OSWALD DE ANDRADE: entre a política e a arte
Conjeturando sobre o destino do Estado
Da influência das ideias as anarquistas às ligações com o comunismo, o célebre escritor sempre mostrou-se avesso a qualquer forma de dogmatismo
"(…) é Possível
ser feliz com a felicidade de outrem"
Oswald de Andrade
A
imagem do intelectual Oswald de Andrade que a crítica desenha é
de certa forma parcial e muitas vezes equivocada. Passados trinta anos da sua
morte, alguns críticos não lhe perdoam e bem dosada mistura de
alegria e humor que marcou sua obra e sua vida. Também, não aceitam
pacificamente a sua filiação (em 1931) e posterior desligamento
do Partido Comunista (l945), acompanhado de uma barulhenta crítica à
linha que os dirigentes, na década de 40, tentaram imprimir ao Partido.
Muitos nem levam a sério a atividade política de Oswald no final
da década de 40.
Com a dispersão
do grupo ligado à "Revista de Antropofagia" e as alterações
no quadro político brasileiro, encerra-se o movimento modernista, ou
pelo menos a sua fase mais dinâmica. E muito pouco se conhece sobre a
atuação de Oswald no panorama cultural, depois do "crack
" modernista em 1929.
O escritor
contribuiu para o estudo desse período realizando um balanço de
sua vida intelectual, onde recapitulou os acontecimentos de 1922 até
a "marcha em piteira do Sr. Getúlio Vargas sobre ltararé.
Observa Oswald que. "com o descalabro econômico da época,
baixaram imediatamente o tom e o tema. Oswald continuava a sentir e a registrar
com excelente otimismo. Lera Marx e Engels e filosoficamente se retraíra".
Esta reconstituição do decênio de 20 foi marcada por uma
objetividade impressionante, graças ao aproveitamento de um recurso narrativo
incomum às memórias: a 3ª pessoa com as prerrogativas do
narrador onisciente e a vantagem do distanciamento que este enfoque, muito comum
nos relatos científicos, proporciona. No final, resultou, deste fragmento
retrospectivo, uma autocrática bem severa.
As reflexões
dessa fase de engajamento político foram marcadas pelo caráter
didático, à semelhança de roteiros para conferência
ou aulas destinadas a operários: outra parte funcionou como programa,
orientando a discussão interna entre os companheiros de partido, ou como
planos gerais de publicações que visassem à formação
e ao aprimoramento cultural do trabalhador. Saindo do âmbito restrito
das tarefas partidárias para o plano internacional, Oswald pensou sobre
o movimento político da atualidade, dando atenção especial
ao desenvolvimento do Fascismo nos vários países, sobretudo no
Brasil. Sempre que teve oportunidade, assinalou o perigo da disseminação
entre nós de movimentos fascistas.
O grande paradigma
Voltando
os olhos para o cenário brasileiro, analisou o período inaugurado
pela República até 1922. assinalando a estagnação
do ambiente intelectuais com exceção da "dureza" do
chamado Marechal de Ferro (Floriano) e da superioridade" de Prudente de
Morais, a sua decepção foi grande. Dentro deste quadro geral de
pasmaceira, destacou apenas Rui Barbosa, tomado como o grande paradigma, o apóstolo.
apesar de péssimo literato: "Transcrição, Ansiedade.
Esperanças. Todos - os mais opostos - se reclamando dele a herança
de brasilidade, a herança de justiça, a herança de apostolado"
(1). Com base nestas ponderações, pode-se melhor compreender o
interesse de Oswald de Andrade pela campanha civilista. Além, é
claro, dos atrativos que esta campanha trazia: defesa do voto secreto, das tradições
liberais. E do seu suporte financeiro oferecido pela oligarquia de São
Paulo, à qual Oswald estava afetivamente ligado. As páginas de
"0 Pirralho" apoiaram a pregação cívica e política
de Rui. apesar de Oswald, seu proprietário e redator, ter mantido sempre
grande distância da verborragia do grande orador. Fazendo um breve parêntese,
é interessante notar que a admiração pelo político
baiano não foi restrita a Oswald. Os intelectuais da época, como
Monteiro Lobato e os demais diretores da "Revista do Brasil", eram
ardorosos simpatizantes de suas idéias, publicaram na íntegra
a conferência "A Questão Social e a Política no Brasil",
de 1919, espécie de plataforma da candidatura de Rui à Presidência
da República. E por falar neste polêmico homem público,
no lançamento recente da 5ª fase desta importante revista, patrocinado
agora pelo governo estadual do Rio de Janeiro, o corpo dessa conferência
foi republicado sob o título "Rui Barbosa e o socialismo".
Os organizadores da nova fase da "Revista do Brasil" fizeram questão
de assinalar a atualidade das idéias de Rui, flagrando as injustiças
sociais, defendendo o voto direto e condenando a corrupção. Enfim,
quiseram marcar a identidade dos princípios do "socialismo democrático"
com o ideário de Rui.
"0 Mundo
Político", ensaio datado de 1931, expressou sem rodeios a concepção
político-filosófica do escritor, recém-filiado ao Partido
Comunista. Com base na opinião de Saint Simon, de que "economia
e política são uma simples casca da outra", analisou o desarranjo
financeiro internacional. No seu modo de ver, a instabilidade política
contribuiu para o descalabro econômico, não se encontrando caminhos
pacíficos de organização. O diagnóstico é
bastante atual, mas Oswald de Andrade o fez pensando no caso específico
da Alemanha, na década de 30, e no seu esforço em administrar
a dívida externa, garantindo o equilíbrio do comércio internacional:
"0 mundo inteiro podia continuar bebendo café".
Na linha
dos compromissos do intelectual participante, procurou analisar nesse mesmo
ensaio os reflexos da situação político-financeira no mundo
artístico. Discutiu, por exemplo, a transformação sofrida
pelo mundo da música depois da crise mundial de 29. Pela particularidade
da produção musical, os grande nomes se concentravam nas metrópoles
(Paris, a preferida). De repente, Oswald presenciou artistas renomados realizando
excursões pela América. Considerou o caso mais típico o
dos músicos brasileiros que sempre atuaram fora do país. Com a
crise, fomos privilegiados com a apresentação de nossos principais
artistas e surpreendidos, inclusive, com a grande repercussão nacional
da música popular.
O texto
"0 Mundo Político" está incompleto, faltou desenvolver
a discussão sobre os demais setores da vida cultural. Ficou registrada
apenas a euforia do escritor pelo triunfo, em 1931, dos modernistas na Escola
de Belas Artes do Rio de Janeiro. Oswald provavelmente quis assinalar que o
Modernismo nas artes plásticas foi acolhido pelas hostes oficiais, depois
da revolução de 30. Lúcio Costa ocupou a direção
da Escola Municipal de Belas Artes e Manuel Bandeira presidiu o Salão
Nacional de 1931, que acolhera os artistas modernistas mais renovadores.
Qual
foi exatamente a contribuição do escritor ao partido ao qual se
filiara em 1931, na esperança de completar os seus projetos anteriores
de transformação geral da sociedade, planos estes esboçados
a partir da Antropofagia? Ao que parece, de 1929 a 1933, Oswald dedicou-se ao
estudo da história, economia e política. Três artigos de
sua autoria vão nos dar uma idéia mais concreta daquela colaboração
("0 Vosso Sindicato", "0 Lar do Operário" e "Correntes
Doutrinárias"). Outras interferências na política cultural
do seu partido, menos evidentes, vão ser rastreadas adiante. "0
Vosso Sindicato", escrito em 1933, suplantava as informações
generalizadas e superficiais que um escritor burguês comum e próspero
homem de negócios costumava amealhar, Certamente foi o texto que serviu
de base à conferencia pronunciada no Sindicato dos Pedreiros, Confeitarias
e Anexos (2). Apresentado numa linguagem simples e clara, refletindo o tom ameno
de uma palestra e fundamentado em pesquisa minuciosa, montou a história
dos sindicatos através dos séculos. Sindicato, aliás, era
um assunto que estava em pauta na vida nacional, desde a vigência da lei
que regulamentou a existência das organizações operárias
e patronais (março de 1931). A pesquisa do escritor remontou à
velha Roma, para datar o surgimento de uma organização pacífica
e benemerente de trabalhadores sob a forma de "colégio". Além
de ser um estudo sistematizado, de caráter informativo para operários,
entremeou sua posição pessoal com a narração de
fatos, enumeração de dados estatísticos etc. Não
se Trata, portanto de um relatório frio, cuja preocupação
tenha sido a de meramente alinhar dados importantes ligados ao tema. Aproveitou-se
da proximidade com o público, que o tom de uma palestra podia oferecer,
para se tornar mais íntimo dos seus ouvintes e, com isso, aconselhar
e ensinar. Enfim, se posicionou como um professor experimentado, severo e cordial
ao mesmo tempo.
Alertou o
operariado, menos politizado, para a força revolucionária que
os sindicatos possuem pelo simples fato de serem agremiações de
"despojados". A propósito, lembrou que enquanto as associações
de benemerência foram formadas por escravos, os poderosos não se
sentiram incomodados: a ameaça ao capitalismo surgiu mais tarde, com
as associações operárias na era das grandes indústrias.
Oswald pôs o dedo na ferida do mundo operário: a arma de opressão
dos capitalistas - o Estado - foi sempre manipulada contra a classe trabalhadora.
Considerava o Estado burguês "o comitê administrativo e policial
das classes ricas". E não descartava a relação íntima
das reivindicações políticas.
Um novo alento
Traçou
um panorama histórico dos antagonismos humanos no mundo de 1917 a 1933.
Nesta revisão considerou, do ponto de vista do desenvolvimento das lutas
de classes, o Renascimento como um novo alento, sob vários aspectos:
a pregação do nacionalismo; a criação do mercado
mundial e dos manufaturados; o espírito de aventura e particularmente
a ênfase no papel do indivíduo na sociedade.
Oswald de
Andrade estava presenciando uma série de reformas sociais, surgidas a
partir da criação do Ministério do Trabalho, em novembro
de 1930. Mas as medidas necessárias foram palidamente adoradas pela revolução
e estavam longe de regulamentar a lei de férias, os salários,
a situação das mulheres e crianças. Reivindicações
trabalhistas estas que foram efetivadas por iniciativas da Assembléia
Constituinte, eleita em 3 de maio de 1933.
Oswald detectava
no interesse da burguesia em legalizar sindicatos mera tentativa de suprimir
o direito de greve e podar a ação revolucionária destas
agremiações. Em contrapartida, sugeriu aos operários: "organizar-se
revolucionariamente, e criar frações revolucionárias marxistas
nos organismos oficiais ou espontâneos". Para incentivar este trabalho
de organização das bases operárias recordou os momentos
de bravura do proletariado paulista em face da burguesia: 1906 - a greve paulista;
1917 - a greve geral; 1929 - os gráficos; 1930 a Light; 1932 - os ferroviários.
E com base nessas vitórias operárias, insistiu na necessidade
de um balanço objetivo das conquistas reais e da força desses
movimentos. Sem esquecer de notar que a grande diferença entre o proletariado
em ascensão e a burguesia era a "fraqueza de se criticar e o poder
de melhorar sobre a experiência dos próprios erros", aconselhou,
em tom professoral, aos operários: "libertar-se de todas as ideologias
burguesas", "fortalecer a teoria de classe" e por fim conscientizar-se
de que a "emancipação do proletariado é tarefa do
proletariado."
Oswald de Andrade,
ligado ao Partido Comunista, procurou seguir sua orientação em
relação à regulamentação das associações
operárias. Assim se manifestou em "0 lar do. Operário"
(do início da década de 40), que representou a síntese
de um programa social, espécie de plataforma política estruturada
em sete itens. No primeiro - "Visão Crítica da Sociedade"
- apresentou uma análise pessimista: "vogamos em pleno caos".
No radiognóstico negativo do mundo capitalista, seus argumentos oscilam
entre a pobreza de afirmações do tipo: "0 capitalismo é
gravemente acusado de ter feito aflorar todos os ódios subterrâneos
de que a humanidade primitiva era capaz"; com agudas sugestões como:
"É portanto nos desregramentos da economia que devemos procurar
os males que tanto desasossegam o homem moderno"; e conclusões que
consideram a redução ao símbolo monetário de toda
a gama das ambições humanas a origem do "profundo desgosto
que inquieta todo mundo". Análises e conclusões estas inspiradas
na pregação libertaria ("É o sentimento individual
da competição que rompe a tessitura da coletividade. Necessário
(... ) reeducar um ser viciado na adulação e no reclame como é
o homem atual").
Acreditava
que depois da Revolução Francesa, ao contrário do que se
esperava, a exploração do homem pelo homem tornou-se mais organizada.
Decepcionou-se com o surto civilizador do século 19 no tocante às
conquistas sociais. As obra dos enciclopedistas, no seu entender, refletiu o
protesto sentimental contra velhas pressões e resultou numa proposta
primária de planos liberais. Entusiasmou-se com o surgimento do "socialismo
utópico" e suas questões concretas do ponto de vista social
e econômico.
Na elaboração
dos planos sociais, Oswald achava importante observarem-se as coordenadas histórico-geográficas
de nosso país, evitando-se as costumeiras transplantações
de sistemas sem as adaptações necessárias. Por isso, e
apesar de sempre ter se manifestado contra a política ditatorial e fascista
do Estado Novo, constatou com objetividade e isenção que "de
1937 para cá rumou o Pais para os moldes necessários às
suas íntimas transformações. O Estado Novo colocou o Brasil
na marcha da história contemporânea". A leitura destes textos
da década de 30, mostra-nos a consciência que o escritor tinha
do grau destas mudanças e do tipo de modernização inaugurado
pelo novo regime, bastante precários, sem modificar substancialmente
a estrutura econômico-social existente. De qualquer forma Oswald de Andrade,
como vimos, reconheceu as novidades colocadas em cena e que foram bem assinaladas
pelos historiadores (3): advento de uma sociedade urbano-industrial, fim do
predomínio da oligarquia agroexportadora e dos particularismos de ordem
local, predomínio da ordem pública.
Mesmo
não demonstrando em nenhum momento simpatia pelos sistemas totalitários,
Oswald pregava, para determinados períodos de reconstrução
da sociedade, o "poderio superior do Estado", a fim de conseguir sanear
a vida política, econômica e financeira de uma nação.
Para isto a ordem e o equilíbrio eram terapias imprescindíveis.
Quando sugeriu
a intromissão do Estado na condução da nova política
reestruturadora, nao pensou evidentemente no Estado burguês - "inimigo
dos operários Neste programa de reconstrução social, claramente
exposto em "0 Lar Operário", afastou-se da espontaneidade anarquista
que muitas vezes o caracterizou e propôs um Estado tutelar, provisório,
que admitia a construção pelo própria indivíduo
"de seu clima de liberdade" conquistada pelo trabalho: "Ao Estado
caberá a tutela dos níveis baixos de vida e a responsabilidade
de sua constante evolução".
Receituários ideológicos
Introduziu
um conceito diferente de propriedade: lar, "a célula dignificante
de todo homem e o ponto de toda a estrutura coletiva". Não conjeturou,
nesta primeira fase de seu projeto de reestruturação da sociedade,
sobre a possibilidade de extinção completa de classes; admitiu
no entanto a existência de camadas: a primeira colocada sob a tutela direta
do Estado, e a camada operário, dignificada pela "conquista de um
lar", Naquela altura dos acontecimentos (início da década
de 40), depositada. ainda que cautelosamente, esperanças no clima de
reformas instaurado no Brasil. E conjeturava sobre destino do Estado, depois
de estabelecida a "a saúde social": "pura função
policial, ladeando uma comunhão de homens livres"; ou então
sua completa extinção. Durante o período de transição
planejou como tarefa a ser desempenhada pelo Estado a assistência à
"massa desamparada" ("0 Lar do Estado"). E neste programa
vislumbrou a coexistência a título precário de duas tendências:
a coletiva e a individual.
Ainda
em "0 Lar do Operário", texto politicamente mais maduro, o
escritor lançou mão de vários receituários ideológicos
a fim de traçar um programa de reformas sociais mais próximo da
realidade. Nesta convivência com teorias tão diferentes não
teve nenhum receio em misturar o ideário dos pensadores utópicos
e anarquistas com propostas adversários. Influenciado pelas idéias
anarquistas, concebeu o esquema de divisão das tarefas de acordo com
a habilidade e, com o esforço pessoal. Com o comunismo admitiu a participação
do Estado, ainda que transitória, no processo de reestruturação
político-social.
Balanço contundente
É
bem verdade que na fase de relacionamento com o Partido Comunista, Oswald perdeu
o entusiasmo pelas teorias que o animaram, desde o seu tempo de estudante de
Direito: "Na roda noturna de Indalécio e Ricardo Gonçalves
travei relações com o anarquismo, vindo conhecer o agitador Oreste
Ristori. depois meu amigo" (4). A produção da década
de 30 reflete esta atmosfera, embora deixe transparecer idéias opostas
aos princípios do Partido. Assim se verificou quando Oswald analisou
o papel do Estado na transformação e no desenvolvimento de uma
nova sociedade. Não aceitou o Estado burguês, repressivo e defensor
do sistema capitalista; também não viu com bons olhos a dominação
permanente de um Estado totalitário. Além disso, durante este
período de ativismo político,. colocou em quarentena o vigor das
teorias estéticas renovadoras da década de 20 e as reivindicações
mais ousadas de caráter geral. Mesmo pensando no seu teatro, já
que o romance Serafim Ponte Grande. embora publicado em 1933, foi inteiramente
concebido quase dez anos antes. Inclusive a proposta, esboçada na Antropologia,
de reivindicação da posse contra a propriedade foi suspensa até
os anos 40, quando a retomou nos ensaios de filosofia, nas famosas teses universitárias
e. de modo muito irreverente. no volume A Revolução Melancólica
do Marco Zero.
Oswald também
em questões anarquistas não foi ortodoxo como não o foi
durante suas ligações com o comunismo. Aliás, dogmatismo
não passava pelos seus projetos, pois esteve sempre acessível
à revisão de suas idéias. No depoimento citado mais atrás
ele se auto-analisava- "Tem apenas a coragem das suas transformações.
É uni ultra-sensível (... ). Colonial com o Théatre Brésilien
(l9l6), anarco-cristão com a desgraça e a solução
sentimental a que se acolhe o lumpen de que fazia parte como boêmio (em
1922), anarco-feudal em Pau-Brasil e Primeiro Caderno - reflexo
da alta vida a que subira com a fortuna herdada, extremando-se em anarco-indígena
com Serafim e a Antropofagia, comunista enfim (... )" (5). A sua trajetória
literária daria para ilustrar a nossa argumentação, sem
precisar recorrer aos depoimentos de seus contemporâneos. Mesmo assim,
remetemos ao agudo perfil traçado por Menotti del Picchia de seu irrequieto
amigo no "Correio Paulistano" (6). Dando continuidade à reflexão
da sua própria trajetória, em 1933. renegou os princípios
burgueses no famoso prefácio do Serafim; mas fez a autocrítica
de seu engajamento político, e ao romper com o Partido Comunista ofereceu,
nas páginas dos principais jornais do país, um balanço
contundente da atuação deste partido no cenário político
nacional.
Como
vínhamos assinalando, são infinitas e bem evidentes as afinidades
entre Oswald e as diferentes doutrinas anarquistas. Mesmo assim, o escritor
não hesitou em tecer críticas ao desempenho das lideranças
anarquistas no nosso País. Embora longa a citação, é
interessante ouvi-lo diretamente sobre o problema: "No Brasil, o anarquismo
ou se despe nos braços de sonhadores boçais ou veste francamente
a roupa "apolítica" da polícia política. Tem
assim produzido as maiores traições à classe dos trabalhadores,
sempre ligado a generais da milícia ou do trotskismo. Como no Brasil
tudo chega atrasado, isso se explica. A hora do anarquismo já passou.
Hoje só se atinge o bem individual através do bem coletivo. Foi
no século passado no apogeu do capitalismo individualista que o Anarquismo
prosperou. Veja-se a onda emocional de Nietzsche e Dostoiewski, a política
de Bakounine e Vera Zassoulitch, a filosofia de Schopenhauer a Bergson, a estética
do impressionismo ao pontilhismo e ao fauvismo" (7).
Ficou
patente que, a partir de 1930, inaugurou-se no Brasil uma série de transformações
econômicas, sociais, marcando o surgimento claro de novo sistema político.
Em "Correntes Doutrinárias" (l936) Oswald apontava na política
nacional duas novas tendências: a corrente cooperativista (ligada ao grupo
tenentista) e o cooperativismo livre, liderado pelo deputado paulista Oscar
Stevenson. Mesmo iniciantes, achava que as experiências cooperativistas
brasileiras não passavam de uma extensão do capitalismo, E nessas
experiências, sob a orientação do eixo Roma-Berlim, Oswald
visualizou uma ameaça às nossas liberdades. Propôs como
estratégia de combate ao fascismo, que tentava instalar-se no país
("através de seu dissimulado capanga - o integralismo"), a
formação de uma Frente Nacional Democrática, união
de todos os partidos, ideologias e credos. Oswald de Andrade mostrou em outros
trabalhos sua preocupação com a propagação do fascismo
no Brasil. "Panorama Mental do Fascismo", crônica dialogada
com vários personagens, marcou mais uma vez sua posição
crítica e de oposição ao lntegralismo. Ao contrário
de muitos intelectuais brasileiros indecisos e enamorados pelas ambigüidades
do discurso do fascismo capenga brasileiro, não vacilou em criticar o
integralismo.
Até
1926 Paulista era senhor absoluto da política nacional. Os desentendimentos
cresciam no interior do partido com protestos contra a política cafeeira.
Da cisão do PRP. surgiu o PD, o Partido Republicano presidido pelo Cons.
Antonio Prado e formado por fazendeiros descontentes e profissionais em geral.
O programa do novo partido, calcado na pregação revolucionaria
tenentista, tentava contentar a classe media urbana. Oswald em dois textos curtos
comentou a politicagem paulista, em especial as rusgas entre o PRP e o PD ("Cabalares!",
assinado por Felipe Camarão; e um outro texto sem título). O primeiro
documento tratou da política em Piracicaba (SP) e do desempenho político
do Deputado João Sampajo. O segundo criticou a "atuação
do PD contra as instituições republicanas". Oswald de Andrade
era ligado ao PRP e muito amigo dos próceres do Partido Republicano,
Washington Luis e Carlos de Campos. Defendeu com unhas e dentes a atuação
deste partido que desenvolveu em São Paulo "... obra de liberdade,
de progresso, de desenvolvimento maravilhoso, de ordem" (... ). Embora
considerando-se "representante da vontade popular, amigo do povo",
o PD, segundo Oswald de Andrade, formado por "oligarquias tradicionais"
e "escravocatas típicos" viveu em "permanente e vitalícia
minoria". A ligação dos Andrade com o PR era uma tradição
antiga de família. O Sr. Andrade, pai do escritor, era filiado ao PR,
conforme se depreende de uma carta enviada pelo secretário do partido,
comunicando-lhe o seu quinhão de contribuições nas despesas
do banquete em homenagem a Campos Sales em 1902 (8).
Depois
de sua barulhenta participação no Congresso da Lavoura em 1930,
escreveu "0 Brasil Diante de Dois Imperialismos Poderosos" (provavelmente
de 1932). Texto longo e incompleto estruturado em duas partes: "o grande
produto nacional - o café"; e "orientação dos
grandes imperialismos rivais - inglês e americano - no desenvolvimento
do golpe militar de 30". Na primeira parte, historiou as vicissitudes da
política cafeeira do Brasil, marcada por empréstimos, descontos
de letras e emissões valorizadoras: "Uma economia que tende numa
ilusão de progresso e vida civilizada ao empobrecimento geral",
regulada pelo sistema bancário internacional (ingleses e norte-americanos).
Cada uma dessas potências financeiras apoiava uma das correntes em que
se dividia a vida política nacional. Os ingleses sustentavam a grande
burguesia latifundiária, industrial e constitucionalista; os interesses
americanos torciam pela vitória tenentista. Este ponto de vista foi também
defendido por Leôncio Basbaum na sua análise daquela revolução,
em 1934. A revolução de 30 - logo reconhecida pelos Estados Unidos
- diminuiu as preocupações norte-americanas em relação
à política brasileira. Oswald criticou veementemente o governo
brasileiro que, para escoar a safra cafeeiro, trocou 1 milhão e duzentas
mil sacas de café. tipo suave, por trigo americano. Proporcionando, no
seu entender, ao mercado disputado pelo Brasil "um estoque considerável".
Com esta troca, concluiu Oswald, eliminou-se o imposto, e o café pôde
ser vendido a baixo preço.
Este
texto embora bem fundamentado é marcado pelos chavões do Partido
Comunista, Oswald de Andrade usou e abusou destes clichês, porém
a sua argumentação não perdeu a dinamicidade. Aliás
Oswald de Andrade dominou muito bem o assunto café até 1930, nos
bons tempos de próspero proprietário da "Fazenda Santa Tereza
do Alto".
E para
finalizar, é interessante fazer algumas observações em
torno dos projetos de Oswald de Andrade voltados diretamente para a educação
e informação geral do trabalhador. Programou edições
voltados para o operariado, com o enfoque de problemas que, além de ser
de interesse do trabalhador, despertassem sua curiosidade e desejo de ampliar
seus conhecimentos. No projeto da "Pequena Enciclopédia Proletária"
previa a edição de 50 volumes de 100 a 200 páginas, englobando
conhecimentos gerais, com volumes voltados especificamente para a literatura,
artes plásticas, música, cinema, TV, informações
sobre fatos cotidianos, biografias e aspectos particulares da política
operária etc. Enfim uma mini-biblioteca cujos temas estavam selecionados
por volume, e que certamente não se tornou realidade.
(1) Fragmento de manuscrito, sem título, Acervo Oswald de Andrade, Coleção Adelaide Guerrini de Andrade, Centro de documentação, IEl, UNICAMP.
(2) "Auto-retrato - Oswald de Andrade visto por Oswald de Andrade". "Leitura", Rio de Janeiro, maio de 1943.
(3) Eli Diniz, "0 Estado Novo: Estrutura de Poder e Relações de Classes", in Boris Fausto (org.), O Brasil Republicano, São Paulo, Difel, 1981. t. 3, v 3, págs.79-120.
(4) Oswald de Andrade. Um Homem Sem Profissão. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1974. pág 46. (5) Ver nota nº 1
(6) Menotti del Picchia. O Gedeão do Modernismo: Introdução seleção. organização por Yoshie S. Barreirinhas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983. págs. 168-170,
(7) Manuscrito sem título, Acervo Oswald de Andrade, IEB - USP
(8) Carta de Horácio Gonçalves Pereira. Acervo Oswald de Andrade, Coleção Adelaide Guerrini de Andrade, Centro de Documentação, IEL, UNICAMP.
Folha de S. Paulo, Folhetim, 4 de novembro de 1984