O PROJETO PAU BRASIL: NACIONALISMO E INVENTIVIDADE *
O interesse de Oswald
de Andrade pelo nacionalismo nas artes foi anterior ao momento publicamente
mais agitado do Modernismo, como já explicou Mário da Silva Brito,
na sua fundamental História do Modernismo Brasileiro. Em 1915, refletindo
sobre a situação da pintura nacional, Oswald observou que, ao
lado da aprendizagem técnica, era urgente proceder a incorporação
da "cor local" à dinâmica cultural do país, como
estratégia para se consolidar a identidade nacional. Para atingir esse
objetivo, aconselhou a pesquisa da poesia e da arte brasileira na obra dos antepassados,
na fundação e no manancial atávico da raça. Consciente
da necessidade de se ajustar a contribuição estrangeira (a técnica)
à exploração da nossa realidade, anunciou o projeto Pau
Brasil, posto em letra de forma quase dez anos depois, em 1924: "incorporados
ao nosso meio, a nossa vida, é dever deles tirar dos recursos imensos
do país, dos tesouros de cor, de luz, de bastidores. que os circundam,
a arte nossa que se afirma, ao lado do nosso intenso trabalho material de construção
de cidades e desbravamento de terras, uma manifestação superior
de nacionalidade" (1).
Portanto, as iniciativas de atualização do instrumento
de trabalho e a reflexão sobre o Brasil estavam em andamento muito antes
da Semana de 22. A supervalorização desse "minuto
delirante de remodelação artística" se torna muito
artificial, na medida em que este evento aparece como o fato mais importante
do Modernismo. Esta semana tão comemorada não inaugurou o movimento
modernista, foi apenas uma festa planejada que serviu para anunciar o processo
de construção de uma nova mentalidade. Na intenção
de minimizar o alcance dessa rebelião estética, críticos
mais apressados e hostis às rajadas modernizantes analisam o movimento
pelo tom do barulho destes dias de brincadeira. Ficam assim desfocadas todas
as iniciativas daquela fase de preparação, onde se traçaram
as idéias e as teorias responsáveis pelo verdadeiro amadurecimento
do Modernismo.
Acreditamos que os dois grandes mentores do Modernismo - Oswald
de Andrade e Mário de Andrade - pressentiram de imediato a necessidade
de se encontrar, por meios próprios, um correlato das propostas de recuperação
da identidade cultural posta em discussão pela Vanguarda histórica.
Talvez, Oswald tenha se antecipado aos demais companheiros, mas este é
um problema de pequena monta. O fato é que na comportada Conferência
realizada na Sorbonne em 1923 - "L'effort intellectuel du Brésil
contemporain" (2) _ Oswald sistematizou, ainda que numa exposição
ornada de contradições e frases de efeito, o programa que traçaria
poeticamente no Manifesto. Antecipou discussões posteriores tais como:
aceno à retomada de um esforço anterior de criação
d uma língua independente; a idéia de recuperação
do primitivo, inspirada na revalorização das manifestações
da arte negra, empreendida pela Vanguarda européia. O panorama realizado
por Oswald foi superficial e ainda preso a padrões conservadores de avaliação;
teve sua importância histórica por se constituir na primeira explanação
para estrangeiros da vontade moderna dos brasileiros de buscar feição
cultural própria.
Depois da tumultuada conferência de Graça Aranha
na Academia Brasileira de Letras, recheada de idéias difíceis
de serem comungados por todos os modernistas, era esperado um fato novo que
explicitasse as posições conflitantes no seio do Modernismo. Posições
estas relacionadas sobretudo com o grupo do Rio, liderado pelo autor de Canaã,
a quem Mário de Andrade, dois anos depois daquela conferência,
em carta aberta de 12 de janeiro de 1926, apontou os pontos de divergência:
"cria e prega no seu ideário incurável um brasileiro com
errata no rabo, talvez mais bonito, não discuto, mais ideal porém,
integrado no cosmos e vivendo em perpétua Alegria" (3). O projeto
Pau Brasil, conhecido nesta época apenas a nível teórico
(o Manifesto), tinha sido objeto de veladas críticas por parte de Graça
Aranha, com resposta pronta do seu criador em artigo ferino, "Modernismo
Atrasado" (4). As objeções se explicavam em parte porque
esse projeto oswaldiano começava a contribuir para modificar no Modernismo
a "tendência carro de bois que se estava tornando incômoda".
Como bem observou Prudente de Moraes, neto: "o manifesto da poesia Pau
Brasil, de 1924, assinalou o início da desagregação do
Modernismo como movimento, como ação conjunta de grupo, em defesa
de idéias comuns" (5). A partir daí evidenciou-se a sua multiplicidade
de liderança, idéias e realizações. Todavia, o que
mais irritou o Sr. Graça Aranha foi a aceitação pacífica,
por parte dos seus antigos comandados, de outros condutores do movimento.
Um dos mais argutos críticos dos anos 20-30,
Sérgio Buarque de Hollanda, iluminou a discussão sobre as origens
das primeiras dissenções modernistas. Manteve animada polêmica
na imprensa da época juntamente com outro critico não menos importante
- Prudente de Moraes, neto. No artigo "0 Lado Oposto e o Outro Lado"
(6) foram revelados os verdadeiros "pontos de resistência" contra
as chamadas "ideologias do construtivismo" e os primeiros "germens
de atrofia", no seio do Modernismo brasileiro. Em pleno ano de 1926 dois
anos depois de iniciada a onda cultural nacionalizante - Sérgio Buarque
ainda apelava para a pesquisa de uma "Arte de expressão nacional",
responsabilizando muitos escritores modernistas pelo incentivo à "literatura
bibelô", praticada por aqueles que permaneciam "do lado oposto":
os representantes deste lado - o Academicismo em todas as suas modalidades -
"falam uma linguagem que a geração dos que vivem esqueceu
há muito tempo". É oportuno destacar que nesse ano foram
lançadas as principais obras modelos deste tipo de academicismo que Sérgio
Buarque denunciava: Toda América de Ronald de Carvalho, Sherazade de
Guilherme de Almeida. Nas resenhas sobre a obra de Oswald, a tônica das
exigências era também a realização de uma arte "que
traduzisse um anseio qualquer de construção". E nos comentários
em torno da "poesia bibelô" foi Justamente esta atitude intelectualista
também resente nos resenhistas do Miramar e do Pau Brasil, o que mais
desagradou a Sérgio Buarque. Prudente de Moraes, neto, foi mais objetivo
em relação à natureza das primeiras dissidências
modernistas: "a poesia Pau Brasil perturbava os que mais se diziam modernistas,
Pau Brasil para eles era uma pilhéria engraçada. Nada mais".
Sérgio Buarque fez restrições às
críticas de Mário de Andrade ("quando estas coincidem com
as idéias de Tristão de Athayde") e as de seus discípulos
mineiros de A Revista, por contribuírem para o culto da poesia brilhante.
Identificou e apoiou o "outro lado", aquele da resistência à
ideologia do construtivismo: Oswald de Andrade "um dos sujeitos mais extraordinários
do Modernismo brasileiro, ao lado de nomes como Alcântara Machado, Prudente
de Moraes, neto e Couto de Barros". A atuação do crítico
modernista Tristão de Athayde foi analisada nos anos 50 por Oswald e
duramente criticado também: "retardou a nossa posição
intelectual e forneceu vitaminas a certo denuncialismo gratuito, teimoso e inútil".
Inegavelmente a polêmica criada pelos dois críticos estava ligada
à recepção do projeto Pau Brasil. Censurou os escritores
mais envolvidos com o Modernismo - Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Tristão
de Athayde - por se comportarem em relação a este projeto, como
os acadêmicos de retórica vazia. Tristão, por sua vez, respondeu
as objeções de Sérgio Buarque no artigo "Construtivismo/Destrutivismo"
(7).
Examinando o panorama da poesia da década de 20, observamos
afinidades com o roteiro traçado por Oswald, a fim de dar a nossa criação
o "status" de poesia de exportação. Foi este programa
estético, quê, a nível de Brasil, determinou a fisionomia
nova da literatura moderna. O "Manifesto Pau Brasil", além
de ter provocado discussões sobre o surgimento da consciência nacional,
conseguiu atualizá-la; rediscutindo a realidade com uma linguagem novíssima.
E o esquema poético traçado para tornar a poesia ágil,
objetiva e sintética constitui-se num roteiro seguido, até contra
vontade, pelos poetas mais jovens. Na análise da poesia dessa época
levamos em conta uma história de mudanças. E algumas obras são
símbolos dessa história: Paulicéia Desvairada, no primeiro
momento do Modernismo e Pau Brasil na fase em que o movimento acentua o interesse
pelo nacionalismo. Uma amostragem colhida aleatoriamente nas principais revistas
do Modernismo é suficiente para ilustrar o que caracterizou a nossa poesia
antes do Pau Brasil: da poesia penumbrista de Ronald de Carvalho de "Jardim
tropical" à exteriorização dos índices de modernidade
e do cotidiano, que marcou as produções do Mário e mais
radicalmente à paisagem urbana do universo temático de "Crepúsculo"
e de outros poemas de Luis Aranha, todos lançados pela revista Klaxon
(l922). A poesia modernista até 1924, ano marco do projeto Pau Brasil,
esteve enfaticamente ocupada em expressar o cotidiano, o progresso, a vida moderna,
por meios expressivos novos, utilizando-se dos recursos de associações
e da simultaneidade, chegando em muitos casos a um virtuoso formalismo. Foram
as primeiras tentativas, sem fisionomia própria, de acertar o passo com
a marcha do mundo ocidental de atualização estética. Uma
produção poética que se caracterizou por uma comunhão
feliz com o presente; por uma aceitação passiva e idolatrada de
sua época. O poeta modernista ficou de bem com o presente, como lembrou
Tristão de Athayde. A preocupação com a brasilidade ainda
muito tímida, perdida na vontade de apontar os prenúncios da ingerência
dessa modernidade no comportamento e na paisagem urbana, começou evidentemente
no Modernismo com a Paulicéia Desvairada.
Com o Manifesto e o livro Pau Brasil surgiram um novo conceito
de nacionalismo e um tratamento de vanguarda em relação à
linguagem: um programa e uma prática de recuperação de
materiais desprezados e esquecidos da nossa tradição lírica
e de fixação, com simplicidade, dos fatos poéticos da nacionalidade,
Oswald repôs em discussão o velho problema da diferença
da língua portuguesa, iniciado na sua Conferência de 1923, ou melhor,
retomou o esforço de criação de uma língua independente,
reivindicado de forma mais incisiva no Manifesto: "a contribuição
milionária de todos os erros", "língua nacional, neológica",
"como falamos". Na poesia nacional posterior ao "Manifesto Pau
Brasil" predominou exatamente a idéia de recuperação
de todos os elementos diferenciadores ali sugeridos: modismos populares, linguagem
cotidiana, nacionalização do vocabulário, estrangeirismo,
desobediência à gramática. Mário justificou a adesão
a esse programa: "escrevo língua imbecil, penso ingênuo só
para chamar atenção dos mais fortes (... ) pra este monstro mole
e indeciso que é o Brasil" (8). Aliás, a princípio,
foi um grande entusiasta do projeto Pau Brasil: "estou inteiramente Pau-Brasil
e faço uma propaganda danada do pau-brasilismo" (9).
A simplicidade da poesia Pau Brasil foi a solução
apontada para se erradicar "a praga da literatice que assolava a cultura
nacional", segundo Paulo Prado e, como justificava Oswald, oposição
ao "lntelectualismo falsificado e postiço". No meio da baboseira
do discurso floreado, inconsistente e vazio de idéias, Paulo Prado via,
nessa poesia, o verdadeiro roteiro de um começo de infindáveis
realizações práticas, amornando o nosso indestrutível
mal literário: a literatice (10). Nesse aspecto foram unânimes
as observações dos críticos que admitiram realmente com
a poesia Pau Brasil a libertação da poesia brasileira de todos
os artifícios. Conquista esta tentada antes por Mário de Andrade
em Paulicéia Desvairada, sistematizada no "Prefácio Interessantíssimo"
e finalmente conseguido por Oswald.
Por ocasião do lançamento do seu primeiro livro
de poemas, seis resenhas se destacaram na imprensa especializada pela grande
afinidade de idéias e pelo prestígio dos nomes: Tristão
de Athayde, Mário de Andrade, Afonso Arinos, Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade e Martins de Almeida (11). Pelo elenco citado podemos vislumbrar
a repercussão que certamente obteve entre seus contemporâneos essa
obra. Ainda que sem concordar com a argamassa estético-ideológica
que presidia seu projeto criativo, todos foram unânimes em evidenciar
a novidade e a originalidade do Pau Brasil. Por outro lado, também coincidiram
na tentativa de demonstrar que esse projeto poético pecava pela falta
de lirismo, em decorrência do seu acentuado "formalismo", do
"gosto pela forma" e "pelo efeito". Acreditamos que o despojamento
da poética oswaldiana fosse demasiadamente radical e novo para a época.
Desconcertante até, precisando de tempo para ser absorvido. Ainda hoje
a poesia do Pau Brasil e o romance Memórias Sentimentais de João
Miramar são arrolados como modelo e citados como exemplo de atitude radical
de renovação da linguagem. É possível que alguns
poemas-minuto, na ânsia de libertar a poesia brasileira de artifícios,
se revelem material inacabado ou em processo de elaboração; ou
melhor, se configurem apenas como exemplo/sugestão de proposta poética
em desenvolvimento. O autor inclusive tinha consciência da transitoriedade
que marcava o seu livro: depósito de matérias primas de poesia
à espera da manufatura transformadora (12). É preciso frisar que
o aspecto de superficialidade às vezes embutido nessa simplicidade não
esteve em questão nas resenhas e nem poderia estar. Muito pelo contrário,
salta aos olhos a densidade de vários desses poemas comprimidos ("3
de maio", "Ditirambo"). A apresentação de subsídios
poéticos que oferecia o Pau Brasil, concretamente para o poeta, foi roteiro
que se configurou na construção inicial do Primeiro Caderno (l927),
passando a uma concepção definitiva na maturidade dos "Cânticos
dos cânticos" e de "0 Escaravelho de ouro" (l942-1946).
Afonso Arinos, exprimiu o sentimento de muitos companheiros modernistas: "no
primeiro instante a gente fica perturbado. Quase se desconfia de que aquilo
é deboche". Esta impressão de ausência de lirismo e
exagerada rapidez na verdade também está ligada a um padrão
de poética, a uma compreensão do que seja lirismo. Caberia verificar
o conceito de poesia e de lirismo para os modernistas e até que ponto
Oswald fugia dos modelos estéticos usuais. A pista para estas respostas
pode ser encontrada nas resenhas e em outros textos críticos da época.
O ensaísta e poeta Sérgio Milliet, no discurso em homenagem aos
60 anos de Oswald de Andrade, se penitenciou da fria recepção
dada ao livro. Mostrou principalmente que foi a atitude "antidiscursiva"
da poesia oswaldiana a incorporação mais desnorteante para a época:
"Confessamos porém que era difícil ao letrado brasileiro,
que se abeberava na sub-literatura do neo-parnasianismo, entender essa poesia,
toda de extremo requinte, de muito pudor e emoção, tudo escondido
sob a caricatura da piada (... )" (13). Havia um tipo de produção
modernista apreciada pelos jovens como modelo de "poesia brasileira verdadeiramente
pura, forte, construtora" que "vinha da caudal eloqüente do sr.
Mário de Andrade" ou ainda como queria Sérgio Milliet na
vertente da poesia de Ronald de Carvalho - "Sadia. Levemente eloqüente,
límpida e livre. E nacionalista". Dominava entre os modernistas
a tese da arte construtiva, que não consistia apenas na noção
de poesia artesanalmente elaborada ou tecnicamente bem concebida. Na realidade,
uma arte construtiva brasileira, para Drummond, Bandeira, Afonso Arinos e outros,
certamente não deveria ter como trajeto o viés do primitivismo
colocado em oposição à erudição artificial.
Além de que os modernistas não esqueceram a questão do
ritmo e da metrificação; chegaram a admitir que o grande problema
de Oswald foi não ter passado pelo "serviço militar da métrica".
O descaso pelo ritmo invocado por alguns críticos depois foi minimizado;
Bandeira, por exemplo, mudou de opinião a respeito do efeito dos deslizes
técnicos do seu colega: "algumas excursões arrasadoras no
terreno da poesia com uma inabilidade técnica de que soube fazer um dos
elementos mais cativantes da sua poesia" (14).
De certo modo a celeuma em torno da reivindicação
de uma atitude construtiva por parte dos intelectuais brasileiros é velha.
No Brasil, os escritores sempre foram, antes de tudo, homens de ação,
contribuintes e participantes do processo de formação da nacionalidade.
A insistência em negar atributos construtivos à poesia Pau Brasil
foi questionada brilhantemente na citada polêmica "0 Lado Oposto
e o Outro Lado". Sérgio Buarque e Prudente de Moraes, neto colocaram
o problema de forma correta. Não tinha sentido ignorar ou reduzir a validade
e o alcance da "estética da necessidade" oswaldiana, apenas
porque o projeto incomodava ou porque representava no momento "o ponto
de resistência necessário, indispensável contra as ideologias
do construtivismo".
Os resenhistas de Oswaid, principalmente o poeta Drummond
(15), admitiam como solução para a poesia brasileira a reação
contra o sentimentalismo e o romantismo pela cultura cada vez mais intensa.
Drummond criticou muito este processo de primitivização e "desintelectualização"
da arte e analisou o trabalho de Oswald dentro desse raciocínio, como
um sacrifício, em prol de uma poesia com cor e cheiro de Brasil. Tristão
de Athayde engrossou o coro dos descontentes. Posicionou-se veementemente contra
aquele processo que a poesia Pau Brasil ameaçava instaurar, privilegiando
os elementos instintivos, a vulgaridade, o puro balbuciamento, realizando as
vezes uma "tolice engraçada e inofensiva", que como o Manifesto,
no seu entender, iria passar inteiramente desapercebida. Tristão achava
que Oswald, numa "forma pindorâmica de um anseio europeu", abolia
todo esforço poético de beleza e construção: provou
por a + b em 1925 que a "desintelectualização" da arte
moderna não foi um privilégio dos nossos modernistas; muito antes,
em 1904, os europeus deliravam de emoção diante da arte negra.
Todavia, o crítico esqueceu de acrescentar um detalhe importante, isto
é, que Oswald e os modernistas conseguiram erguer na hora certa e fazer
vingar o sentimento de nacionalismo artístico de maneira muito criativa.
Em determinados momentos, a crítica se mostrou preconceituosa.
Além do problema da erudição, os resenhistas, bateram consonantemente
em outra tecla: a da piada. Não perceberam que Oswald usava e abusava
da piada, mas como instrumento crítico e como artifício poético.
Pouco antes da sua morte o escritor fez um balanço do alcance da sua
obra e lembrou: "o que desconcertava meus adversários é que
minha literatura fugia ao padrão cretino então dominante. E chamavam
a isso de "Piada"...(16). Mesmo entre os escritores modernistas mais
chegados a Oswald havia preconceito em relação à sua produção
literária, Dizia Mário, "noto certa ignorância no público
e na crítica em tomar a sério Oswald de Andrade" (17). A
brincadeira, a blague, o sarcasmo marca de alguns dos seus textos tornaram-se
uma espécie de estigma, prejudicando às vezes a recepção
imparcial das suas idéias.
A proposta oswaldiana, mesmo visceralmente contrária
em termos de roteiro àquela da "poesia bibelô", trouxe
implícita na sua estética um empenho construtivo: "a primeira
construção brasileira no movimento de reconstrução
geral. Poesia Pau Brasil". Oswald fixou os fatos poéticos da nacionalidade
de forma simples, amoldando uma "expressão rude e nua da sensação
e do sentimento numa sinceridade total e sintética". A poesia Pau
Brasil, advertia, "dera o tom para a província (Carlos Drummond
de Andrade - Jorge de Lima), para a pequena burguesia atarantada das cidades
(Álvaro Moreyra - Murilo Mendes), mesmo para os carbonos racistas e políticos
de Pau Brasil (Guilherme - Ronald - Menotti - Plínio Salgado)" (18).
E, mais do que evidente, a valorização do conhecimento também
esteve em pauta ~ "a alegria dos que não sabem e descobrem"
- e foi proposta em termos mais equilibrados, recorrendo a outras fontes da
sabedoria: "Aprendi com meu filho de 10 anos/Que a poesia é a descoberta/Das
coisas que eu nunca vi."("3 de maio").
Quanto à prosa de Oswald de Andrade, o seu tão
esperado Memórias Sentimentais de João Miramar encontrou a crítica
desprevenida em relação aos rumos que a moderna narrativa estava
tomando. Foi unânime a perplexidade diante do desbaratamento da seqüência
normal da sintaxe e da desarticulação geral do conjunto provocados
pelo romance. Apesar das restrições, Miramar teve grande repercussão
no meio modernista. As críticas de modo geral foram simpáticas
ao livro. Dois mineiros, Carlos Drummond de Andrade e Martins de Almeida, escrevendo
para jornais cariocas, se aproximaram na avaliação do trabalho
pioneiro de Oswald de reformador do nosso romance e em admitir que Miramar foi
"o único livro de prosa verdadeiramente moderna" (19). Tanto
Drummond como Martins de Almeida não discutiram o problema do nacional,
ou melhor, da contribuição do romance para a criação
de uma consciência nacional como apontou Mário de Andrade. Drummond
preferiu discutir no romance o "abrasileiramento exagerado" com laivos
românticos; coincidiu com Mário ao observar os índices do
tempo, a vontade de representar a época atual. Usaram quase a mesma expressão
- sintoma do romantismo - para identificar características diferentes
nessa obra. Mário dedicou um bom trecho de seu artigo examinando o trabalho
expressivo da narrativa miramarina (20). Os dois resenhistas não associaram
este procedimento ao da Vanguarda histórica, preocupada em retratar fielmente
o seu tempo. O sintoma romântico correspondia ao desejo de abrasileirar-se,
como mostrou Drummond, considerando positivo o fato de João Miramar viajar
à Europa com olhos americanos e a cor local da narrativa repercutir na
humanidade dos personagens. Por outro lado, considerou "a linguagem Pau
Brasil, toda em vozes simples e puras, brotando do instinto, da sentimentalidade
e da inteligência primitiva dos brasileiros", eminentemente artística
e personalíssima. Para Mário, o artístico, o personalíssimo
foi o caminho encontrado pelo romancista para a volta ao material, para apresentação
da substância ficcional ou poética de forma pura e simples, isto
é, "em toda sua infante virgindade". Na realidade esse achado
da obra oswaldiana, assumindo criticamente a ingenuidade contida nas notícias
dos cronistas, na tradição oral, revelou uma maneira alternativa
de enfrentar "a obsessão lírica da matéria",
diferente da fórmula encontrada pela Vanguarda européia. Operando,
portanto, com a matéria lírica ainda em estado bruto, contribui
Oswald, no entender do autor de Paulicéia Desvairada, para colocar a
consciência nacional no presente do universo, permanecendo as Memórias
eminentemente brasileiras pelo "colorido, ambiente, certa melancolia e
inalterável bom humor", As resenhas de Mário de Andrade dissecaram
criticamente o romance e a poesia Pau Brasil, mas por questão mesmo de
justiça, não negaram a contribuição de Oswald. Uma
atitude de simpatia aliada à vontade de análise crítica
séria, que não dissimulou dúvidas como aquelas expressas
num texto publicado postumamente em 1972: "Que divertem, não posso
discutir. Nem atacar muito porque afinal das contas estas artes é um
mudar de roupa sem parada e só... Estarei pessimista? Isso é impossível.
Muito simples: tenho confiança nas roupas. De bom alfaiate. Oswald é
alfaiate bom". Outros resenhistas também souberam avaliar o alcance
dessa obra e o seu papel de orientação e de modelo. Plínio
Salgado foi um deles. Sua avaliação não se limitou à
análise do livro. Dois anos depois publicou O Estrangeiro, ao nível
da linguagem, espelho da contribuição do trabalho de Oswald (21).
Nem todos foram capazes de enxergar em Miramar uma realização
definitiva, fadada ao sucesso e insistiram em definir o romance fundamentalmente
como "uma tentativa curiosa de estilo". Prudente de Moraes, neto foi
um dos poucos a perceber o acerto oswaldiano em reverter um processo poético
equivocado: "Sua contribuição fundamental, que imprimiu ao
espírito brasileiro uma direção decisiva, foi a conversão
de valores até então havidos como negativos - porque eram diferentes
dos valores cosmopolitas - em positivos, por uma aceitação que
parecia impraticável" (22).
É preciso que se modifiquem opiniões cristalizadas
por uma história e crítica literárias, cujo procedimento
tem sido geralmente ignorar as fontes primárias, os textos de época.
Por esta ótica, a obra de Oswald não teve a repercussão
que era esperada entre os seus contemporâneos; sendo assim, não
teria agido no processo de desenvolvimento do Modernismo, nem mesmo atuado como
geradora de novos procedimentos e novas práticas de vanguarda na prosa
e na poesia. Examinando-se essas fontes fica patente a influência decisiva
de Oswald sobre sua geração. Nas entrelinhas dos poemas ou da
ficção perpetrada pelos seus contemporâneos, nas declarações
informais dos modernistas o eco do projeto Pau Brasil é bem perceptível.
Os companheiros modernistas também fizeram uma avaliação
positiva sobre o alcance desse projeto e sua eficácia. Mário de
Andrade foi um deles. Em carta a amigos admitia a sua condição
inteiramente Pau Brasil e a disposição de fazer proselitismo,
contaminando os mais brilhantes 'discípulos. Drummond, era um desses
discípulos. E nessa época começava a dar forma ao seu primeiro
livro de poemas, saído, na realidade, em 1930 - Alguma Poesia - que nos
anos 24 e 25 tinha o "maravilhoso" título Minha Terra tem Palmeiras.
(Muitos dos seus poemas foram publicados em A Revista (l925) com a informação
de que faziam parte do livro Minha Terra tem Palmeiras).
Finalizando, a palavra mais uma vez fica com o crítico
Prudente de Moraes, neto que sintetizou muito bem o papel de Oswald no cenário
do Modernismo: com a aparência de uma "blague" literária
sem maior significação, Oswald de Andrade nos convidava, pois,
a uma revolução do espírito", pensando no renascimento
do Brasil, nas novas expressões de pintura, de escultura, de poesia e
de pensamento (23).
*Este texto faz parte de um ensaio mais amplo sobre Pau Brasil e Memórias Sentimentais de João Miramar.
01. Lanterna mágica. Em prol de
uma pintura nacional. O Pirralho, São Paulo, 2 jan. 1915.
02. A conferência foi publicado na Revue de L'Amerique Latine, Paris,
2(5): 197-207, 1923; na Revista do Brasil, São Paulo, 24(96):383-9, 1923;
foi reproduzido parcialmente em Marta R. Batista e outros Brasil 1º, Tempo
Modernista/Documentação. São Paulo, USP/IEB, 1972. p.208-16.
03. Carta Aberta a Graça Aranha. A Manhã, Rio de Janeiro, 12 jan.
1926. Cf. também Meu despacho com Graça Aranha. A Manhã,
Rio de Janeiro, 3 fev. 1926.
04. A Manhã, Rio de Janeiro, 26 jun. 1924.
05. Literatura de idéias. ln: Georgina Koifman, org. Cartas de Mário
de Andrade a Prudente de Moraes, neto. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
p.307-21. 06. Sergio Buarque de Hollanda. O lado oposto e outros lados. Revista
do Brasil, São Paulo, 1(3), 15 out. 1926. Prudente de Moraes, neto. A
Manhã, Rio de Janeiro, 30 out. 1926.
07. Estudos. Rio de Janeiro, A Ordem, 1929. p. 170-80. (série, I).
08 Georgina Koifman, org. Cartas... op. Cit.
09. Carta de Mário para Tarsila - datada de São Paulo, l dez.
1924. ln: Aracy Amaral. Tarsila sua Obra e seu Tempo. São Paulo, Perspectiva/E
DUSP, 1975. p.369-70.
10. Paulo Prado. O momento. Revista do Brasil, São Paulo, 25(100): 289-90,
abr. 1924.
11. Afonso Arinos. Oswald de Andrade. Pau Brasil. Revista do Brasil, São
Paulo, 30 set. 1926. Manuel Bandeira. Poesia Pau Brasil. O Mundo Literário,
São Paulo, 26. 107-8, 1924. Mário de Andrade, Oswald de Andrade.
Pau Brasil. ln: Marta R. Batista e outros. op. cit. p. 225- 32. Carlos Drummond
de Andrade. O homem do Pau Brasil. ln: Marta R. Batista e outros. op. cit. p.238-
39. Martins de Almeida. Pau Brasil A Noite. 17 dez. 1925. ln: Marta R. Batista
e outros. op. cit. p. 245- 7. Tristão de Athayde. Poesia Pau Brasil.
O Mundo Literário. Rio de Janeiro, 4(40): 95-7, 5 ago. 1925.
12. Pau Brasil. Entrevista a O Jornal, Rio de Janeiro, jun. 1925.
13. Sergio Milliet. Jornal de S. Paulo, 26 mar. 1950.
14. Manuel Bandeira O humor na moderna poesia brasileira. ln: Poesia e Prosa.
Rio,de Janeiro, Aguilar, 1958. v. 2.
15. O homem do Pau Brasil. A Noite, Rio de Janeiro, 14 dez. 1925. ln: Marta
R. Batista e outros. op. cit. p. 238-9.
16 Oswald fala a posteridade. Entrevista ao Quincas Borba, São Paulo,
2(5): 1-2, jan. 1955.
17. Mário de Andrade. Oswald de Andrade. Pau Brasil. ln: Marta R. Batista
e outros. op. cit. p. 225-32.
18. Texto incompleto, manuscrito a tinta, em folhas soltas de bloco. Centro
de Documentação do IEL-UNICAMP. Acervo Oswald de Andrade.
19. Nacionalismo literário. O Jornal, Rio de Janeiro, 23 jan. 1925. Martins
de Almeida. Pau Brasil. A Noite, Rio de Janeiro, 17 dez. 1925. ln: Marta R.
Batista e outros. op. cit. p. 245-47.
20. Mário de Andrade. Oswald de Andrade. Pau Brasil. ln: Marta R. Batista
e outros. op. cit. p. 225-32.
21. Prudente de Moraes, neto publicou uma resenha sobre o O Estrangeiro, mostrando
a influência de Oswald de Andrade no romance de Plínio Salgado.
Revista do Brasil, São Paulo, 1(4):41-2, 30 out. 1926.
22. Prudente de Moraes, neto. Literatura de idéias. op. cit. p. 317.
23. ld. lbid. p. 320-1.