Os despossuídos de tudo
LUIZ SUGIMOTO
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Depois dos 40 anos de idade, dentre dois beneficiários dos programas de combate à pobreza, mais de um é analfabeto. De três, um nunca foi à escola. De cinqüenta, apenas um chega ao nível médio. A maioria absoluta é de trabalhadores que ganham a vida como diaristas ou minifundistas, proprietários ou ocupantes a título precário (arrendatário ou parceiro) de pequeníssimos lotes de terra, o que nas condições do agreste e semiárido nordestinos não assegura sequer a alimentação da família. Nas secas periódicas, além de nada colherem, não conseguem sequer trabalho como diaristas. Restam as frentes de emergência e a rede de proteção social que se expandiu muito nos últimos anos. Também se nota maior migração das jovens, que têm melhor nível educacional e conseguem se ocupar nas cidades da região. Basta uma breve conversa com esses jovens para perceber o desalento e a falta de perspectiva.
As condições de vida das famílias são precárias, em pequenas aglomerações que pelo menos facilitam a instalação de alguma infra-estrutura econômica e social, seja escola, energia elétrica, abastecimento de água. Outros trabalhadores estão dispersos nas fazendas, em geral mais desprotegidos e dependentes da boa vontade e consciência social dos proprietários. As casas são precárias, de paredes de barro e chão batido. O patrimônio doméstico é mínimo: um sofá, mesa, e camas ou meros colchões, utensílios básicos de cozinha; apenas os melhores situados têm televisão ou aparelho de som. Por toda parte constatou-se uma situação de insegurança alimentar, agravada nos períodos de seca. São famílias despossuídas de tudo.
Os dois parágrafos acima deveriam estar entre aspas, pois resumem o perfil escrito pelo professor Antônio Buainain da população rural pobre encontrada no Nordeste. Carlos Miranda, do Instituto Interamericano de Cooperação para Agricultura, órgão que presta consultoria técnica aos estados com projetos financiados pelo Banco Mundial, afirma que a pobreza é mais aguda quanto maiores os problemas ambientais. “A pobreza na região nordestina, além de sua magnitude, apresenta diferenciações quando se trata de negros quilombolas, indígenas, pescadores artesanais, camponeses tradicionais dos semiáridos. Problemas ambientais, como a escassez de água, tornam mais grave a cara da pobreza na região”, afirma.
Claáudia Romano, consultora do Banco Mundial que acompanha os programas de combate à pobreza rural, informa que o organismo internacional já destinou US$ 800 milhões para o PRPC em suas duas versões (desde 1993), com uma contrapartida dos governos estaduais e das comunidades de US$ 300 milhões. “Foram beneficiadas aproximadamente 7,5 milhões de pessoas, em mais de 30 mil associações comunitárias. Cerca de 75% desses beneficiários tinham renda per capita abaixo de um dólar por dia, estando abaixo da linha de pobreza”, diz a consultora.
Segundo Claáudia Romano, o abastecimento de água, naturalmente, aparece como prioridade entre os projetos, vindo depois os de fornecimento de energia elétrica e, ainda, as obras de transporte de pequeno porte, como a chamada “passagem molhada”: pontes para cruzar cursos d’água que antes obrigavam os habitantes a darem voltas de quilômetros. “Os projetos de moradia são mais recentes, atendendo por enquanto ao estado de Pernambuco. A maioria de relaciona com cisternas, poços artesianos, extensões de energia elétrica para vilarejos de cinqüenta casas. Alguns estados já pedem aportes para implantar novos serviços em postos de saúde e também para a área de educação”, enumera.
Ceará Josias Farias, coordenador executivo do Projeto São José, do Ceará, afirma que a transferência dos recursos diretamente para os beneficiários, a partir de demandas desta população, tem garantido pequenas obras de infra-estrutura como abastecimento de água e eletrificação, fundamentais para alavancar qualquer processo de desenvolvimento do estado. “Água e energia significam um suporte para outro patamar de ação, que é a produtiva. Nesse sentido, estamos selecionando comunidades-piloto que já possuam um arranjo produtivo consolidado como as de mulheres rendeiras ou de pescadores de água doce para implantar uma estratégia diferenciada, garantindo capital de giro, assistência técnica e capacitação”, explica.
Segundo Farias, o Ceará tem 7,5 milhões de habitantes, sendo 1,9 milhão na área rural. No período 1995-2004, o PCPR beneficiou 325 mil famílias (80% da população rural) com US$ 188 milhões, levando aos domicílios rurais principalmente eletricidade, elevando este índice de 32% para 80%, contemplando 171 mil famílias. O coordenador do Projeto São José acrescenta que o Ceará foi o estado brasileiro que mais melhorou o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) na década de 1991 a 2001, passando do 24º para o 19º lugar. “Esta avaliação de resultados feita por professores de uma instituição com a credibilidade da Unicamp é importantíssima para nós, pois são pessoas de fora, que dominam os conceitos sobre o tema, avaliando a nossa prática”, finaliza.
Pernambuco A população rural de Pernambuco é de 1,7 milhão de pessoas, sendo que 1,3 milhão estão abaixo da linha de pobreza e dependem diretamente de programas governamentais como a bolsa-renda instituída nos períodos de seca, bolsa-escola e de pensões previdenciárias. O dia-a-dia é tomado com atividades agrícolas de subsistência culturas de feijão, milho, mandioca ou a caprinocultura, predominante no semiárido. Nos dois últimos anos, o PCPR-2 já atingiu 130 mil habitantes. “O semiárido é todo o sertão pernambucano, ficando de fora somente a Zona da Mata e a região metropolitana de Recife. É impossível atender este público na sua totalidade, pois os recursos do programa teriam de ser dez vezes maiores frente ao número de famílias”, afirma Brenda Braga, gerente geral do Projeto Renascer.
Por isso, de acordo com Brenda Braga, o governo vem observando os municípios com menor IDH concentração de pobreza, analfabetismo entre adolescentes e jovens, mortalidade infantil e renda que nunca é superior a meio salário mínimo para distribuir os recursos do PCPR-2. “O programa, sozinho, não vai mudar o quadro de pobreza. Buscamos articular em torno dele outras ações, voltadas a saúde, educação, formação profissional, visando reverter esses indicadores num horizonte de quatro anos”, informa. A gerente do Projeto Renascer acrescenta que são incentivadas atividades não-agrícolas como o artesanato, envolvendo grupos de mulheres de quilombo, ou de doceiras que se voltam para o beneficiamento de frutas transformadas em doces, compotas e popas.
Bahia A Bahia tem 60% de seu território localizados no semiárido, tradicionalmente voltado para a pecuária. João Saturnino, do Projeto Produzir, informa que a população rural foi reduzida em mais de 50% nas últimas dois anos décadas, transferindo-se para os núcleos urbanos, o que torna muito mais premente o sucesso do PCPR. “Durante muito tempo não víamos uma ação tão abrangente. O programa atinge a totalidade dos municípios rurais: são 407, menos os 10 da região metropolitana de Salvador. Esta segunda versão, que atribuiu a essas populações o papel de escolher o projeto que gostaria de ter e de realizar, é importantíssima para mudar esse quadro de marginalização, visto que essas pessoas enfrentam dificuldades de toda ordem, inclusive de se organizar”, afirma.
Embora reconheça no PCPR-2 uma ação ainda embrionária, Saturnino vê o programa como um indutor desta organização para conciliar muitos grupos de diferentes interesses. “Os resultados, que estamos discutindo nessas reuniões na Unicamp [nos dias 17 e 18 de maio], são muito diferenciados tanto dentro da Bahia como em relação a projetos de outros estados. De qualquer maneira, o programa já mostra uma ação muito importante na região do semiárido, principalmente na oferta de água. Nesse quadro, Aas avaliações feitas pela Unicamp servirão como subsídio para eventuais alterações no contrato com o Banco Mundial, tornando-o adaptado às condições objetivas de cada estado”, conclui o representante baiano.
Estudo alimenta a vida acadêmica
O professor Antônio Buainain vê a avaliação dos resultados do Programa de Combate à Pobreza Rural como uma oportunidade rara para alimentar a vida acadêmica, devido à riqueza das informações que serão colhidas pelos pesquisadores em campo. “É um projeto de altíssimo interesse acadêmico, um tipo de pesquisa que não conta com linhas de financiamento tradicionais, como Finepe e CNPq. Esta abertura dada pelo Banco Mundial e os governos estaduais é uma forma interessante de financiar estudos, colocando pesquisadores e estudantes em contato com uma realidade como a do Nordeste”, argumenta.
Na opinião de Buainain, a universidade pode contribuir muito com esses levantamentos, devido à sua independência e à capacitação técnica. Ele assegura que, havendo apoio institucional, essas pesquisas seriam feitas com a agilidade exigida pelo mercado, que muitas vezes julga as avaliações das universidades “acadêmicas”, ficando prontas somente quando as prioridades já são outras. “Uma pesquisa como esta sobre o PCPR pressupõe uma dinâmica diferente. Não podemos esperar que cada estudante conclua sua monografia ou tese para apresentar resultados”, pondera.
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