para mudar esse quadro?

Fábio Wanderley Reis – Precisamos de algo como o que vem ocorrendo recentemente: o processo eleitoral feito em condições em que o quadro partidário se mantém, com alguns dos partidos podendo se tornar protagonistas importantes ou decisivos, como o que vem ocorrendo desde há algum tempo com o PSDB e o PT nas eleições. Isso permite aos poucos que o eleitor vá se identificando com eles, e talvez os dois partidos venham a se tornar os principais canais da participação político-eleitoral da população, reduzindo o espaço das lideranças populistas personalistas e excessivamente pragmáticas que temos tido.

JU – E no caso das alianças, que antes eram condenadas pelo PT e passaram a ser prática comum, não importando o perfil ideológico?

Fábio Wanderley Reis – Pode-se falar na expressão usada por Sérgio Abranches em artigo que se tornou um pequeno clássico da ciência política brasileira: o “presidencialismo de coalizão”. Não há ainda na dinâmica partidária brasileira a possibilidade de que, qualquer que seja o presidente, ele possa contar simplesmente com o seu partido para governar. É necessário sair em busca de coalizões mais ou menos heterogêneas para ter o apoio adequado no parlamento.

JU – O PMDB decide nesta semana se deixa a base de apoio ao governo. O que o senhor acha que vai acontecer se o partido optar pela ruptura?

Fábio Wanderley Reis – Se vier a ocorrer, obviamente o governo vai ter dificuldades mais sérias para governar com eficácia. A relação com o Congresso vai ficar mais complicada. Não vejo com muita clareza como a coisa vai se mover. Acredito, entretanto, que isso se resolva. Ficaria surpreendido se houvesse uma posição muito firme de parte do PMDB no sentido de não continuar a integrar a base do governo. Provavelmente isso vai se acomodar. O PMDB é um partido de peso numérico no Congresso e, do ponto de vista do governo, é fundamental assegurar que possa dar andamento às reformas que estão na agenda.

JU – Em que medida essas coalizões mostram o enfraquecimento das doutrinas ideológicas e reforçam a tese de que, para a governabilidade, as coalizões são fundamentais?

Fábio Wanderley Reis – Temos as duas coisas: as coalizões são necessárias do ponto de vista da eficiência do governo, mas está também envolvido algo que corresponde a uma tendência de mais longo prazo. O modelo de política ideológica não corresponde sequer à trajetória dos partidos que nasceram com perspectiva revolucionária. O Partido Social Democrata alemão é um exemplo clássico. No final do século 19, era originalmente marxista e, aos poucos, com o envolvimento no jogo eleitoral, o partido passa a operar com a preocupação de disputar com eficiência e com apelo mais amplo. Deixa de ser um partido apenas da classe trabalhadora e passa a atender a imperativos realistas para ganhar eleições e para governar. O resultado está aí: social-democracia, que era sinônimo de revolução, passa a significar moderação, política de compromisso etc. Acho que isso tende a acontecer também com o PT, o que é bem-vindo.

JU – Por quê?

Fábio Wanderley Reis – O PT é o grande herdeiro das suspeitas que a esquerda despertava no establishment brasileiro. Em 1964, quando houve a percepção de que a esquerda estava ascendendo ao poder com João Goulart, tivemos a reação que resultou na ditadura militar. Na medida em que há o aprendizado de moderação que estamos vendo com o PT, tanto no plano da disputa eleitoral como na busca de alianças, com aceno mais moderado, torna-se possível uma certa conciliação, que permite, eventualmente, a pacificação e a conseqüente saída das turbulências que vivemos especialmente ao longo da segunda metade do século 20, quando o fantasma do golpe militar esteve sempre presente. Acho, portanto, que esse aprendizado é não só fatal como positivo. Como disse, a polaridade PSDB-PT mostra que esses partidos não só têm uma maior identificação popular, como também representam talvez um certo estreitamento benigno das opções do ponto de vista de propostas ou políticas. Afinal de contas, a direita no Brasil não tem viabilidade eleitoral. Quando foi, por exemplo, que o PFL apresentou um candidato presidencial viável? Se a gente põe de lado a manobra do precipitado lançamento do César Maia, que nem é lá um pefelista autêntico, é bem claro que a próxima eleição presidencial girará também em torno de PSDB e PT.

JU – O que significa essa convergência PT-PSDB?

Fábio Wanderley Reis – Uma certa aproximação em torno do centro.

JU – Há quem diga que PSDB e PT têm a mesma matriz. O senhor concorda?

Fábio Wanderley Reis – Acho que sim, num certo sentido. Do ponto de vista do ideário geral, Fernando Henrique Cardoso e muitos de seus companheiros do PSDB são claramente gente que provém da esquerda. A diferença é que o PT tem uma particularidade, que considero importante, que é uma conexão mais nítida com movimentos populares e sindicatos. Isso permite, eventualmente, que, no necessário jogo realista, o partido acabe sendo capaz de equilibrar-se melhor no que diz respeito à fidelidade ao compromisso social, até porque tende a ser mais cobrado quanto a isso. Há uma diferença entre os partidos, não acho que PT e PSDB se confundam sem mais, mas sem dúvida há uma proximidade.

JU – O que pode resultar dessa convergência em torno do centro?

Fábio Wanderley Reis – É afortunado, do ponto de vista da dinâmica geral, que haja essa convergência. Teremos eventuais descolamentos mais para a esquerda ou mais para a direita. Mas os dois partidos podem ser vistos ambos como progressistas.

JU – Como ficam os outros partidos?

Fábio Wanderley Reis – Se você tem uma polaridade em que se torna fatal que a disputa se dê entre PT e PSDB, é fatal também que haja as coalizões uma pouco mais à direita e à esquerda. Enquanto não tivermos um bipartidartismo para valer, é inevitável que os dois protagonistas busquem apoios.

JU – Críticas históricas do PT, entre as quais a edição indiscriminada de medidas provisórias e a opção pela ortodoxia na condução da economia, foram incorporados pelo governo. A votação da MP que dá status de ministro ao presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, revelou uma cisão, já que dos 90 deputados do partido, 28 votaram contra e 10 não foram à sessão. Como o senhor vê esse racha?

Fábio Wanderley Reis – As cisões são inevitáveis. É natural que haja tensões e clivagens num partido, como o PT, que nasceu com um ideário socialista e, aos poucos, vai tendo que se acomodar às realidades do jogo eleitoral e da experiência de administrar o país em todos os níveis. O que não quer dizer que não haja bons motivos, ocasionalmente, de o partido ou o governo ser cobrado. Nem tudo o que o governo faz se justifica pura e simplesmente em nome de um necessário realismo nas ações...

JU – O caso Waldomiro Diniz é emblemático.

Fábio Wanderley Reis – O episódio pode ser colocado como uma esquina. O governo Lula e o PT perderam uma oportunidade de marcar a diferença diante do realismo excessivo. Afinal de contas, você pode ter considerações técnicas que levam à perplexidade e a disputas no âmbito da administração econômica, mas em relação a princípios éticos não há espaço para isso. O PT corre o risco de comprometer um capital simbólico importante, e que se mostra importante até para a eficiência governamental.

JU – Como assim?

Fábio Wanderley Reis – Há uma certa idéia de eficiência, um pouco míope, que se apóia na busca da esperteza em cada esquina do jogo cotidiano. E há uma outra perspectiva em que a atitude exemplar é instrumental para garantir rumo, inclusive para assegurar condições de governabilidade. Se você começa a ser mostrar esperto aos olhos de certo tipo de parlamentar, por exemplo, você abre as portas da barganha, é um convite ao jogo de oportunismo. Claramente, o PT ficou devendo em relação a isso. Coisas como esse episódio e o uso excessivo de MPs ilustram uma disposição hiper-realista. O governo e Lula, em particular, inclusive por suas origens, teriam que se preocupar em não abrir mão desse capital simbólico e de exemplaridade. A partir do episódio Waldomiro Diniz, ao longo do primeiro semestre deste ano, tivemos coisas como aquela precipitação no caso do jornalista Larry Rohter, com o risco da desmoralização definitiva do governo na eventualidade de uma decisão contrária da Justiça. Isso indica um certo desassossego, uma certa inconsistência, que me parece o resultado da falha e do desgaste produzidos pelo impacto inicial do episódio envolvendo Waldomiro Diniz. O governo passou em muito maior medida, do que seria o caso de se desejar, a depender de boas notícias econômicas. A minha inclinação é que o governo teria menos a perder viabilizando a CPI do que adotando a atitude ambígua que adotou e tergiversando em relação às denúncias sérias envolvendo o homem forte do José Dirceu.


JU – Fala-se muito que esse desvio ético e uma certa postura autoritária podem desembocar numa afronta aos princípios republicanos. O senhor concorda com a crítica?

Fábio Wanderley Reis – Isso é, em boa parte, jogo político. Se é possível falar do componente republicano como a idéia da virtude cívica, o PT é que tem sido principista, e até acusado pela adesão supostamente rígida a propósitos solidários e cívicos. Na medida em que o discurso de denúncia da incompetência econômica desapareceu com o êxito da política econômica, a oposição buscou – e encontrou – outros argumentos. Por outro lado, acho que não é o caso de deixar inteiramente na sombra o fato de que, como parte do ideário original do partido, você tem sim um certo resquício de desapreço aos princípios da democracia liberal. Acho que a leitura em termos de autoritarismo se vale disso. Não há dúvida de que há sectarismos dentro do PT que resultam num compromisso duvidoso com a democracia.

JU – É possível fazer uma projeção do cenário futuro?

Fábio Wanderley Reis – A expectativa é favorável. Entendo que a polarização PT-PSDB pode resultar em algo parecido com o bipartidarismo, com uma simplificação da estrutura partidária de significado positivo. É afortunado o fato de termos uma certa condensação do processo partidário em torno dessas duas opções. Ambas são democráticas e consistentes, e potencialmente representam, como disse, defesas contra o populismo personalista, pragmático e corrupto. A minha expectativa é a de que isso possa ter continuidade. Até onde eu posso discernir o futuro, acho que a tendência vai nessa direção. A democracia já está certamente dando um passo importante com a simples experiência de ver o PT chegar ao poder e permanecer nele. O rumo que o processo político toma com a disputa entre PSDB e PT me parece algo alvissareiro do ponto de vista da democracia brasileira.

JU – Que avaliação o senhor faz dos pontos principais da reforma política?

Fábio Wanderley Reis – As coisas são muito complicadas, são muitos temas. Acho que temos tido com muita freqüência, especialmente no meio acadêmico, mas também no debate político geral, certa tendência à simplificação e a tomadas de posição imaturas. A minha postura é pelo experimentalismo, até onde isso seja possível. Não fico nem do lado do pessoal que acha que não tem que haver mudança, nem do lado daqueles que acham que é preciso mudar tudo. É preciso haver a tentativa de equilibrar o esforço de engenharia política – para corrigir defeitos – com uma disposição de permitir que as coisas “decantem”, para usar uma expressão que Tancredo Neves andou utilizando com relação ao processo de transição para a democracia. Afinal de contas, as instituições só passam a ser reais na medida em que ganham consistência e passam a ser parte real do contexto relevante para o cotidiano. É preciso lançar raízes na psicologia coletiva.

JU – De que maneira?

Fábio Wanderley Reis – Tem que haver uma certa disposição a deixar que as coisas “rolem” e amadureçam, mas isso não pode ser entendido como proibindo a disposição de experimentar. Para dar um exemplo, não vejo muito sentido em que não se experimente com relação à tensão entre proporcionalismo e majoritarismo, ou em que não seja testado aquilo que se costuma designar como sistema “distrital misto”, o modelo alemão. Trata-se da tentativa de combinar um critério majoritário com outro proporcional, de maneira a potencializar as virtudes das duas orientações. Claro que há problemas “técnicos” mais ou menos complicados envolvidos na proposta (como definir os distritos ou as listas de candidatos, por exemplo), mas certamente é o caso de se experimentar nessa direção. Acho que a questão central da reforma política é que há uma tensão, em quase todos os itens, entre duas perspectivas. A primeira é o apego a uma preocupação de representatividade democrática – é preciso representar adequadamente todos os partidos etc. A outra é a preocupação com a eficiência – um regime majoritário tende a ser mais coeso e mais capaz de colocar em prática suas políticas.

JU – Como poderia ser solucionada essa equação?

Fábio Wanderley Reis – Como disse, no plano geral não dá para dizer senão que é preciso buscar equilíbrio, reconhecendo que as coisas são complicadas. Mas há dois pontos em relação aos quais é possível ser firme, ter posições inequívocas. Um é o financiamento público das campanhas. Como venho dizendo, temos o direito de voto assegurado igualmente para todos, mas o direito de ser votado está longe de estar também assegurado para todos. Depende do controle privado de recursos. Ainda que possa também ser tecnicamente complicado colocar em prática com êxito o financiamento público, acho que tem que haver um esforço nessa direção. Outra coisa, e aqui acho que minha posição se opõe a uma tendência mais geral, é a questão do voto obrigatório. Vejo com muita freqüência a defesa do voto facultativo. Trata-se, na minha opinião, de uma defesa insustentável. Não vejo por que falar simplesmente do voto como direito e não também como dever. Afinal de contas, o cidadão não é só aquele sujeito carregado de direitos mas também um sujeito com sentido de responsabilidade social e cívica. Além disso, há o fato (que acho o mais importante especialmente no Brasil, com nossa desigualdade) de que pelo mundo afora a sociologia eleitoral mostra que, onde você tem voto facultativo, quem mais deixa de votar são os que pertencem aos setores populares, os mais excluídos. É o pessoal com menos recurso, menos educado e intelectualmente mais pobre.

JU – O senhor acha que esse fenômeno se repetiria no Brasil?

Fábio Wanderley Reis – No caso do Brasil, se você criar o voto facultativo estará criando também um fator adicional de exclusão em condições gerais que já são excludentes. Não se pode pretender que isso seja um avanço.

JU – E justamente num momento em que cresce a participação popular nas eleições, como mostra pesquisa feita recentemente por Bruno Speck.

Fábio Wanderley Reis – Esse crescimento provavelmente está associado à densidade que alguns dos partidos estão ganhando junto ao eleitorado popular. O eleitor passa a se identificar, mesmo aquele mais desinformado. Na medida em que PSDB e PT se confrontam, você cria um certo Fla x Flu, que é inequivocamente um componente que passa a estar presente na cabeça do eleitor popular. Isso produz certa mobilização. O voto facultativo certamente afastaria uma parcela substancial do eleitorado popular do processo eleitoral, que é para esse eleitorado justamente o grande momento de mostrar a cara e participar de uma decisão de importância. Fora desse momento, no cotidiano, todos os governos tendem a ser mais sensíveis aos poderosos, ao pessoal que controla as alavancas econômicas.

JU – O senhor escreveu recentemente que há uma perplexidade com os efeitos da globalização. O senhor poderia detalhar?

Fábio Wanderley Reis – Com a intensificação da globalização, se coloca em escala planetária um problema que se viveu no período moderno em escalas nacionais: é preciso criar, em correspondência com o substrato econômico, um poder capaz de atuar de maneira a disciplinar o jogo do mercado e buscar neutralizar seus efeitos negativos. Está patente que isso é atualmente uma necessidade no plano global. Na medida em que os mercados passam a atuar em escala planetária e afetando dramaticamente a vida de diversos países, torna-se crucial que você possa ter um instrumento de regulação, no limite, um governo mundial.

JU – Qual seria o papel dos estados nacionais nesse cenário?

Fábio Wanderley Reis – Seriam os atores desse esforço de construção, mesmo com todo o enfraquecimento de que são vítimas. Várias coisas positivas acontecem nessa direção: a integração européia; o fato de que um organismo como a OMC se mostra um espaço de decisões que acabam sendo relevantes, e que o Brasil tem sabido utilizar de maneira hábil; a emergência da China e seu impacto... Naturalmente, há estados e estados. A idéia de que a globalização produz enfraquecimento do estado se aplica muito mais a um estado como o brasileiro do que ao estado norte-americano. Mas não há alternativa a que o estado brasileiro e os demais estados supostamente fracos tratem de ser também os agentes da construção institucional em escala transnacional.

JU – Nesse contexto, como senhor vê o renascimento do ideário desenvolvimentista?

Fábio Wanderley Reis – Diria que não há como abrir mão do desenvolvimentismo como perspectiva, como orientação, como algo que envolve a idéia de que de alguma forma é necessário promover socialmente o país, e melhorar o acesso da população a condições de vida dignas. O problema que se coloca é como você atua eficazmente com relação a esse objetivo desenvolvimentista nas circunstâncias novas que estamos vivendo, nas quais uma social-democracia transnacional evidentemente não é um objetivo viável num futuro visível – sem falar de que a social-democracia se mostra problemática atualmente até no plano nacional. A respeito disso, na verdade, o que existe é uma enorme perplexidade. É essa a esquina. Acabo de ler um livro de um cientista político inglês, Christopher Pierson, sob o título de Escolhas Difíceis (Hard Choices), que é uma tentativa de resgatar a social- democracia diante de críticas atuais (como a crítica na verdade inconsistente de Anthony Giddens, que resultou na chamada “Terceira Via”). Eu próprio estou convencido de que não temos alternativa a não ser tratar justamente de recuperar a social-democracia, com a riqueza de experimentos institucionais que ela envolveu na busca de equilíbrio entre a dinâmica do jogo capitalista, de um lado, e, de outro, um estado capaz de administrar o capitalismo com sensibilidade social e de procurar produzir um certo igualitarismo solidário. Acontece que a dinâmica que vivemos não deixa ver como você pode efetivamente assegurar isso. O exemplo do livro de Pierson é relevante porque, apesar das simpatias social-democráticas do autor, as conclusões são muito frustrantes como indicação do caminho a ser percorrido. Tomara que a gente acabe descobrindo – ou inventando – o caminho.

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