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Entrevista
'A vanguarda do governo está envolvida no círculo vicioso da ortodoxia'
Continuação da página 5
Quem é Helio Jaguaribe
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Helio Jaguaribe, diplomado em Direito pela PUC/RJ é PhD h.c. pelas Universidades de Mainz, RFA e de Buenos Aires, por sua contribuição às Ciências Sociais. Foi professor visitante das Universidades de Harvard, Stanford, e do M.I.T. É decano emérito do Instituto de Estudos Políticos e Sociais (Iepes), do Rio de Janeiro. Foi fundador e responsável pela cadeira de Ciência Política do Iseb. Nele exerceu marcada liderança intelectual até a data em que dele se afastou, por divergências, em março de 1960. Nos tempos do Iseb publicou, entre outros livros, O Nacionalismo na Atualidade Brasileira. É autor de ampla obra, publicada em diversas línguas, destacando-se, entre seus últimos livros, Brasil, Homem e Mundo Reflexão na Virada do Século (Topbooks, 2000) e Um Estudo Crítico da História (Paz e Terra, 2001, 2 vls.) e Brasil: Alternativas e Saída (Paz e Terra, 2002).
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JU - Por que os setores progressistas não reagiram ao golpe militar?
Jaguaribe - Porque o governo Goulart perdeu o controle das coisas. O presidente foi arrastado de uma maneira lamentável, a uma competição retórica com o seu cunhado, Brizola. Cada um queria se colocar mais à esquerda do outro, na suposição de que a esquerdização conduzia ao apoio político e eleitoral. Era uma visão muito infantil da realidade brasileira, um pouco como o Guerreiro pensou em certos momentos. Isso era absolutamente falso do ponto de vista de uma análise sóbria da realidade socioeconômica e sócio-cultural do Brasil. E, com isso, Goulart desestabilizou seu próprio governo. E aí, evidentemente, as forças produtivas se sentiram sem apoio, sem parâmetro. Julgaram que a expulsão de Goulart constituía uma condição necessária para reestabelecer um regime de equilíbrio social no qual elas pudessem atuar. Essas forças, evidentemente, se enganaram. Aqueles que derrubaram Goulart caminharam o país para uma posição semifascista.
JU - Historiadores afirmam que a ditadura militar se apropriou de alguns dos conceitos nacionalistas, moldando-os à sua linha de atuação, o que acabou enfraquecendo a esquerda. O senhor concorda?
Jaguaribe - A primeira parte procede, não a segunda. Os regimes autoritários de propensão fascista são nacionalistas. Hitler e Mussolini eram nacionalistas, os fascistas são nacionalistas. Os militares, que podiam não ser fascistas formais, mas eram fascistizantes, foram nacionalistas. Não foi isso, porém, que enfraqueceu a esquerda, e sim a falta de capacidade de organização de uma resposta alternativa ao militarismo que não fosse um socialismo do tipo ortodoxo. A esquerda ficou presa a esquemas marxistas e soviéticos. Com isso, perdeu a possibilidade de ser organizadora de uma aliança de centro-esquerda que teria grandes chances de substituir o governo militar. O radicalismo da esquerda reduziu a sua atuação a uma posição fortemente minoritária.
JU - Em que medida a globalização interferiu no conceito de Estado-nação?
Jaguaribe - Interferiu muito. A aceitação da idéia de que o capital estrangeiro é fundamental na promoção do desenvolvimento produz um duplo efeito. Por um lado, involuntária, mas efetivamente, se reduz a propensão à poupança. Os setores nacionais passam a gastar mais no seu próprio consumo, acreditando na possibilidade de que a inversão será financiada pelo capital estrangeiro. Por outro lado, este capital não é suficiente para suprir a ausência da poupança e da inversão, nem tem a orientação nacional que esta poupança teria. Esta linha política aumenta exponencialmente a dependência de um sistema nacional ao capital externo e ao mercado internacional. Com isso, acaba-se perdendo a capacidade de produzir políticas próprias, porque tudo depende da boa vontade externa para a continuação das inversões.
JU - Até que ponto o Estado fica dependente das políticas ditadas por grandes conglomerados e por organismos multilaterais?
Jaguaribe - Isso é perfeitamente verdade para os países que aceitam a idéia de que o seu desenvolvimento depende do capital estrangeiro. Na verdade depende da opção nacional. Um país pode escolher o capital estrangeiro que lhe convenha e não aquele que espontaneamente o procure. Para efeito compensatório dessas restrições, que são de interesse nacional, deve-se forçar um forte incremento da poupança doméstica e da capacidade de inversão doméstica. O Brasil já teve capacidade de inversão de 25%, os asiáticos têm mais de 30%, e agora nós estamos abaixo de 18%. Assim não dá. Começa a dependência do capital externo, que se auto-acentua.
"A esquerda perdeu a possibilidade de ser organizadora
de uma aliança que teria grandes chances de substituir o governo militar"
JU - O Estado é visto tanto como o canal apropriado para a execução de políticas públicas, como também como a origem de muitas distorções. Como o senhor analisa essa dicotomia?
Jaguaribe - Não acho que o Estado seja a origem de todos os males. Trata-se a meu ver de uma versão simplificada. O Estado tem deficiências que também se verificam na iniciativa privada. Essa coisa de que a iniciativa privada é inerentemente boa e o Estado inerentemente ruim é, simplesmente, uma tonteria. Na verdade, é um elemento de propaganda da ideologia neoliberal. O problema é que o Estado latino-americano passou e o caso brasileiro é ilustrativo disso por experiências equivocadas. É preciso adotar certas cautelas. O mecanismo de promoção de desenvolvimento através do Estado precisa ser acompanhado de um sistema político adequado, idôneo e representativo. No caso, o sistema político brasileiro, era promocional, do ponto de vista econômico, mas internamente era clientelista. O Estado clientelista, a partir de um certo momento, não tem capacidade de gerir adequadamente as iniciativas que ele próprio propõe. Ele é levado, cada vez mais, a substituir o critério de competência na designação das pessoas que vão dirigir a atividade econômica, por critérios partidários, por critérios de amizade pessoal, de apadrinhamento etc. Com isso, se corrompe e se deteriora o nível de qualidade das cúpulas que comandam o sistema econômico do Estado. Concomitantemente, essa mesma situação suscita, da parte dos operários e empregados, um sindicalismo irresponsável, que começa a ter exigências cada vez mais altas, tornando a empresa pública inviável. Seja por incompetência da administração da cúpula, seja por excesso de sindicalismo na base. Tanto é verdade que o mal não é inerente ao Estado. Mesmo com o lamentável clientelismo que continua marcando o Estado brasileiro, empresas como a Petrobrás, Embrapa e Embraer, têm funcionado admiravelmente bem.
JU - O senhor disse recentemente que o Brasil dispõe de duas décadas para se integrar ao bloco dos países desenvolvidos. Por quê?
Jaguaribe - Porque o processo de globalização vai comendo as reservas nacionais, vai estrangeirizando a economia. Hoje, por exemplo, das 500 maiores empresas brasileiras, 47% são estrangeiras. Não que a empresa estrangeira seja intrinsecamente má. Ocorrem duas coisas. Primeiro, o capital estrangeiro investido no Brasil funciona como um otimizador dos interesses de suas respectivas matrizes. Não está interessado em otimizar para o Brasil, e sim para o sistema do qual ele é parte. Uma das conseqüências disso é a renúncia a um esforço tecnológico próprio e a dependência de tecnologia externa, aumentando cada vez mais o circuito da dependência. Ponto dois: o capital estrangeiro, na medida em que vai se tornando relevante, passa a ter uma parcela igualmente crescente na publicidade, que é hoje a energia dinamizadora das democracias contemporâneas. Ela se orienta no sentido de favorecer candidatos e partidos que sejam simpáticos ao capital estrangeiro. Trata-se de um processo canceroso.
"O Estado clientelista, a partir de um certo momento, não
tem capacidade de gerir adequadamente as iniciativas que ele próprio propõe"
JU - É possível ingressar nesse bloco com as baixas taxas de crescimento econômico registradas no Brasil nos últimos anos?
Jaguaribe - Essas taxas são insuficientes. O ideal seria um crescimento não inferior a 6%. ao ano. Volto a dizer: o processo de redução crescente do que chamo de permissibilidade de que dispõem os países emergentes, opera de tal maneira que, se eles não atuarem muito rapidamente, no sentido de crescerem e terem autonomia, perdem completamente a sua independência. Essa situação não se aplica a todos os países. Alguns deles não têm jeito, mas um país como o Brasil, que tem massa crítica e capacidade de aumentá-la através de uma articulação eficiente com a Argentina, em primeiro lugar, e com o conjunto da América do Sul, em segundo, dispõe, se souber operar, de condições de vencer as restrições externas, assumindo dentro de um prazo razoável, o patamar de autonomia. Esse prazo, porém, tem de ser rápido, porque do contrário as forças externas acabam prejudicando. É muito difícil dizer qual é o prazo se olharmos para fora, mas se olharmos para dentro, não tenho dúvida: em menos de duas décadas, a gente não consegue aquilo de que necessita para atingir esse patamar.
JU - O que é necessário para atingi-lo?
Jaguaribe - Não há a menor dúvida de que os juros reais básicos precisam ser reduzidos. Há hoje um consenso cada vez maior de que os juros podem ser reduzidos significativamente, portanto parcelas gigantescas de recursos que já estão nas mãos da União, em vez de serem canalizadas, podem ser usadas para processos prioritários. Na medida em que a União canalize dezenas de bilhões de reais, o que é perfeitamente possível com o corte dos juros, para projetos prioritários, vai estimular a economia privada, que responderá acompanhando isso. Creio que uma política orientadora do desenvolvimento, apoiada desde logo por uma redução significativa da taxa de juros, tem capacidade de sair do modelo de equilíbrio estático para o modelo de equilíbrio dinâmico. Se tudo isso for ainda insuficiente, como a condição de crescimento é uma condição sine qua non, é preciso adotar medidas possíveis que aumentam a poupança e a inversão domésticas. A poupança compulsória é uma das possibilidades.
JU - De que maneira poderia ser implantada?
Jaguaribe - Na medida
em que se generalize a convicção
de que a descriminalização é
indispensável sou muito prudente
nisso, é uma saída se não
houver outra. Deve-se estabelecer a partir de
critérios que regulam o imposto de renda,
por lei e depois de um adequado esclarecimento
da opinião pública, um regime pelo
qual o titular de certo nível de rendimento
seja obrigado a subscrever títulos da poupança
compulsória. Isso não se constitui
um imposto. Ele continuará a ser titular
desses papéis, que serão aplicados
em investimentos reprodutivos. Depois de um certo
prazo, terão retorno. Apenas ele normalmente
não estaria preparado a imobilizar parte
do seu recurso em atividades cujo retorno vai
demorar três, quatro anos. Na verdade, o
país necessita que alguém faça
isso. E se isso não for espontaneamente
feito, é preciso que se faça por
via compulsória.
Há hoje um consenso cada vez maior de que
os juros reais básicos podem ser reduzidos significativamente
JU - Como o senhor está vendo a opção pela ortodoxia na economia, em detrimento de programas alternativos?
Jaguaribe - É uma opção suicida. O governo Lula atuou muito corretamente, tendo em vista as circunstâncias que o cercaram no início deste governo, circunstâncias essas motivadas pelo próprio fantasma Lula. Quando ficou caracterizado que ele ia suceder a Fernando Henrique, gerou-se um pânico doméstico e internacional. A herança maldita de que ele fala é verdadeira. Mas ele próprio foi o autor da herança maldita pela imagem de pânico que ela causou no mercado. Diante disso, com toda a razão, Lula procurou no primeiro ano de governo manter uma administração ortodoxa. Em suma, continuou exatamente o que estava sendo feito por Pedro Malan e pelo Armínio Fraga. Palocci e Meirelles são continuadores de Malan e Fraga. Acho que fizeram bem. Ocorre que, enquanto essa equipe estava corretamente administrando no primeiro ano de governo uma economia ortodoxa, a retaguarda do governo devia estar começando a elaborar projetos alternativos para a dinamização da economia a partir do segundo ano. E não fez nada. O governo não tem retaguarda, só tem vanguarda. E essa vanguarda está agora envolvida no círculo vicioso da ortodoxia. E não vai sair dele senão vierem idéias novas na cabeça do presidente.
JU - O senhor disse recentemente que o PSDB adotou uma linha muito ligth. Petistas históricos dizem o mesmo do PT, chegando a afirmar que Lula está apenas dando seqüência à era FHC. O senhor concorda?
Jaguaribe - Exatamente. É o que acabo de dizer. Enquanto a vanguarda econômica operava uma política ortodoxa, uma retaguarda de planejamento devia ter feito um projeto alternativo, dotado de validade técnica. Não fez nada disso. O Ministério do Planejamento, com o apoio do Ipea e do BNDES, deveria estar planejando o modelo alternativo. Isso é possível e necessário.
JU - Qual seria o modelo alternativo mais próximo do ideal?
Jaguaribe - O modelo
alternativo consiste em se fazer uma drástica
redução das taxas de juros, que
é onde está o dinheiro. Isso pode
conduzir à aplicação de dezenas
de bilhões de reais em projetos prioritários,
sobretudo nas áreas social e de infra-estrutura.
Isso suscita um movimento de acompanhamento do
setor privado que vai encontrar facilidade de
aplicações rentáveis. Creio
que esse processo, que tende a se retroalimentar
de uma maneira crescente, poderá conduzir
o país a atingir uma taxa de crescimento
anual satisfatória, sem precisar apelar
a uma poupança compulsória.
Acho que é uma necessidade imperiosa do Brasil uma aliança entre o PT e o PSDB
JU - E no campo político?
Jaguaribe - Acho que
é uma necessidade imperiosa do Brasil uma
aliança entre o PT e o PSDB. O problema
é como e quando ela se possa fazer. Receio
que neste período, durante o governo Lula,
seja difícil, sobretudo por conta das próximas
eleições municipais, nas quais as
posições antagônicas são
inevitáveis. Seria possível talvez
fazer uma aliança dessas em função
de um projeto nacional alternativo, incluindo
eventualmente a reeleição de Lula.
A verdade é a seguinte: o Brasil só
tem solução se adotar majoritariamente
um projeto social-democrata, que não é
privilégio de um partido que tem esse nome,
mesmo porque na prática tem sido muito
pouco social-democrata. E também não
é privilégio do PT, que tem setores
que são social-democratas e tem setores
que não são. Temos conservadores
como Palocci ou endoiados como tantos outros.
A coisa consiste na formação de
um grande bloco que tenderá a ser eleitoralmente
majoritário e possa impulsionar o Brasil
na direção correta, como aconteceu
com o governo Vargas e com o governo Kubitschek.
JU - O que o senhor acha das alianças feitas pelo PT?
Jaguaribe - Na medida em que não existe um bloco programático consistente, o governo é obrigado a costurar alianças espúrias, sob pena de não poder governar. O problema brasileiro passa por aí. Temos um sistema político clientelista, não somos uma verdadeira democracia. Dentro de uma democracia clientelista, é muito difícil ter um estado eficiente.
JU - O senhor cunhou recentemente o termo neodesenvolvimentismo. O que significa?
Jaguaribe - É um termo que leva em conta que as condições para o desenvolvimento neste começo do século 21, são distintas daquelas ostentadas em meados do século passado. No fundamental, se trata do seguinte: os países emergentes perderam a capacidade de se desenvolverem isoladamente. Por isso, o neodesenvolvimentismo brasileiro tem ser integrador. A chave do nosso desenvolvimento consiste numa aliança estratégica entre a Argentina e Brasil, que seja a ambos favorável. Não adianta transformar a Argentina num súdito brasileiro. Precisamos fazer algo que seja ótimo para os dois lados, do contrário não funciona. Não adianta pensar que tratados e manipulações verbais resolvem as coisas. O que resolve é a realidade. Seria uma aliança estratégica que conduza o Brasil a cooperar com crescimento da Argentina e vice-versa. Com isso, aumentaria significativamente o nosso espaço de permissibilidade internacional.
JU - Nesse contexto, o Mercosul seria a melhor opção comercial do Brasil?
Jaguaribe - Uma aliança estratégica argentino-brasileira conduz à consolidação do Mercosul, que por sua vez conduz à formação de um sistema sul-americano de cooperação e livre mercado. E aí dispara o mecanismo. Teríamos uma massa crítica para enfrentar outras massas críticas.
JU - Como o senhor vê a Alca?
Jaguaribe - O que caracteriza o projeto Alca tal qual ele é formulado pelos Estados Unidos? Primeiro, os EUA eliminam do mercado comum, portanto da liberação aduaneira, todos os seus setores débeis, mantendo o privilégio da decretação unilateral de dumping, ou seja, dumping é tudo aquilo que é mais barato e que o Estados Unidos não podem fazer. Segundo, mantendo a produção agrícola fora do sistema. Isso é simplesmente inaceitável. Por outro lado, os Estados Unidos propõem o que eu chamo de reciprocidades falaciosas. Os governos que entram na Alca, por exemplo, ficam obrigados a comprar os produtos da sua demanda, quaisquer que sejam os fornecedores. Ora, é evidente que nenhuma empresa brasileira terá condições de ser fornecedora significativa do governo de Washington. Entre outras razões, porque Washington compra as demandas do Pentágono, ou seja, mísseis e coisas de alta sofisticação militar-tecnológica que nenhum país latino-americano produz. É uma mentira escrachada. O Brasil não tem nada a ganhar com a abertura das compras governamentais. Essa cláusula é absolutamente inaceitável.
JU - Que avaliação o senhor faz dos acordos bilaterais assinados recentemente pelo Brasil, entre os quais com a China?
Jaguaribe - Aí é diferente. São países que têm um nível tecnológico e econômico semelhante ao nosso. Não existe essa terrível assimetria como a do Brasil e os Estados Unidos. Precisamos estudar parcerias que sejam favoráveis para os dois lados. Temos de ter parceria, por exemplo, com a China, com a Índia e com a Rússia. Entretanto, isso precisa ser feito de uma maneira que seja reciprocamente otimizante. E não assimetricamente otimizante para eles.
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