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A orientação científica dada às Letras foi assumida pela pós-graduação, principalmente. Esse destino pode ter sido considerado “natural”, mas dele decorreram algumas conseqüências, a mais flagrante sendo a clivagem estabelecida entre o ensino da e na graduação, voltado à formação de profissionais para trabalharem em escolas de primeiro e segundo graus, sobretudo, e o da e na pós-graduação, que se dirige à pesquisa e à produção de conhecimento. A segmentação pressupõe que da atuação em cursos e disciplinas de graduação não podem advir projetos inovadores, nem resultar matéria nova no campo do saber.
Por essa razão, discutir a política científica na área de Letras é referir-se à pós-graduação, cujas organização e expansão deram-se a partir dos anos 70, no Brasil. Se o campo de abrangência da pesquisa é abarcado pelos cursos de mestrado e doutorado, a delimitação de seu espaço não é tão clara: Letras pode significar tanto a grande área, como uma sub-área, opondo-se nesse caso à Lingüística, como se verifica em listas como a do CNPq, adotada pela CAPES e outras agências de fomento, em que a área de conhecimento é designada “Letras, Lingüística e Artes”. A ANPOLL, associação que congrega programas de mestrado e doutorado, escolhe entre Letras e Lingüística seus filiados.
O fato de que a designação “Letras” deslize do sentido mais geral para o particular, opondo-se nesse caso à Lingüística, não tem significado apenas exterior, como se se pudesse mudar o nome e resolver o problema. De um lado, ele reflete outra das inadequações entre a graduação e a pós-graduação, pois a primeira diploma em Letras tout court, o que não se reproduz no outro nível. De outro, trata-se de uma questão histórica e política, que nasce com os primeiros cursos universitários, ao final da Idade Média, quando Letras abarcava o conhecimento escrito, sem se separar, por exemplo, da história, da gramática ou da retórica. As repartições vieram com o tempo, e Letras foi experimentando duas situações diversas:
– enquanto
área do conhecimento, foi abrindo mão de setores com os quais,
hoje, procura
dialogar, na tentativa de reatar os elos rompidos; a busca de tratamento
interdisciplinar de
algumas questões, seja no campo do discurso ou da literatura, ou
a interlocução com a
pesquisa em História são expressões do esforço
em recuperar a unidade perdida devido às
divisões taxionômicas do conhecimento;
– com a institucionalização
da Literatura na sociedade capitalista2,
Letras confundiu-se com
Belas Letras, deixando de ser conhecimento, para ser considerada criação
e manifestação da
Beleza, entidade atemporal e etérea. A ciência ficou do outro
lado, enquanto expressão de
saber, pesquisa e descoberta mensurável em dados concretos. Desde
então, Letras incorporou
uma dupla faceta, porque não renunciou ao “beletrismo”, que lhe
conferia status artístico,
pouco pragmático porém, no mundo burguês, nem deixou
de cumprir a tarefa, assumida
desde a Antigüidade, de guardiã da língua escrita.
Assim, Letras enquanto grande área conserva resíduos de uma situação, datada da época em que foi hegemônica. Por outro lado, quando designa uma sub-área oposta à da Lingüística, revela-se o esforço dessa última em não se confundir com o “beletrismo” verificável em sua origem e apresentar-se como ciência no sentido restrito – enquanto registro de dados mensuráveis como exatidão e confiabilidade – que aquela palavra tende a adotar no mundo tecnológico moderno.
De todo modo, a intersecção dos sentidos permanece, como se pode verificar na denominação dos cursos de pós-graduação, que se reconhecem, em cerca de 50% dos casos, como de Letras, deixando para as áreas de concentração a escolha entre “estudos literários” e “estudos lingüísticos”, para se empregar aqui uma designação mais geral. Essa situação, que talvez não se reproduza em outras áreas, de falta de definição mais nítida, tem igualmente conseqüências, quando o objetivo é avaliá-la ou discutir os rumos adotados, porque os dados se misturam, indicando ora a tendência genérica, ora a específica.
Quando se pensa a situação específica de Letras, enquanto Literatura ou, melhor dizendo talvez, “não-Lingüística”, verifica-se o seguinte:
a) na passagem
dos anos 70, época de estabelecimento dos programas mais antigos,
para os
anos 90, quando apareceram novos cursos e os antigos ascenderam a doutorados,
deu-se
um deslizamento nas denominações, indicando uma alteração
nos campos de pesquisa.
Assim, se há 20 anos predominavam os programas voltados às
literaturas vernáculas, como
a Literatura Brasileira e a Literatura Portuguesa, ou às literaturas
modernas, diferenciadas
conforme suas línguas, destacando-se as de língua inglesa,
hoje sobressai-se, no mesmo
lugar, a Literatura Comparada. Em outras palavras, vários programas
trocaram as
identidades, assumindo a última citada. A alteração
indica, de um lado, a adoção de outra
perspectiva metodológica, substituindo a ótica das nacionalidades
pela da intertextualidade,
enfatizando questões temáticas, estruturais ou de gênero.
No campo da Teoria da Literatura,
essa modificação foi notável a partir dos anos 80,
com a expansão do Pós-Estruturalismo e
do Desconstrutivismo, e entre suas conseqüências contam-se a
difusão da Literatura
Comparada no Brasil.
Porém, não se pode deixar de notar igualmente que Literatura
Comparada tornou-se uma
denominação conveniente, porque veio a abrigar formações
em nível de doutoramento
obtidas em diferentes universidades situadas no Exterior que só
podiam ser conjuminadas,
se o curso de pós-graduação em que se situassem adotasse
denominação genérica, sem
coloração nacional específica3.
Por essa razão, o novo campo de investigação nem sempre
se somou aos demais, tendo muitas vezes funcionado como seu substituto
ou sucessor. Por
conseqüência, as áreas substituídas sofreram um
retrocesso, sendo patente o encolhimento
do número de cursos em Literatura Portuguesa ou em Literaturas Estrangeiras
Modernas,
reduzidos quase que exclusivamente aos de Língua Inglesa, e esses
mesmo aparecendo em
pequena quantidade, desproporcional, se comparado à expansão
sempre crescente das
titulações relacionadas ao ensino de inglês no âmbito
da graduação4.
A consolidação da Literatura Comparada, contudo, constitui
provavelmente o principal “fato
novo” no âmbito dos estudos literários no Brasil, e mesmo
esse não representa uma
experiência original. Embora tenha crescido o número de programas
de pós-graduação
orientados para a literatura, nenhum deles adota identificações
que revelem investigações de
vanguarda, evitando adotar designações a partir de vertentes
temáticas (como ocorre a
alguns GTs da ANPOLL), gêneros literários (apesar da expansão
dos estudos dirigidos, por
exemplo, à Literatura Infantil, à Literatura Oral e Popular
e à Literatura de Massa), questões
metodológicas e pragmáticas (embora se verifiquem pesquisas
nas áreas de Ensino e
Leitura). Menos ainda são encontráveis cursos de mestrado
e doutorado preocupados em
pesquisar a incorporação às Letras de novas linguagens
e/ou a contribuição daquela área ao
campo da Informática ou da Teoria da Comunicação.
Trata-se, pois, de um progresso
relativamente contido, sugestivo do acanhamento da área, encarada
na perspectiva
específica indicada antes.
b) o encolhimento
de áreas importantes, como Letras Clássicas, restrita às
Universidades de
São Paulo e Federal do Rio de Janeiro (a não ser quando englobada
pela Teoria da
Literatura ou Literatura Comparada, situação em que a diplomação
obtida – os títulos de
mestre e doutor – não registra a especificidade da formação
do pós-graduando), ameaçada
de desaparecer ou tornar-se dependente da aprendizagem exclusiva no Exterior.
O mesmo
tem-se verificado no âmbito da Literatura Portuguesa e, como se afirmou
antes, das
Literaturas Estrangeiras Modernas, especialmente quando não se trata
de expressões
literárias em língua inglesa.
Relativamente à situação geral da área de Letras, observa-se o seguinte:
a) a maior
parte dos cursos de pós-graduação situa-se na região
sudeste, especialmente no
Estado de São Paulo (capital e interior) e na cidade do Rio de Janeiro;
b) na região Sudeste localiza-se igualmente a maioria dos doutoramentos;
c) a região
Sudeste concentra ainda os cursos que vêm obtendo o conceito A, na
avaliação
bienal da CAPES.
As três
constatações, combinadas, sugerem que há concentração
geográfica dos cursos de
pós-graduação,
centralização e reprodução, no plano do funcionamento
dos programas, da
conjuntura
econômica do país, cujas principais atividades industriais
e financeiras se
desenvolvem
na região Sudeste, entre os Estados de São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas
Gerais. Assim
sendo, verifica-se uma disparidade no que diz respeito à distribuição
dos cursos
e seus interesses:
o litoral, especialmente no centro do país, volta-se ao aperfeiçoamento
dos
programas
de doutorado, enquanto que o interior, sobretudo no Centro-Oeste e Norte,
ainda
busca concretizar
projetos de especialização, procurando atender a uma demanda
local.
A atividade
de pós-graduação em Letras no país tem se expandido
continuamente desde que,
nos arredores
da década de 60, apareceram os primeiros cursos em nível
de mestrado a que,
aos poucos,
foram se incorporando doutorados. Ao lado do crescimento quantitativo dos
cursos, foram-se
estabelecendo e ampliando programas e projetos de pesquisa, organizados
em
linhas de
trabalho de notável visibilidade, haja vista o número e a
qualidade dos eventos
científicos
da área, tais como as reuniões bienais dos GTs da ANPOLL,
os congressos anuais e
bienais das
associações científicas, as publicações
em livros e periódicos.
A expressão
mais forte de visibilidade, presença e atuação da
área é o número atual de cursos
de pós-graduação,
que se aproxima da marca dos sessenta programas de mestrado e
doutorado;
estes, somados, excedem a oitenta. A quantidade de docentes e pesquisadores
que
se dedica
especificamente à pós-graduação deve alcançar
o milhar, o que confere solidez ao
grupo, assegura
sua manutenção e afiança sua expansão constante.
Se, contudo, comparamos
esse valor
às verbas que a área, representada por seus cursos, professores,
alunos e
pesquisadores,
recebe dos organismos de fomento, concluímos que sua presença
é pífia.
Dificilmente
os recursos obtidos suplantam o patamar dos 10% dos investimentos feitos
por
agências
federais, como CNPq e FINEP, ou estaduais, como as Fundações
de Amparo à
Pesquisa;
além disso, boa parte do dinheiro destina-se ao financiamento de
eventos científicos,
e não
para a pesquisa. Talvez o número se eleve se for agregado a ele
os investimentos feitos
em bolsas
de estudo para alunos de mestrado e doutorado, representados pelas despesas
no
pagamentos
dos estipêndios, taxas escolares e taxas de bancada. Mesmo assim,
o resultado
final dessa
conta não deve chamar a atenção de nenhum economista.
Os aspectos
apontados, se reunidos, sugerem três tipos de carência:
a) certas segmentos dos estudos literários5,
de importância capital para o desenvolvimento
da pesquisa em Letras, perderam espaço no conjunto da área;
a ascensão de outros
segmentos, igualmente importantes e reveladores da mobilidade e interesse
na busca de
novos conhecimentos por parte dos pesquisadores, não precisa se
fazer à custa dessas
perdas.
b) há regiões geográficas do país sub-atendidas
pela pós-graduação, notando-se o
desequilíbrio entre litoral e interior, ou entre sudeste/sul e centro-oeste/norte,
no que se
refere à distribuição dos cursos; a desigualdade é
compensada por meio da oferta de
cursos de especialização, financiados na maioria das vezes
pelos alunos e que não passam
pelo crivo do processo bienal de avaliação mantido pela CAPES.
c) há disparidade entre, de um lado, o número de cursos de
pós-graduação em Letras, bem
como de docentes e pesquisadores atuantes nesses programas e, de outro,
a quantidade
de investimentos recebidos, o que sugere a fragilidade da área,
apesar de sua destacada
dimensão física.
Dessas observações podem se extrair dois tipos de recomendações:
– de que se proceda a um mapeamento da área, para que se diagnostiquem,
com mais
propriedade e maior margem de segurança, as áreas carentes,
as desigualdades e os
problemas, diagnóstico que propiciará o estabelecimento de
uma política mais segura
para o real fortalecimento das Letras, sem perdas ou compensações
a posteriori;
– que a área, valendo-se de seu tamanho e da respeitabilidade da
tradição que construiu
com o passar do tempo, acione seu poder de atuação e interferência
nos mecanismos de
financiamento à pesquisa, estabelecendo uma proporção
adequada entre dimensão física
e quantidade de investimentos recebidos