Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 274 - de 24 de novembro a 5 de dezembro de 2004
Leia nessa edição
Capa
Diário da Cátedra
Brito na Fapesp
Luz no risco de novo apagão
Pancada na classe média
Democracia brasileira
Prêmio: cooperação científica
Formatura: 7 espetáculos
Produção de insulina
Painel da semana
Teses da semana
Unicamp na mídia
Contaminação da água
Pecados da carne
 

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Barcelona: cultura,
arquitetura e futebol



ANDRÉ ARGOLLO

Idealizações e realizações
Quando eu tinha 18 anos, imaginava-me escrevendo. O meu modo de enxergar e sentir reflete-se atualmente na minha atividade de pesquisa: arquitetura rural, patrimônio cultural, engenharia de empreendimentos.

É bom respirar a arte, a cultura e a arquitetura desta maravilhosa cidade que tem muito a ver com a nossa Cidade Maravilhosa. Em Barcelona, a grande marca de cerveja é a Damm, fabricante da Estrella Damm, que apresenta na TV uma propaganda muito bonita, com o vídeo o tempo todo dividido: metade a cores, metade em sépia, dando um ar de imagem dos primeiros tempos do cinema. As cenas, que se misturam em cada tomada, remetem ao final do século 19, sugerindo a existência de bons apreciadores de cerveja; e, ao mesmo tempo, ao século 21, com os bons apreciadores numa balada. A música é contemporânea. Num certo momento o cara do século 19 se encontra com o do século 21, ambos pegando uma cerveja no balcão, para voltar – cada um ao seu tempo e à sua festa. Eles se olham, e estranham o encontro surreal, mas se reconhecem e brindam como bons apreciadores de cerveja devem sempre fazer.

Hoje resolvi escrever até de madrugada (o que não é novidade). Então, tive de preparar algo de bom para comer, e nestes casos, nada melhor do que... Macarrão! E para acompanhar? Isso! Uma cervejinha gelada. Deparei-me com uma incongruência em relação ao que eu imaginava há 20 anos. O cenário era perfeito: eu, desenvolvendo um trabalho ao meu gosto, numa noite fria do outono europeu, mas quando vou tomar um gole de cerveja – pasmem! Era Damm – não a Estrella Damm e sim a Xibeca! Isso mesmo! Xibeca! Como posso querer desempenhar um papel importante tomando Xibeca?!
Faz sentido ouvir Chico Buarque
Moro num apartamento (ou – piso) na esquina da Carrer d’Aldana com a Ronda Sant Pau, esta, uma rua movimentada que começa na Avinguda Paral·lel e depois do Mercat Sant Antoni passa a se chamar Carrer Comte d’Urgell, cruzando a Gran Via e seguindo até a Plaça de Francesc Macià na Avinguda Diagonal. Barcelona é cortada por dois grandes eixos: a Avenida Diagonal e a Gran Via de les Corts Catalanes, que se encontram na Plaça de les Glòries Catalanes.
Pombos no monumento ao Comendador Soler, fundador do teatro catalão: praga urbana

Meu apartamento fica próximo à Avinguda Paral·lel, que liga a Plaça Drassanes à Plaça Espanya. A esquina onde moro fica numa pontinha do Eixample, um bairro planejado; mas ao atravessar a Ronda Sant Pau, estou no Raval, um bairro antigo da cidade. Seguindo a pé em linha reta, atravesso o Raval, hoje um reduto de imigrantes. O Raval é muito bonito com seu casario antigo e ruas estreitas. O bairro possui muitos pontos de atração cultural: museus, edifícios históricos, entidades públicas, igrejas, bares, terminando em Las Ramblas (que divide o Raval e o Barri Gòtic). O Bairro Gótico também é antigo e cheio de atrativos culturais.

O Eixample, em catalão – ou Ensanche, em castelhano (“dilatación, extensión. Terreno dedicado a nuevas edificaciones en las afueras de una población”, cf. Diccionario Manual Ilustrado de la Lengua Española, Ed. Bibliograf) – resultou dos planos traçados por Ildefons Cerdà. O bairro é composto por uma trama de ruas largas perpendiculares e paralelas ao mar; blocos de edifícios implantados em quadras quadradas de esquinas facetadas. Em 1860 começaram as obras de expansão urbana, ou extensión (enshanche, ou ainda: eixample) conforme o plano de Cerdà, amarrado por três grandes avenidas – a Diagonal, a Gran Via, e a Meridiana – que convergem para a Plaça de les Glòries Catalanes compondo o coração geográfico da cidade nova.

Mas voltando ao meu pequeno e aconchegante apartamento (ou – piso) na CarrerPombos no monumento ao Comendador Soler, fundador do teatro catalão: praga urbana d’Aldana esquina com a Ronda Sant Pau (esquina facetada, conforme o plano de Cerdà), trabalho muitas vezes até tarde numa rede da sala com meu notebook no colo, ouvindo música brasileira. Adoniran Barbosa, Noel Rosa e, agora mesmo – ou ara mateix, como dizem os catalães – Chico Buarque de Hollanda.

Meu! (...) – como faz sentido ouvir o Chico neste instante! Quero dizer que toca ouvir o Chico! Assim como é bom iniciar uma conversa mencionando Caetano e ser interrompido – “claro, Caetano Veloso”. Eles mais Gilberto Gil compõe uma tríade fabulosa que minha geração cresceu ouvindo.

Temos no Brasil grandes arquitetos. Temos Oscar Niemayer. E temos uma arquitetura distinta. Nossa. Não podemos no entanto negar a imensa qualidade da arquitetura de outras localidades do globo, como por exemplo Barcelona, que respeita o trabalho de seus grandes arquitetos – do passado, de um passado recente, e do presente; incentivando assim seus grandes arquitetos do futuro.

Mas em termos de música não tem pra ninguém! Desculpem-me a “patriotada”, já falei que meu texto seria mais emocional do que racional. Numa outra crônica mencionei os grandes nomes de Gaudí, Dalí, Miró e Picasso – Ótimo! E para mencionar 4 nomes da nossa música? Chico, Caetano, Gil e quem? (...) Quem se habilita a propor tríades da nossa música? Tom Jobin, João Gilberto e Vinícius? Egberto Gismonti, Sivuca e Naná Vasconcelos? Carlinhos Brown, Marisa Monte e Arnaldo Antunes ou Armandinho, Dodô e Osmar? Raul Seixas e Paulo Coelho! Não. Não estou falando de duplas. Prometo que não falarei de duplas... – Villa Lobos? Carlos Gomes?

Tanto futebol como música
Ouvir Chico Buarque estando longe do Brasil. É claro que o contexto é outro, mas asvista do Teatre Principal, Las Ramblas, Barcelona letras de algumas canções remetem a tempos em que muitos brasileiros sentiam saudade do Brasil. Algo desse sentimento foi muito bem retratado pelo Chico. E já que estas crônicas que escrevo registram uma certa “trilha musical”... Vai meu irmão / pega esse avião / você tem razão / de fugir assim desse frio mais besta / O meu Rio de Janeiro... – de fato os tempos são outros! E, além disso, nunca imaginei que fosse sentir tanto calor na Europa. Barcelona no verão assemelha-se ao Rio de Janeiro em fevereiro (...) tem carnaval / eu tenho um fusca e um violão / sou Flamengo e tenho uma nega chamada Tereza...

Devemos lembrar que o Forum das Culturas foi aberto em grande estilo por Carlinhos Brown arrastando uma multidão pela avenida Passeig de Gràcia atrás do seu trio. Estão vendo?! Tem carnaval.

Trio! Cabe fazer uma referência às tríades de que falávamos em parágrafo anterior, pois Dodô e Osmar (depois Armandinho) foram os criadores do trio elétrico, uma das muitas invenções brasileiras que fazem sucesso mundo afora.

E já que falamos de Chico Buarque – que é Fluminense – e de Jorge Ben que é Flamengo e tem uma nega chamada Tereza, podemos falar algo mais sobre futebol. Pois não é novidade pra ninguém que o Chico adora uma pelada. Pelada com os amigos, uma partida de futebol sem muito compromisso. Eu também gosto de uma bela pelada, quem não gosta? Todo brasileiro gosta. Vai meu irmão / pega esse avião... – Mas sou Timão!

E meu irmão, como eu, corinthiano. Roxo não: P&B. O coração corinthiano é preto e branco, mas no escudo do Corinthians há o vermelho que representa o sangue que em fluxo intenso passa pelo coração que afinal é P&B mas bomba o sangue do povão.

Pombo sem asa
Quem, como eu, gosta de futebol, sabe que a expressão “pombo sem asa” refere-se à bola disparada por um violento e certeiro chute que, nos casos mais felizes, vai direto ao gol e morre nas redes que chacoalham esfuziantes para o delírio da galera. Nestes casos, a bola quase não se enxerga. Daí a expressão pombo sem asa – de fato é possível imaginar a relação entre uma coisa e outra, ou seja, a velocidade que a bola adquire após um violento e certeiro chute, com um pombo em vôo rasante.

Será que não existe um predador natural dos pombos? Outro dia vi um “ca...” – defecando (como posso dizer de maneira mais respeitosa? Talvez: fazendo suas necessidades...) em cima da cabeça do pobre do Comendador Frederich Soler (El Tiparra), o fundador do teatro catalão. Ele, impassível, imóvel há anos como uma estátua, imortalizado que foi, olhava resignado às pessoas que passavam indiferentes ao seu passado e insensíveis ao seu destino. A imagem era a de um homem culto que paradoxalmente só tinha “m...” na cabeça! Eu quase o podia ouvir pedindo-me para espantar os pombos que faziam de sua cabeça o seu sanitário – esta ave que entope as praças!

O Comendador Frederich Soler e os pombos que o utilizam como poleiro ficam de fronte ao Teatre Principal porém na calçada oposta, tendo a Rambla de Santa Mònica (uma das 5 que compõem Las Ramblas) entre eles. De lá podem ver o suntuoso prédio que outrora deve ter sido palco de peças memoráveis, mas que hoje se encontra abandonado e abriga um clube de bilhar. Projetado pelo arquiteto Francesc Molina (1812-1867), foi inaugurado em 1847. Merece registro, como muitos outros em Barcelona. Deverá ser restaurado.

Voltando aos pombos, noutro dia em plena Plaça Catalunya um deles, em vôo rasante, veio em minha direção! O filho da pomba desviou em cima, meio que tirando sarro do susto que levei. Passou perto. Neste instante compreendi em sua plenitude a metáfora pombo sem asa usada por muitos radialistas esportivos para descrever um chute forte em direção ao gol.

De fato acho que estou sendo meio chato em relação aos pombos. Afinal, as crianças e a maioria das pessoas de bem parecem apreciar essas verdadeiras pestes espalhadas pelas cidades do mundo todo. Mas se as crianças gostam, então, ponto positivo para os pombos. As crianças em sua inocência sempre me fazem pensar e, quase sempre, reformular meu pensamento.

Recolho-me, pois, à minha insignificante posição de observador inconformado com a sujeira que esses animais fazem, emporcalhando as cidades, principalmente os monumentos públicos.

Quem?! Os pichadores? Não. Refiro-me aos pombos, outros animais igualmente irracionais. Taí! Essa é boa. Os pombos são como os pichadores a emporcalharem as cidades, principalmente os monumentos públicos.

Digam-me: como vai o Carlos Gomes?


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André Argollo é engenheiro civil, mestre em engenharia agrícola, doutor em arquitetura e urbanismo e professor livre docente da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp. Assumiu uma cátedra junto ao Departamento de Urbanisme i Ordenaciò del Territori da Escola Tècnica Superior d’Arquitectura de Barcelona - Universitat Politècnica de Catalunya (ETSAB-UPC), onde ficará até dezembro, desenvolvendo trabalhos sobre “Arquitetura Rural”, pelo Programa Cátedras Unicamp & Universidades Espanholas.

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