Mesa-Redonda
 
 POLÍTICA CIENTÍFICA PARA O BRASIL:  A ÁREA DE LETRAS
Regina Zilberman1
Puc-RS
    A discussão sobre política científica no âmbito das Letras pres-supõe que atuar nessa área é fazer ciência. O pressuposto dá a entender, por sua vez, que Letras não se confunde mais com “Belas Letras”, atividade de natureza provavelmente mais criativa, mas pouco prática, voltada ao culto da Beleza e da Arte.

     A orientação científica dada às Letras foi assumida pela pós-graduação, principalmente. Esse destino pode ter sido considerado “natural”, mas dele decorreram algumas conseqüências, a mais flagrante sendo a clivagem estabelecida entre o ensino da e na graduação, voltado à formação de profissionais para trabalharem em escolas de primeiro e segundo graus, sobretudo, e o da e na pós-graduação, que se dirige à pesquisa e à produção de conhecimento. A segmentação pressupõe que da atuação em cursos e disciplinas de graduação não podem advir projetos inovadores, nem resultar matéria nova no campo do saber.

    Por essa razão, discutir a política científica na área de Letras é referir-se à pós-graduação, cujas organização e expansão deram-se a partir dos anos 70, no Brasil. Se o campo de abrangência da pesquisa é abarcado pelos cursos de mestrado e doutorado, a delimitação de seu espaço não é tão clara: Letras pode significar tanto a grande área, como uma sub-área, opondo-se nesse caso à Lingüística, como se verifica em listas como a do CNPq, adotada pela CAPES e outras agências de fomento, em que a área de conhecimento é designada “Letras, Lingüística e Artes”. A ANPOLL, associação que congrega programas de mestrado e doutorado, escolhe entre Letras e Lingüística seus filiados.

    O fato de que a designação “Letras” deslize do sentido mais geral para o particular, opondo-se nesse caso à Lingüística, não tem significado apenas exterior, como se se pudesse mudar o nome e resolver o problema. De um lado, ele reflete outra das inadequações entre a graduação e a pós-graduação, pois a primeira diploma em Letras tout court, o que não se reproduz no outro nível. De outro, trata-se de uma questão histórica e política, que nasce com os primeiros cursos universitários, ao final da Idade Média, quando Letras abarcava o conhecimento escrito, sem se separar, por exemplo, da história, da gramática ou da retórica. As repartições vieram com o tempo, e Letras foi experimentando duas situações diversas:

        – enquanto área do conhecimento, foi abrindo mão de setores com os quais, hoje, procura
           dialogar, na tentativa de reatar os elos rompidos; a busca de tratamento interdisciplinar de
           algumas questões, seja no campo do discurso ou da literatura, ou a interlocução com a
           pesquisa em História são expressões do esforço em recuperar a unidade perdida devido às
           divisões taxionômicas do conhecimento;

       – com a institucionalização da Literatura na sociedade capitalista2,  Letras confundiu-se com
          Belas Letras, deixando de ser conhecimento, para ser considerada criação e manifestação da
          Beleza, entidade atemporal e etérea. A ciência ficou do outro lado, enquanto expressão de
          saber, pesquisa e descoberta mensurável em dados concretos. Desde então, Letras incorporou
          uma dupla faceta, porque não renunciou ao “beletrismo”, que lhe conferia status artístico,
          pouco pragmático porém, no mundo burguês, nem deixou de cumprir a tarefa, assumida
          desde a Antigüidade, de guardiã da língua escrita.

    Assim, Letras enquanto grande área conserva resíduos de uma situação, datada da época em que foi hegemônica. Por outro lado, quando designa uma sub-área oposta à da Lingüística, revela-se o esforço dessa última em não se confundir com o “beletrismo” verificável em sua origem e apresentar-se como ciência no sentido restrito – enquanto registro de dados mensuráveis como exatidão e confiabilidade – que aquela palavra tende a adotar no mundo tecnológico moderno.

    De todo modo, a intersecção dos sentidos permanece, como se pode verificar na denominação dos cursos de pós-graduação, que se reconhecem, em cerca de 50% dos casos, como de Letras, deixando para as áreas de concentração a escolha entre “estudos literários” e “estudos lingüísticos”, para se empregar aqui uma designação mais geral. Essa situação, que talvez não se reproduza em outras áreas, de falta de definição mais nítida, tem igualmente conseqüências, quando o objetivo é avaliá-la ou discutir os rumos adotados, porque os dados se misturam, indicando ora a tendência genérica, ora a específica.

    Quando se pensa a situação específica de Letras, enquanto Literatura ou, melhor dizendo talvez, “não-Lingüística”, verifica-se o seguinte:

        a) na passagem dos anos 70, época de estabelecimento dos programas mais antigos, para os
            anos 90, quando apareceram novos cursos e os antigos ascenderam a doutorados, deu-se
            um deslizamento nas denominações, indicando uma alteração nos campos de pesquisa.
            Assim, se há 20 anos predominavam os programas voltados às literaturas vernáculas, como
            a Literatura Brasileira e a Literatura Portuguesa, ou às literaturas modernas, diferenciadas
            conforme suas línguas, destacando-se as de língua inglesa, hoje sobressai-se, no mesmo
            lugar, a Literatura Comparada. Em outras palavras, vários programas trocaram as
            identidades, assumindo a última citada. A alteração indica, de um lado, a adoção de outra
            perspectiva metodológica, substituindo a ótica das nacionalidades pela da intertextualidade,
            enfatizando questões temáticas, estruturais ou de gênero. No campo da Teoria da Literatura,
            essa modificação foi notável a partir dos anos 80, com a expansão do Pós-Estruturalismo e
            do Desconstrutivismo, e entre suas conseqüências contam-se a difusão da Literatura
            Comparada no Brasil.

            Porém, não se pode deixar de notar igualmente que Literatura Comparada tornou-se uma
            denominação conveniente, porque veio a abrigar formações em nível de doutoramento
            obtidas em diferentes universidades situadas no Exterior que só podiam ser conjuminadas,
            se o curso de pós-graduação em que se situassem adotasse denominação genérica, sem
            coloração nacional específica3.  Por essa razão, o novo campo de investigação nem sempre
            se somou aos demais, tendo muitas vezes funcionado como seu substituto ou sucessor. Por
            conseqüência, as áreas substituídas sofreram um retrocesso, sendo patente o encolhimento
            do número de cursos em Literatura Portuguesa ou em Literaturas Estrangeiras Modernas,
            reduzidos quase que exclusivamente aos de Língua Inglesa, e esses mesmo aparecendo em
            pequena quantidade, desproporcional, se comparado à expansão sempre crescente das
            titulações relacionadas ao ensino de inglês no âmbito da graduação4.
 
            A consolidação da Literatura Comparada, contudo, constitui provavelmente o principal “fato
            novo” no âmbito dos estudos literários no Brasil, e mesmo esse não representa uma
            experiência original. Embora tenha crescido o número de programas de pós-graduação
            orientados para a literatura, nenhum deles adota identificações que revelem investigações de
            vanguarda, evitando adotar designações a partir de vertentes temáticas (como ocorre a
            alguns GTs da ANPOLL), gêneros literários (apesar da expansão dos estudos dirigidos, por
            exemplo, à Literatura Infantil, à Literatura Oral e Popular e à Literatura de Massa), questões
            metodológicas e pragmáticas (embora se verifiquem pesquisas nas áreas de Ensino e
            Leitura). Menos ainda são encontráveis cursos de mestrado e doutorado preocupados em
            pesquisar a incorporação às Letras de novas linguagens e/ou a contribuição daquela área ao
            campo da Informática ou da Teoria da Comunicação. Trata-se, pois, de um progresso
            relativamente contido, sugestivo do acanhamento da área, encarada na perspectiva
            específica indicada antes.

        b) o encolhimento de áreas importantes, como Letras Clássicas, restrita às Universidades de
            São Paulo e Federal do Rio de Janeiro (a não ser quando englobada pela Teoria da
            Literatura ou Literatura Comparada, situação em que a diplomação obtida – os títulos de
            mestre e doutor – não registra a especificidade da formação do pós-graduando), ameaçada
            de desaparecer ou tornar-se dependente da aprendizagem exclusiva no Exterior. O mesmo
            tem-se verificado no âmbito da Literatura Portuguesa e, como se afirmou antes, das
            Literaturas Estrangeiras Modernas, especialmente quando não se trata de expressões
            literárias em língua inglesa.
 

    Relativamente à situação geral da área de Letras, observa-se o seguinte:

        a) a maior parte dos cursos de pós-graduação situa-se na região sudeste, especialmente no
            Estado de São Paulo (capital e interior) e na cidade do Rio de Janeiro;

        b) na região Sudeste localiza-se igualmente a maioria dos doutoramentos;

        c) a região Sudeste concentra ainda os cursos que vêm obtendo o conceito A, na avaliação
            bienal da CAPES.

        As três constatações, combinadas, sugerem que há concentração geográfica dos cursos de
        pós-graduação, centralização e reprodução, no plano do funcionamento dos programas, da
        conjuntura econômica do país, cujas principais atividades industriais e financeiras se
        desenvolvem  na região Sudeste, entre os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas
        Gerais. Assim sendo, verifica-se uma disparidade no que diz respeito à distribuição dos cursos
        e seus interesses: o litoral, especialmente no centro do país, volta-se ao aperfeiçoamento dos
        programas de doutorado, enquanto que o interior, sobretudo no Centro-Oeste e Norte, ainda
        busca concretizar projetos de especialização, procurando atender a uma demanda local.

        A atividade de pós-graduação em Letras no país tem se expandido continuamente desde que,
        nos arredores da década de 60, apareceram os primeiros cursos em nível de mestrado a que,
        aos poucos, foram se incorporando doutorados. Ao lado do crescimento quantitativo dos
        cursos, foram-se estabelecendo e ampliando programas e projetos de pesquisa, organizados em
        linhas de trabalho de notável visibilidade, haja vista o número e a qualidade dos eventos
        científicos da área, tais como as reuniões bienais dos GTs da ANPOLL, os congressos anuais e
        bienais das associações científicas, as publicações em livros e periódicos.

        A expressão mais forte de visibilidade, presença e atuação da área é o número atual de cursos
        de pós-graduação, que se aproxima da marca dos sessenta programas de mestrado e
        doutorado; estes, somados, excedem a oitenta. A quantidade de docentes e pesquisadores que
        se dedica especificamente à pós-graduação deve alcançar o milhar, o que confere solidez ao
        grupo, assegura sua manutenção e afiança sua expansão constante. Se, contudo, comparamos
        esse valor às verbas que a área, representada por seus cursos, professores, alunos e
        pesquisadores, recebe dos organismos de fomento, concluímos que sua presença é pífia.
        Dificilmente os recursos obtidos suplantam o patamar dos 10% dos investimentos feitos por
        agências federais, como CNPq e FINEP, ou estaduais, como as Fundações de Amparo à
        Pesquisa; além disso, boa parte do dinheiro destina-se ao financiamento de eventos científicos,
        e não para a pesquisa. Talvez o número se eleve se for agregado a ele os investimentos feitos
        em bolsas de estudo para alunos de mestrado e doutorado, representados pelas despesas no
        pagamentos dos estipêndios, taxas escolares e taxas de bancada. Mesmo assim, o resultado
        final dessa conta não deve chamar a atenção de nenhum economista.
 
        Os aspectos apontados, se reunidos, sugerem três tipos de carência:

            a) certas segmentos dos estudos literários5,  de importância capital para o desenvolvimento
                da pesquisa em Letras, perderam espaço no conjunto da área; a ascensão de outros
                segmentos, igualmente importantes e reveladores da mobilidade e interesse na busca de
                novos conhecimentos por parte dos pesquisadores, não precisa se fazer à custa dessas
                perdas.

            b) há regiões geográficas do país sub-atendidas pela pós-graduação, notando-se o
                desequilíbrio entre litoral e interior, ou entre sudeste/sul e centro-oeste/norte, no que se
                refere à distribuição dos cursos; a desigualdade é compensada por meio da oferta de
                cursos de especialização, financiados na maioria das vezes pelos alunos e que não passam
                pelo crivo do processo bienal de avaliação mantido pela CAPES.

            c) há disparidade entre, de um lado, o número de cursos de pós-graduação em Letras, bem
                como de docentes e pesquisadores atuantes nesses programas e, de outro, a quantidade
                de investimentos recebidos, o que sugere a fragilidade da área, apesar de sua destacada
                dimensão física.

            Dessas observações podem se extrair dois tipos de recomendações:

                – de que se proceda a um mapeamento da área, para que se diagnostiquem, com mais
                   propriedade e maior margem de segurança, as áreas carentes, as desigualdades e os
                   problemas, diagnóstico que propiciará o estabelecimento de uma política mais segura
                   para o real fortalecimento das Letras, sem perdas ou compensações a posteriori;

               – que a área, valendo-se de seu tamanho e da respeitabilidade da tradição que construiu
                  com o passar do tempo, acione seu poder de atuação e interferência nos mecanismos de
                  financiamento à pesquisa, estabelecendo uma proporção adequada entre dimensão física
                  e quantidade de investimentos recebidos



1- Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Letras, da PUCRS, e representante da área de etras e Lingüística no
    CTC da CAPES entre 1991 e 1995.
2- V. a respeito Dubois, Jacques. L'institution de la littérature. Introduction à une Sociologie: Labor, 1978.
3- Essa proposta foi exposta por Silviano Santiago, na ocasião membro do Comitê Assessor do CNPq para a área de
    Letras, em 17 de maio de 1988, durante o III Encontro Nacional da ANPOLL, realizado na UFRJ.
4. A respeito, v. Zilberman, Regina. "Práticas de ensino de inglês - língua e literatura - no Brasil. Questões históricas e
    atualidade", apresentado na mesa-redonda "Reflexão sobre a política educacional e a prática de literatura estrangeira
    no Brasil", durante o XXIX Seminário Nacional de Professores Universitários de Literaturas de Língua Inglesa -
    SENAPULI?ABRAPUI, em 29 de janeiro de 1997.
5. Talvez o mesmo tenha ocorrido na área das Línguas ou da Lingüística, mas nossas observações se atêm aos estudos
    literários.

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