Oswald de Andrade,
A LUTA
DA POSSE
CONTRA
A PROPRIEDADE
A investida contra o modelo patriarcal de sociedade sustentado na propriedade de objetos e de bens culturais cunhou toda a obra de Oswald de Andrade. Na década de 20, pesquisando sugestões para um novo sistema, Oswald estabeleceu pilares diferentes: Estado sem classes, direito materno, abolição da propriedade privada. Pregou em tom de Manifesto o desejo de volta a uma espécie de Idade de Ouro, o Matriarcado de Pindorama ("Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente"./ "Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens dignários"). Antes, consolidara com a poesia paubrasil e a prosa de João Miramar um processo de criação peculiar e à primeira vista pobre, porque centrado na incorporação de material já pronto e trabalhado ("A riqueza dos bailes e das frases feitas").1 Na trilha das manifestações da Vanguarda estética do início do século, engajou-se na denúncia e na critica ao mito da propriedade, radicalizando os exercícios de experimentação estética, de renovação da linguagem e os processos de transgressão da dinâmica constitutiva da obra de arte. O trabalho com a linguagem (por exemplo, a prática da colagem, da citação, o recurso à paródia, ao cômico e ao trocadilho) particularmente desmistificou o conceito de propriedade da tradição cultural, ao tratá-la como uma brincadeira, melhor dizendo, como um jogo. 2 A anarquia brincalhona do lúdico serviu de meio de divulgação por excelência de suas novas idéias e de instrumento de discussão da relação posse-propriedade.
l Em "Marco Zero de Andrade"
(O Estado de S. Paulo, 24 out. 1964, Supl. Lit.), D. Pignatari observou
que a poesia de Oswald é a "poesia da posse contra propriedade",
em virtude de incorporação de elementos da vida cotidiana da época
e do despojamento da construção.
2 A realização deste texto foi fundada na leitura do trabalho
de F. Masini, Dialettica dell'avanguardia, Bari, 1973.
Na fase histórica do Modernismo
essa crítica emergiu no plano conceitual, muito de passagem em trechos
da Revista de Antropofagia ("0 Brasil é um grilo de seis
milhões de km quadrados talhados..." / "A posse contra a propriedade");
informalmente, no corpo da revista o assunto voltou à baila por meio
de aforismas ou através de citações do tipo: "A nossa
teoria da posse contra a propriedade. O contato com o título morto. O
grilo". Prioritária naquele momento do debate foi a dessacralização
do objeto artístico e do seu modo de concebê-lo, daí a insistência
na paródia-colagem que se constituíra em módulo construtor
da poesia pau-brasil e da dupla Miramar-Serafim.
É bem verdade que
a manifestação do social na produção oswaldiana
percorreu etapas surpreendentemente diferentes. A estratégia da fase
agitada do Modernismo optou por dar ênfase à subversão estética,
mas de qualquer modo o questionamento da arte oficial andou de mãos dadas
com a insatisfação pelo sistema dominante. A partir do período
pau-brasil, Oswald reivindicou a incorporação dos elementos rústicos
e aparentemente pobres, como primeiro passo para se criar uma arte nacional
("A cozinha, o vatapá, a dança. O carnaval, o sertão
e a favela"). Recomendou a pesquisa desses elementos simples como fonte
de inspiração, buscando sugestões de trabalho na pobreza
de expressão, na "inocência construtiva" do índio,
do negro, da criança, do homem comum, frisando simultaneamente com grande
tato o lado social da pobreza ("Os casebres de açafrão e
de ocre no verde da Favela, sob o azul cabralino, são fatos estéticos").
Na década de 40, retomou a elaboração de programas esboçados
anteriormente na fase da Antropofagia, pretendendo consolidar a outra faceta
do seu projeto: a cultural. Dedicou-se à produção de ensaios,
teses, pensando em desenvolver de forma sistematizada o que antes fora ludicamente
trabalhado, misturando, agora, lances de abordagem de cunho filosófico,
sociológico e antropológico. Discutiu com maior profundidade temas
variados, tais como a interiorização da literatura, a formação
do mundo patriarcal, a exploração capitalista e sobretudo a relação
posse-propriedade. Apoiado em vasta e heterogênea bibliografia de pensadores
clássicos viu no Capitalismo a melhor parte da nação condenada
à pobreza e ao excesso de trabalho. Apostou em um sistema calcado na
"economia do ser", caracterizado pelo equilíbrio social, adotando
como regra de sobrevivência o serviço prestado e o beneficio retribuído.
Ao contrário da "economia do haver", no seu entender tão
bem desmoralizada por Marx, vigoraria na "economia do ser" a distribuição
imediata e equânime dos bens adquiridos ou conquistados. Nessa economia
matriarcal vislumbrou novos elementos positivos, principalmente o "sentimento
do outro, de ver-se o outro em si". Simplificando, um aguçado senso
de solidariedade que preferiu chamar de "alteridade".
A referência direta
aos pobres na obra de Oswald de Andrade aflorou com maior evidência na
discussão da relação posse-propriedade. Assim acontecera
na Revista de Antropofagia, quando se falou dos elementos marginais da sociedade,
e em A Revolução Melancólica de forma ampliada,
sobretudo no primeiro capítulo. A partir do seu engajamento político-partidário,
começara a elaborar mais concretamente as idéias e conceitos dos
seus projetos, sem conseguir, no entanto, imprimir a este discurso a alegria
e o humor de antes. O combate de Oswald à noção de propriedade,
em termos estéticos mudou de tom, para não dizer que arrefeceu
um pouco, se compararmos a revista e os dois volumes de Marco Zero (A
Revolução Melancólica e Chão). É que
nas produções da década de 20 ocorrera a combinação
perfeita do jogo de linguagem e conceitos resultando na harmoniosa vivacidade
do discurso. Depois de 30, embora permanecessem o deboche e a ironia (O Rei
da Vela) sobressaiu muito mais o malabarismo dos argumentos expresso num
jogo maneirista, às vezes, de linguagem comportada e convencional.
Oswald era de opinião
que o homem na sociedade burguesa significava a relação com sua
propriedade, sendo assim pretendeu traçar um quadro humano a partir da
concepção de indivíduo fabricado e dominado com base no
seu objeto, admitindo a posse como uma relação 3 ("A família
requer a propriedade e vice-versa. Quem não tem propriedades deve ter
prole..." / "Esse homem possuía uma casinha. Tinha o direito
de ter família. Perdeu a casa. Cavasse prole." - O Rei da Vela).
No primeiro capítulo - "A posse contra a propriedade" - de
A Revolução Melancólica a narrativa foi montada
a partir da idéia estrutural do pensamento de Oswald: a eliminação
da propriedade e a instituição da posse. A camada da sociedade
economicamente menos afortunada foi manuseado para articular os fios da matéria
ficcional e ajudar a descrever as peculiaridades do Capitalismo transplantado
para o Brasil.
3 No seu ensaio Masini realiza uma análise interessante sobre esses problemas no escritor alemão C. Einstein (ver indicação anterior, pp. 17-86).
Estava em jogo, na passagem em questão,
a disputa entre aqueles que falsificaram o título de propriedade ("essas
terras que o Majó diz que é dele mas non é") e os
posseiros ou colonos que queriam a terra para produzir ("os disputadores
da terra contra os senhores que tinham o papel selado com o selo do império").
Com olhos livres para ver
o mundo sob novos ângulos, como proclamava seu primeiro Manifesto, os
elementos socialmente desassistidos foram focalizados de forma peculiar. Basta
que se tome como referência aquele capítulo Marco Zero.
Combinando teorias de Marx, Nietzsche e Freud, apresentou a classe explorada
num contexto incomum sem repetir os esquemas costumeiros da chamada literatura
social. Os exploradores, atuando como pano de fundo para o debate de outros
problemas, figuraram como atores de uma peça com papel aparentemente
secundário, às vezes dominaram a estória. Em contrapartida
a tentativa de espelhar o linguajar estropiado do colono, do imigrante analfabeto,
não foi de todo bem-sucedida; terminou deslocado, artificial; em determinados
momentos, os tipos humanos pareceram moldados com a capa do exótico e
do pitoresco. Mas dentro da perspectiva de traçar o "epitáfio
de um ciclo" - o dos barões do café - a construção
aprofundada dos personagens individualmente estava descartada, importava privilegiar
o aspecto documentário. A estatura dos personagens seria criada a partir
da visão fragmentária e às vezes dispersa do conjunto,
somando-se os traços mais mercantes de cada um.
Ao lado do pobre do interior
do "fim de linha e fim de mundo", Oswald utilizou-se de um elenco
diversificado na galeria menos beneficiada da sociedade - o colono imigrante,
o índio em decadência, o velho abandonado, a mulher, o operário
urbano - a fim de engrossar o enredo. O posseiro, propositadamente abandonado,
sem condições de administrar sequer a sua colheita (Elesbão)
foi também pinçado por Oswald de Andrade com o objetivo de exemplificar
as conseqüências da exploração organizada da burguesia
("Tudo às ordens do imperialismo estrangeiro"). Por sinal,
foi novidade na sua obra de ficção o interesse pelo mundo rural.
Marco Zero, fundamentalmente o primeiro volume, supriu essa lacuna alternando
uma panorâmica dos costumes e ambientes daquele universo com o mundo urbano;
trouxe a curiosidade pelo interior, o que aliás foi a tônica dominante
nos ensaios da década de 40. Apesar do capitulo em questão servir
de pretexto para introduzir o tema do livro - a burguesia paulista e suas insurreições
nos meandros da narrativa maior armou-se uma outra estória: a da relação
de dominação mantida pelo sistema patriarcal e pelo seu sustentáculo
mor - a propriedade ("0 Majó tem chão demais e não
aproveita. E inda quê tirá tudo dos possero"). Enriqueceu
portanto a trama da narrativa abordando assunto considerado detonador de todas
as animosidades e desajustes sociais.
Se Oswald desviou um pouco
do caminho alegre aberto com Miramar e Serafim quando contribuiu para
criar uma prosa experimental, inventiva, bem-humorada, na literatura brasileira
moderna, não descuidou do trabalho com a linguagem. Propiciou em muitos
trechos de A Revolução Melancólica e especialmente
nessa primeira parte exemplos de um estilo dinâmico e engraçado.
Na descrição do espaço da narrativa, conseguiu habilmente
jogar com diferentes recursos estilísticos e sintetizar com acuidade
a idéia, lançando mão da economia de adjetivos ("As
estantes coloriam-se de fazendas" / "Na segunda classe desiluminada,
com escarros, fumaças e conversas" / "Deus empinava um papagaio
de luz - O Cruzeiro do Sul" / "Saíram na noite asmática
do Brás"). Embora fique patente o comedimento da montagem estrutural
desse livro em vista da radicalidade das inovações da sua obra
anterior, várias passagens e motivos não nos deixam esquecer o
seu pulso de criador. E o comportamento na descrição do ambiente
se repete na configuração dos personagens ("perfil de abutre"
/ "um velho brônzeo, em farrapos, à janela aberta para o azul"
/ "0 camarada Fabrício, baixo e calvo, esperava-o ao lado de um
proletário típico, magro e chupado apesar de moço"
/ "Ela olhou o sanfonista sorrindo num dente, cobreada no vestido amarelo").
A caracterização concisa e direta esteve sempre intimamente imbricado
no relato. Pedrão ao entrar em cena dialogava com Miguelona sobre as
disputas de terra na região; a notícia de seu assassinato, divulgado
tão violenta e bruscamente como as condições de sua morte,
nivelou apenas com uma frase o fato e a forma de sua comunicação:
"Um tiro vindo da baixada estalou na moita de bananeiras". A exemplo
da sua produção inicial (Os Condenados) a linguagem cinematográfica
foi a construção preferida. Neste capítulo em particular,
seu jogo predileto resultou nos cortes bruscos das cenas, levando o Autor a
abandonar com maestria a velha noção de estrutura romanesca com
princípio, meio e fim: as pequenas cenas assumiram vida própria.
Afortunadamente foi o exemplo de "técnica miudinha" que deu
certo. Pois, em outros trechos este mesmo processo de "composição
em retalhos", mudando, de relance, de um pólo a outro da estória
deixou o leitor confuso. 4
Diferente do geral produzido
pela conhecida literatura social, quase sempre idealizando e mitificando o pobre,
Oswald mostrou-o cruamente multifacetado. Retratou-o como corajoso, valente
e resistente às opressões ("Defende a terra, Pedrão!"
/ "0 capilar empregado aqui não se perde. Prefiro sai aos pedaços...");
protestando contra os dominadores e os seus comparsas, nos momentos de desconfiança
em relação à honestidade da justiça e da polícia,
duas instituições mostradas em Marco Zero, agindo de forma
subreptícia e parcial ("Aqui é a poliça que juda robá"
/ "Ocês só serve prá dá o dobro do capilar pros
capitalista! " / "Mas estas terras que eu trabaio e que passei iscritura
não pode cai nas unhas do Majó" / "Um guarda interpusera-se
empurrando a Miguelona"). Outras vezes deixou às claras a ingenuidade
e ignorância do homem simples tornando-o mais facilmente vulnerável
à exploração da burguesia. Não esqueceu de hiperbolizar
essa situação, focalizando de modo caricaturam as informações
desconexas sobre notícias de mundos diferentes e promissores que martelavam
na cabeça confusa do colono ou operário semi-analfabeto. Exemplo
típico foi o diálogo entre o índio Belarmino e Elesbão,
ambos com a terra perdida para outro mais sabido: "Mecê sabe pra
que lado fica a Rússia? - Não sei. Só se é pras
bandas da Cananéia... Diz que na Rússia tão dando terra
pros trabaiadô..."
Também não
foi descartada a relação dicotômica habitual burguesia expoliadora
e massa sofrida -, aproveitando a ocasião para introduzir naquele contexto
as subcamadas: dominador e dominado. No âmbito do colono imigrante, protestos
pela má assistência e pela ação organizada do imigrante
bem assistido como parece ser o caso dos japoneses, malvistos pelos seus companheiros
não tão bem-sucedidos: "Trabaiei. Carpi mais de duzentos
pé. Japoneis num quis me pagã" / "Japoneis chegava também
pelo mar, percorrera as mesma estradas penosas e desertas, Mas trazia a cooperação
e o dumping" / "0 japonês tirava a terra do caboclo, cercava
os núcleos agonizantes do trabalho nacional".
Talvez, como
lembrou Antonio Candido, perdure em Marco Zero o mesmo tom dos dois romances
anteriores (Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim
Ponte Grande) de enorme impacto e sucesso: afoiteza e superficialidade no
trabalho dos temas e personagens.
4 Estas idéias estão no ensaio "Estouro e Libertação" de Antonio Candido (Vários Escritos, São Paulo, 1970, pp. 33-50).
Mas com certeza, em ambas as etapas da ficção oswaldiana sobressaíram acima de tudo traços inquietantes e inovadores: na primeira, o tão decantado ludismo da construção perturbadoramente desconcertante; na segunda, a matéria ficcional propriamente dita - tentativa nova de realizar um "panorama da erosão da sociedade burguesa" paulista, onde a camada explorada não apenas ilustrou o antagonismo social do panorama, mas foi presença marcante na composição da prosa de Oswald de Andrade e fundamentou a abordagem da relação posse-propriedade.