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“Com a reforma da Previdência, governo se arrisca a ser um RobinHood às avessas”

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JU - Como o projeto estabelece um teto de aposentadoria para os novos servidores (R$ 2.400), e não havendo tradição de fundos complementares no Brasil, a atratividade da carreira universitária, por exemplo, tende a diminuir consideravelmente. Que espécie de futuro o senhor vê para a universidade pública, diante disso? E quanto à qualidade do setor público?

Cano – Vejo uma piora considerável do quadro existente hoje. Só na Unicamp, nos últimos anos, nós perdemos centenas de professores e o quadro jamais se recompôs. Isso já nos causava problemas, mas agora vai piorar pois ouve-se falar em cerca de duas centenas de novos pedidos de aposentadoria. Agora as pessoas já sabem de antemão que as condições da sua aposentadoria irão piorar. Ou seja, o governo está criando um desestimulo para o emprego público. A carreira acadêmica ficará cada vez menos atrativa. O pesquisador ou professor que hoje mora aqui na Cidade Universitária (bairro de classe média no distrito de Barão Geraldo próximo ao campus da Unicamp) terá de mudar-se para a Vila Independência ou Vila Santa Izabel (bairros da periferia de Campinas habitado por moradores de baixa renda).

JU - Nos seus cinco meses iniciais, o governo construiu uma maioria parlamentar considerável. O senhor acredita em defecções suficientes para que o projeto de reforma seja ao menos suavizado e se torne menos danoso ao setor público e às universidades?

Cano - Estou muito cético em relação a isso justamente porque a campanha do governo de culpabilização do funcionário público está muito pesada. Salvo meia dúzia de deputados que estão ousando em falar, e não me refiro aqui aos do PT, você tem um silêncio entre a maior parte dos deputados que sempre votaram contra. A reforma de 98 foram eles que aprovaram, não fomos nós do PT. Estou chegando a uma conclusão muito triste. Acho que poucos parlamentares leram o projeto. Faça alguma pergunta sobre o projeto a qualquer parlamentar. Eles não sabem aprofundar e nem conhecem os seus principais efeitos.

JU - Se os parlamentares, como o senhor diz, não conhecem o projeto a fundo, então o que estaria por trás do apoio político que a maioria deles está declarando à reforma?

Cano - A ilusão. Ilusão de que os fundos de pensão irão resolver o problema do financiamento brasileiro. Se não for essa ilusão, então é algo pior, uma jogada financeira escandalosa, que é passar 40 bilhões de dinheiro público e de funcionários públicos para as mãos do fundo privado. O fundo ganha taxa de administração. Se a bolsa cair 40% ele continua cobrando os 10% dele. Azar o teu, que terá de chorar para o bispo. Isso é um fluxo de dinheiro equivalente a um BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) anual.

JU - Como um ideólogo e um militante petista, o senhor se sente à vontade para fazer críticas? O seu descontentamento se limita à reforma da Previdência ou vai além dela? A economia, por exemplo, vai bem?

“Vejo uma piora considerável do quadro existente hoje. Só na Unicamp, nos últimos anos, nós perdemos centenas de professores e o quadro jamais se recompôs”

Cano - Minhas críticas vão além da proposta de reforma da Previdência. A política macroeconômica que o governo está adotando é suicida. Praticando essa taxa de juros de 26,5%, você desconta uma inflação de 10%, dá uma taxa de juros real de 16,5%, não há país que agüente isso. Matematicamente é impossível. Colocaram na cabeça deles (governo) que irão diminuir o peso da dívida. Isso é mentira. Com os juros desse tamanho não se diminui coisa nenhuma. Pode-se argumentar que vamos ter um superávit comercial gigantesco; voltou a entrar um dinheirinho que é curto, mas quebra um galho, o que indica que o governo não terá problemas de balanço de pagamento ao longo do ano. Mas isso não resolve o problema estrutural. A questão básica desse modelo de economia, que é uma economia aberta e desregulamentada, na qual os fluxos de capitais entram e saem quando bem entendem. Se os ventos forem bons eles entram. Se não forem, eles não entram. Nós já temos os exemplos asiático e latino-americano que se revelaram como um engodo. Na verdade, o governo começou errado. O governo deve ter achado que se fosse bonzinho com os banqueiros e com o Fundo Monetário Internacional (FMI), mantendo um superávit fiscal, todo mundo iria distribuir chocolate para o nosso governo e resolver todos os nossos problemas. Mas os problemas não foram tocados.

JU - A linha de ação adotada pelo governo parece levar a uma desideologização de seu programa. Isto significa que as eleições que se seguirão serão desideologizadas? O governo perde ou ganha com a adoção de um pragmatismo até certo ponto inesperado?

Cano - O Partido dos Trabalhadores chegou a um ponto que o fez mudar. Ganhou estrutura, peso e se formalizou. Evidentemente, um partido político quando chega a esse ponto perde muito do que era antes. As coisas começam a passar por canais burocráticos. O pior, no momento atual, é que o governo tomou uma assessoria externa ao partido. Todos os nomes do staff do Ministério da Fazenda são de fora do PT, vindos da direita.

JU - O senhor está dizendo que o presidente da República, um homem que tem uma longa história de esquerda, está refém da direita?

Cano - Conheço o Lula há 13 anos e sei que é um homem inteligente, perspicaz e que sabe ouvir. Acho que o Ministério da Fazenda fez a ele promessas mirabolantes. Acho que disseram a ele que se ele se comportar direitinho, pagar as dívidas, cumprir os contratos, nós vamos dar dinheiro a você e não vamos causar nenhuma crise. Isso é uma bobagem muito grande, porque os problemas estruturais estão todos intocados.

JU - O senhor acha que nas próximas eleições o PT poderá voltar ao mesmo discurso ideológico que o elegeu para esse mandato?

Cano - Não vai poder, claro. Pelo contrário. Essa é uma das preocupações que eu tinha em termos de custo político dessa ação. Esse custo político pode ser muito pesado para nós que somos da esquerda, e críticos. Para nós isso pode significar uma outra espera de 25 anos.

JU - O senhor está falando de uma provável orfandade da esquerda?

Cano - Sim, uma orfandade da esquerda. É disso mesmo que estou falando. O Brasil é o único país da América Latina, tirando Cuba, que tinha um partido de esquerda organizado e com um quarto do eleitorado. O resto é partido do um por cento, fragmentado em sete ou oito agremiações. Então, o único país que teria condições de fazer uma organização política dessa natureza seria o Brasil. Nós corremos o risco de perder essa chance.

JU – Mas sempre é possível fazer uma correção de rota...

Cano - Maquiavel ensinou ao príncipe: “Se tiver que fazer maldade, faça tudo imediatamente; o bem, faça devagar”. Se for assim, é possível retomar o caminho, só que terá um custo político considerável.

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