OSWALD DE ANDRADE: entre a política e a arte

Conjeturando sobre o destino do Estado

Da influência das ideias as anarquistas às ligações com o comunismo, o célebre escritor sempre mostrou-se avesso a qualquer forma de dogmatismo

"(…) é Possível ser feliz com a felicidade de outrem"
Oswald de Andrade

    A imagem do intelectual Oswald de Andrade que a crítica desenha é de certa forma parcial e muitas vezes equivocada. Passados trinta anos da sua morte, alguns críticos não lhe perdoam e bem dosada mistura de alegria e humor que marcou sua obra e sua vida. Também, não aceitam pacificamente a sua filiação (em 1931) e posterior desligamento do Partido Comunista (l945), acompanhado de uma barulhenta crítica à linha que os dirigentes, na década de 40, tentaram imprimir ao Partido. Muitos nem levam a sério a atividade política de Oswald no final da década de 40.
    
Com a dispersão do grupo ligado à "Revista de Antropofagia" e as alterações no quadro político brasileiro, encerra-se o movimento modernista, ou pelo menos a sua fase mais dinâmica. E muito pouco se conhece sobre a atuação de Oswald no panorama cultural, depois do "crack " modernista em 1929.
    
O escritor contribuiu para o estudo desse período realizando um balanço de sua vida intelectual, onde recapitulou os acontecimentos de 1922 até a "marcha em piteira do Sr. Getúlio Vargas sobre ltararé. Observa Oswald que. "com o descalabro econômico da época, baixaram imediatamente o tom e o tema. Oswald continuava a sentir e a registrar com excelente otimismo. Lera Marx e Engels e filosoficamente se retraíra". Esta reconstituição do decênio de 20 foi marcada por uma objetividade impressionante, graças ao aproveitamento de um recurso narrativo incomum às memórias: a 3ª pessoa com as prerrogativas do narrador onisciente e a vantagem do distanciamento que este enfoque, muito comum nos relatos científicos, proporciona. No final, resultou, deste fragmento retrospectivo, uma autocrática bem severa.
    
As reflexões dessa fase de engajamento político foram marcadas pelo caráter didático, à semelhança de roteiros para conferência ou aulas destinadas a operários: outra parte funcionou como programa, orientando a discussão interna entre os companheiros de partido, ou como planos gerais de publicações que visassem à formação e ao aprimoramento cultural do trabalhador. Saindo do âmbito restrito das tarefas partidárias para o plano internacional, Oswald pensou sobre o movimento político da atualidade, dando atenção especial ao desenvolvimento do Fascismo nos vários países, sobretudo no Brasil. Sempre que teve oportunidade, assinalou o perigo da disseminação entre nós de movimentos fascistas.

O grande paradigma

    Voltando os olhos para o cenário brasileiro, analisou o período inaugurado pela República até 1922. assinalando a estagnação do ambiente intelectuais com exceção da "dureza" do chamado Marechal de Ferro (Floriano) e da superioridade" de Prudente de Morais, a sua decepção foi grande. Dentro deste quadro geral de pasmaceira, destacou apenas Rui Barbosa, tomado como o grande paradigma, o apóstolo. apesar de péssimo literato: "Transcrição, Ansiedade. Esperanças. Todos - os mais opostos - se reclamando dele a herança de brasilidade, a herança de justiça, a herança de apostolado" (1). Com base nestas ponderações, pode-se melhor compreender o interesse de Oswald de Andrade pela campanha civilista. Além, é claro, dos atrativos que esta campanha trazia: defesa do voto secreto, das tradições liberais. E do seu suporte financeiro oferecido pela oligarquia de São Paulo, à qual Oswald estava afetivamente ligado. As páginas de "0 Pirralho" apoiaram a pregação cívica e política de Rui. apesar de Oswald, seu proprietário e redator, ter mantido sempre grande distância da verborragia do grande orador. Fazendo um breve parêntese, é interessante notar que a admiração pelo político baiano não foi restrita a Oswald. Os intelectuais da época, como Monteiro Lobato e os demais diretores da "Revista do Brasil", eram ardorosos simpatizantes de suas idéias, publicaram na íntegra a conferência "A Questão Social e a Política no Brasil", de 1919, espécie de plataforma da candidatura de Rui à Presidência da República. E por falar neste polêmico homem público, no lançamento recente da 5ª fase desta importante revista, patrocinado agora pelo governo estadual do Rio de Janeiro, o corpo dessa conferência foi republicado sob o título "Rui Barbosa e o socialismo". Os organizadores da nova fase da "Revista do Brasil" fizeram questão de assinalar a atualidade das idéias de Rui, flagrando as injustiças sociais, defendendo o voto direto e condenando a corrupção. Enfim, quiseram marcar a identidade dos princípios do "socialismo democrático" com o ideário de Rui.
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0 Mundo Político", ensaio datado de 1931, expressou sem rodeios a concepção político-filosófica do escritor, recém-filiado ao Partido Comunista. Com base na opinião de Saint Simon, de que "economia e política são uma simples casca da outra", analisou o desarranjo financeiro internacional. No seu modo de ver, a instabilidade política contribuiu para o descalabro econômico, não se encontrando caminhos pacíficos de organização. O diagnóstico é bastante atual, mas Oswald de Andrade o fez pensando no caso específico da Alemanha, na década de 30, e no seu esforço em administrar a dívida externa, garantindo o equilíbrio do comércio internacional: "0 mundo inteiro podia continuar bebendo café".
     
Na linha dos compromissos do intelectual participante, procurou analisar nesse mesmo ensaio os reflexos da situação político-financeira no mundo artístico. Discutiu, por exemplo, a transformação sofrida pelo mundo da música depois da crise mundial de 29. Pela particularidade da produção musical, os grande nomes se concentravam nas metrópoles (Paris, a preferida). De repente, Oswald presenciou artistas renomados realizando excursões pela América. Considerou o caso mais típico o dos músicos brasileiros que sempre atuaram fora do país. Com a crise, fomos privilegiados com a apresentação de nossos principais artistas e surpreendidos, inclusive, com a grande repercussão nacional da música popular.
     
O texto "0 Mundo Político" está incompleto, faltou desenvolver a discussão sobre os demais setores da vida cultural. Ficou registrada apenas a euforia do escritor pelo triunfo, em 1931, dos modernistas na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Oswald provavelmente quis assinalar que o Modernismo nas artes plásticas foi acolhido pelas hostes oficiais, depois da revolução de 30. Lúcio Costa ocupou a direção da Escola Municipal de Belas Artes e Manuel Bandeira presidiu o Salão Nacional de 1931, que acolhera os artistas modernistas mais renovadores.
     
Qual foi exatamente a contribuição do escritor ao partido ao qual se filiara em 1931, na esperança de completar os seus projetos anteriores de transformação geral da sociedade, planos estes esboçados a partir da Antropofagia? Ao que parece, de 1929 a 1933, Oswald dedicou-se ao estudo da história, economia e política. Três artigos de sua autoria vão nos dar uma idéia mais concreta daquela colaboração ("0 Vosso Sindicato", "0 Lar do Operário" e "Correntes Doutrinárias"). Outras interferências na política cultural do seu partido, menos evidentes, vão ser rastreadas adiante. "0 Vosso Sindicato", escrito em 1933, suplantava as informações generalizadas e superficiais que um escritor burguês comum e próspero homem de negócios costumava amealhar, Certamente foi o texto que serviu de base à conferencia pronunciada no Sindicato dos Pedreiros, Confeitarias e Anexos (2). Apresentado numa linguagem simples e clara, refletindo o tom ameno de uma palestra e fundamentado em pesquisa minuciosa, montou a história dos sindicatos através dos séculos. Sindicato, aliás, era um assunto que estava em pauta na vida nacional, desde a vigência da lei que regulamentou a existência das organizações operárias e patronais (março de 1931). A pesquisa do escritor remontou à velha Roma, para datar o surgimento de uma organização pacífica e benemerente de trabalhadores sob a forma de "colégio". Além de ser um estudo sistematizado, de caráter informativo para operários, entremeou sua posição pessoal com a narração de fatos, enumeração de dados estatísticos etc. Não se Trata, portanto de um relatório frio, cuja preocupação tenha sido a de meramente alinhar dados importantes ligados ao tema. Aproveitou-se da proximidade com o público, que o tom de uma palestra podia oferecer, para se tornar mais íntimo dos seus ouvintes e, com isso, aconselhar e ensinar. Enfim, se posicionou como um professor experimentado, severo e cordial ao mesmo tempo.
    
Alertou o operariado, menos politizado, para a força revolucionária que os sindicatos possuem pelo simples fato de serem agremiações de "despojados". A propósito, lembrou que enquanto as associações de benemerência foram formadas por escravos, os poderosos não se sentiram incomodados: a ameaça ao capitalismo surgiu mais tarde, com as associações operárias na era das grandes indústrias. Oswald pôs o dedo na ferida do mundo operário: a arma de opressão dos capitalistas - o Estado - foi sempre manipulada contra a classe trabalhadora. Considerava o Estado burguês "o comitê administrativo e policial das classes ricas". E não descartava a relação íntima das reivindicações políticas.

Um novo alento

     Traçou um panorama histórico dos antagonismos humanos no mundo de 1917 a 1933. Nesta revisão considerou, do ponto de vista do desenvolvimento das lutas de classes, o Renascimento como um novo alento, sob vários aspectos: a pregação do nacionalismo; a criação do mercado mundial e dos manufaturados; o espírito de aventura e particularmente a ênfase no papel do indivíduo na sociedade.
    
Oswald de Andrade estava presenciando uma série de reformas sociais, surgidas a partir da criação do Ministério do Trabalho, em novembro de 1930. Mas as medidas necessárias foram palidamente adoradas pela revolução e estavam longe de regulamentar a lei de férias, os salários, a situação das mulheres e crianças. Reivindicações trabalhistas estas que foram efetivadas por iniciativas da Assembléia Constituinte, eleita em 3 de maio de 1933.
    
Oswald detectava no interesse da burguesia em legalizar sindicatos mera tentativa de suprimir o direito de greve e podar a ação revolucionária destas agremiações. Em contrapartida, sugeriu aos operários: "organizar-se revolucionariamente, e criar frações revolucionárias marxistas nos organismos oficiais ou espontâneos". Para incentivar este trabalho de organização das bases operárias recordou os momentos de bravura do proletariado paulista em face da burguesia: 1906 - a greve paulista; 1917 - a greve geral; 1929 - os gráficos; 1930 a Light; 1932 - os ferroviários. E com base nessas vitórias operárias, insistiu na necessidade de um balanço objetivo das conquistas reais e da força desses movimentos. Sem esquecer de notar que a grande diferença entre o proletariado em ascensão e a burguesia era a "fraqueza de se criticar e o poder de melhorar sobre a experiência dos próprios erros", aconselhou, em tom professoral, aos operários: "libertar-se de todas as ideologias burguesas", "fortalecer a teoria de classe" e por fim conscientizar-se de que a "emancipação do proletariado é tarefa do proletariado."
   
Oswald de Andrade, ligado ao Partido Comunista, procurou seguir sua orientação em relação à regulamentação das associações operárias. Assim se manifestou em "0 lar do. Operário" (do início da década de 40), que representou a síntese de um programa social, espécie de plataforma política estruturada em sete itens. No primeiro - "Visão Crítica da Sociedade" - apresentou uma análise pessimista: "vogamos em pleno caos". No radiognóstico negativo do mundo capitalista, seus argumentos oscilam entre a pobreza de afirmações do tipo: "0 capitalismo é gravemente acusado de ter feito aflorar todos os ódios subterrâneos de que a humanidade primitiva era capaz"; com agudas sugestões como: "É portanto nos desregramentos da economia que devemos procurar os males que tanto desasossegam o homem moderno"; e conclusões que consideram a redução ao símbolo monetário de toda a gama das ambições humanas a origem do "profundo desgosto que inquieta todo mundo". Análises e conclusões estas inspiradas na pregação libertaria ("É o sentimento individual da competição que rompe a tessitura da coletividade. Necessário (... ) reeducar um ser viciado na adulação e no reclame como é o homem atual").
     
Acreditava que depois da Revolução Francesa, ao contrário do que se esperava, a exploração do homem pelo homem tornou-se mais organizada. Decepcionou-se com o surto civilizador do século 19 no tocante às conquistas sociais. As obra dos enciclopedistas, no seu entender, refletiu o protesto sentimental contra velhas pressões e resultou numa proposta primária de planos liberais. Entusiasmou-se com o surgimento do "socialismo utópico" e suas questões concretas do ponto de vista social e econômico.
    
Na elaboração dos planos sociais, Oswald achava importante observarem-se as coordenadas histórico-geográficas de nosso país, evitando-se as costumeiras transplantações de sistemas sem as adaptações necessárias. Por isso, e apesar de sempre ter se manifestado contra a política ditatorial e fascista do Estado Novo, constatou com objetividade e isenção que "de 1937 para cá rumou o Pais para os moldes necessários às suas íntimas transformações. O Estado Novo colocou o Brasil na marcha da história contemporânea". A leitura destes textos da década de 30, mostra-nos a consciência que o escritor tinha do grau destas mudanças e do tipo de modernização inaugurado pelo novo regime, bastante precários, sem modificar substancialmente a estrutura econômico-social existente. De qualquer forma Oswald de Andrade, como vimos, reconheceu as novidades colocadas em cena e que foram bem assinaladas pelos historiadores (3): advento de uma sociedade urbano-industrial, fim do predomínio da oligarquia agroexportadora e dos particularismos de ordem local, predomínio da ordem pública.
     
Mesmo não demonstrando em nenhum momento simpatia pelos sistemas totalitários, Oswald pregava, para determinados períodos de reconstrução da sociedade, o "poderio superior do Estado", a fim de conseguir sanear a vida política, econômica e financeira de uma nação. Para isto a ordem e o equilíbrio eram terapias imprescindíveis.
    
Quando sugeriu a intromissão do Estado na condução da nova política reestruturadora, nao pensou evidentemente no Estado burguês - "inimigo dos operários Neste programa de reconstrução social, claramente exposto em "0 Lar Operário", afastou-se da espontaneidade anarquista que muitas vezes o caracterizou e propôs um Estado tutelar, provisório, que admitia a construção pelo própria indivíduo "de seu clima de liberdade" conquistada pelo trabalho: "Ao Estado caberá a tutela dos níveis baixos de vida e a responsabilidade de sua constante evolução".

Receituários ideológicos

      Introduziu um conceito diferente de propriedade: lar, "a célula dignificante de todo homem e o ponto de toda a estrutura coletiva". Não conjeturou, nesta primeira fase de seu projeto de reestruturação da sociedade, sobre a possibilidade de extinção completa de classes; admitiu no entanto a existência de camadas: a primeira colocada sob a tutela direta do Estado, e a camada operário, dignificada pela "conquista de um lar", Naquela altura dos acontecimentos (início da década de 40), depositada. ainda que cautelosamente, esperanças no clima de reformas instaurado no Brasil. E conjeturava sobre destino do Estado, depois de estabelecida a "a saúde social": "pura função policial, ladeando uma comunhão de homens livres"; ou então sua completa extinção. Durante o período de transição planejou como tarefa a ser desempenhada pelo Estado a assistência à "massa desamparada" ("0 Lar do Estado"). E neste programa vislumbrou a coexistência a título precário de duas tendências: a coletiva e a individual.
     
Ainda em "0 Lar do Operário", texto politicamente mais maduro, o escritor lançou mão de vários receituários ideológicos a fim de traçar um programa de reformas sociais mais próximo da realidade. Nesta convivência com teorias tão diferentes não teve nenhum receio em misturar o ideário dos pensadores utópicos e anarquistas com propostas adversários. Influenciado pelas idéias anarquistas, concebeu o esquema de divisão das tarefas de acordo com a habilidade e, com o esforço pessoal. Com o comunismo admitiu a participação do Estado, ainda que transitória, no processo de reestruturação político-social.

Balanço contundente

    É bem verdade que na fase de relacionamento com o Partido Comunista, Oswald perdeu o entusiasmo pelas teorias que o animaram, desde o seu tempo de estudante de Direito: "Na roda noturna de Indalécio e Ricardo Gonçalves travei relações com o anarquismo, vindo conhecer o agitador Oreste Ristori. depois meu amigo" (4). A produção da década de 30 reflete esta atmosfera, embora deixe transparecer idéias opostas aos princípios do Partido. Assim se verificou quando Oswald analisou o papel do Estado na transformação e no desenvolvimento de uma nova sociedade. Não aceitou o Estado burguês, repressivo e defensor do sistema capitalista; também não viu com bons olhos a dominação permanente de um Estado totalitário. Além disso, durante este período de ativismo político,. colocou em quarentena o vigor das teorias estéticas renovadoras da década de 20 e as reivindicações mais ousadas de caráter geral. Mesmo pensando no seu teatro, já que o romance Serafim Ponte Grande. embora publicado em 1933, foi inteiramente concebido quase dez anos antes. Inclusive a proposta, esboçada na Antropologia, de reivindicação da posse contra a propriedade foi suspensa até os anos 40, quando a retomou nos ensaios de filosofia, nas famosas teses universitárias e. de modo muito irreverente. no volume A Revolução Melancólica do Marco Zero.
    
Oswald também em questões anarquistas não foi ortodoxo como não o foi durante suas ligações com o comunismo. Aliás, dogmatismo não passava pelos seus projetos, pois esteve sempre acessível à revisão de suas idéias. No depoimento citado mais atrás ele se auto-analisava- "Tem apenas a coragem das suas transformações. É uni ultra-sensível (... ). Colonial com o Théatre Brésilien (l9l6), anarco-cristão com a desgraça e a solução sentimental a que se acolhe o lumpen de que fazia parte como boêmio (em 1922), anarco-feudal em Pau-Brasil e Primeiro Caderno - reflexo da alta vida a que subira com a fortuna herdada, extremando-se em anarco-indígena com Serafim e a Antropofagia, comunista enfim (... )" (5). A sua trajetória literária daria para ilustrar a nossa argumentação, sem precisar recorrer aos depoimentos de seus contemporâneos. Mesmo assim, remetemos ao agudo perfil traçado por Menotti del Picchia de seu irrequieto amigo no "Correio Paulistano" (6). Dando continuidade à reflexão da sua própria trajetória, em 1933. renegou os princípios burgueses no famoso prefácio do Serafim; mas fez a autocrítica de seu engajamento político, e ao romper com o Partido Comunista ofereceu, nas páginas dos principais jornais do país, um balanço contundente da atuação deste partido no cenário político nacional.
     
Como vínhamos assinalando, são infinitas e bem evidentes as afinidades entre Oswald e as diferentes doutrinas anarquistas. Mesmo assim, o escritor não hesitou em tecer críticas ao desempenho das lideranças anarquistas no nosso País. Embora longa a citação, é interessante ouvi-lo diretamente sobre o problema: "No Brasil, o anarquismo ou se despe nos braços de sonhadores boçais ou veste francamente a roupa "apolítica" da polícia política. Tem assim produzido as maiores traições à classe dos trabalhadores, sempre ligado a generais da milícia ou do trotskismo. Como no Brasil tudo chega atrasado, isso se explica. A hora do anarquismo já passou. Hoje só se atinge o bem individual através do bem coletivo. Foi no século passado no apogeu do capitalismo individualista que o Anarquismo prosperou. Veja-se a onda emocional de Nietzsche e Dostoiewski, a política de Bakounine e Vera Zassoulitch, a filosofia de Schopenhauer a Bergson, a estética do impressionismo ao pontilhismo e ao fauvismo" (7).
      
Ficou patente que, a partir de 1930, inaugurou-se no Brasil uma série de transformações econômicas, sociais, marcando o surgimento claro de novo sistema político. Em "Correntes Doutrinárias" (l936) Oswald apontava na política nacional duas novas tendências: a corrente cooperativista (ligada ao grupo tenentista) e o cooperativismo livre, liderado pelo deputado paulista Oscar Stevenson. Mesmo iniciantes, achava que as experiências cooperativistas brasileiras não passavam de uma extensão do capitalismo, E nessas experiências, sob a orientação do eixo Roma-Berlim, Oswald visualizou uma ameaça às nossas liberdades. Propôs como estratégia de combate ao fascismo, que tentava instalar-se no país ("através de seu dissimulado capanga - o integralismo"), a formação de uma Frente Nacional Democrática, união de todos os partidos, ideologias e credos. Oswald de Andrade mostrou em outros trabalhos sua preocupação com a propagação do fascismo no Brasil. "Panorama Mental do Fascismo", crônica dialogada com vários personagens, marcou mais uma vez sua posição crítica e de oposição ao lntegralismo. Ao contrário de muitos intelectuais brasileiros indecisos e enamorados pelas ambigüidades do discurso do fascismo capenga brasileiro, não vacilou em criticar o integralismo.
     
Até 1926 Paulista era senhor absoluto da política nacional. Os desentendimentos cresciam no interior do partido com protestos contra a política cafeeira. Da cisão do PRP. surgiu o PD, o Partido Republicano presidido pelo Cons. Antonio Prado e formado por fazendeiros descontentes e profissionais em geral. O programa do novo partido, calcado na pregação revolucionaria tenentista, tentava contentar a classe media urbana. Oswald em dois textos curtos comentou a politicagem paulista, em especial as rusgas entre o PRP e o PD ("Cabalares!", assinado por Felipe Camarão; e um outro texto sem título). O primeiro documento tratou da política em Piracicaba (SP) e do desempenho político do Deputado João Sampajo. O segundo criticou a "atuação do PD contra as instituições republicanas". Oswald de Andrade era ligado ao PRP e muito amigo dos próceres do Partido Republicano, Washington Luis e Carlos de Campos. Defendeu com unhas e dentes a atuação deste partido que desenvolveu em São Paulo "... obra de liberdade, de progresso, de desenvolvimento maravilhoso, de ordem" (... ). Embora considerando-se "representante da vontade popular, amigo do povo", o PD, segundo Oswald de Andrade, formado por "oligarquias tradicionais" e "escravocatas típicos" viveu em "permanente e vitalícia minoria". A ligação dos Andrade com o PR era uma tradição antiga de família. O Sr. Andrade, pai do escritor, era filiado ao PR, conforme se depreende de uma carta enviada pelo secretário do partido, comunicando-lhe o seu quinhão de contribuições nas despesas do banquete em homenagem a Campos Sales em 1902 (8).
     
Depois de sua barulhenta participação no Congresso da Lavoura em 1930, escreveu "0 Brasil Diante de Dois Imperialismos Poderosos" (provavelmente de 1932). Texto longo e incompleto estruturado em duas partes: "o grande produto nacional - o café"; e "orientação dos grandes imperialismos rivais - inglês e americano - no desenvolvimento do golpe militar de 30". Na primeira parte, historiou as vicissitudes da política cafeeira do Brasil, marcada por empréstimos, descontos de letras e emissões valorizadoras: "Uma economia que tende numa ilusão de progresso e vida civilizada ao empobrecimento geral", regulada pelo sistema bancário internacional (ingleses e norte-americanos). Cada uma dessas potências financeiras apoiava uma das correntes em que se dividia a vida política nacional. Os ingleses sustentavam a grande burguesia latifundiária, industrial e constitucionalista; os interesses americanos torciam pela vitória tenentista. Este ponto de vista foi também defendido por Leôncio Basbaum na sua análise daquela revolução, em 1934. A revolução de 30 - logo reconhecida pelos Estados Unidos - diminuiu as preocupações norte-americanas em relação à política brasileira. Oswald criticou veementemente o governo brasileiro que, para escoar a safra cafeeiro, trocou 1 milhão e duzentas mil sacas de café. tipo suave, por trigo americano. Proporcionando, no seu entender, ao mercado disputado pelo Brasil "um estoque considerável". Com esta troca, concluiu Oswald, eliminou-se o imposto, e o café pôde ser vendido a baixo preço.
     
Este texto embora bem fundamentado é marcado pelos chavões do Partido Comunista, Oswald de Andrade usou e abusou destes clichês, porém a sua argumentação não perdeu a dinamicidade. Aliás Oswald de Andrade dominou muito bem o assunto café até 1930, nos bons tempos de próspero proprietário da "Fazenda Santa Tereza do Alto".
     
E para finalizar, é interessante fazer algumas observações em torno dos projetos de Oswald de Andrade voltados diretamente para a educação e informação geral do trabalhador. Programou edições voltados para o operariado, com o enfoque de problemas que, além de ser de interesse do trabalhador, despertassem sua curiosidade e desejo de ampliar seus conhecimentos. No projeto da "Pequena Enciclopédia Proletária" previa a edição de 50 volumes de 100 a 200 páginas, englobando conhecimentos gerais, com volumes voltados especificamente para a literatura, artes plásticas, música, cinema, TV, informações sobre fatos cotidianos, biografias e aspectos particulares da política operária etc. Enfim uma mini-biblioteca cujos temas estavam selecionados por volume, e que certamente não se tornou realidade.

(1) Fragmento de manuscrito, sem título, Acervo Oswald de Andrade, Coleção Adelaide Guerrini de Andrade, Centro de documentação, IEl, UNICAMP.

(2) "Auto-retrato - Oswald de Andrade visto por Oswald de Andrade". "Leitura", Rio de Janeiro, maio de 1943.

(3) Eli Diniz, "0 Estado Novo: Estrutura de Poder e Relações de Classes", in Boris Fausto (org.), O Brasil Republicano, São Paulo, Difel, 1981. t. 3, v 3, págs.79-120.

(4) Oswald de Andrade. Um Homem Sem Profissão. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1974. pág 46. (5) Ver nota nº 1

(6) Menotti del Picchia. O Gedeão do Modernismo: Introdução seleção. organização por Yoshie S. Barreirinhas, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1983. págs. 168-170,

(7) Manuscrito sem título, Acervo Oswald de Andrade, IEB - USP

(8) Carta de Horácio Gonçalves Pereira. Acervo Oswald de Andrade, Coleção Adelaide Guerrini de Andrade, Centro de Documentação, IEL, UNICAMP.

Folha de S. Paulo, Folhetim, 4 de novembro de 1984