ADRIAN MARINO: TEORIA E METODOLOGIA DE ABORDAGEM DA VANGUARDA LITERÁRIA

      Ultimamente, a Vanguarda literária do início do século tem merecido minuciosos estudos. Pesquisadores universitários dedicam grande espaço, nas suas tarefas acadêmicas, para sistematizar a história de um período cultural muito agitados criativo e contraditório.
    
 Principiada com o erudito estudo de Renato Poggioli, Teoria dell'arte d'avanguardia (1962)1, essa sistematização é feita com o auxilio das fontes primárias (produções individuais, periódicos, correspondências) e com o depoimento dos escritores-artistas.
      Participante do grupo romeno de vanguarda, Adrian Marino vem oferecendo uma série de ensaios sobre a Vanguarda literária. A convivência com aquela Vanguarda estimulou a reflexão teórica a nível de literatura comparada, tentando esboçar uma conceituação precisa e genérica do fenômeno, que facilite a identificação dos diversos movimentos. Seu trabalho auxilia os estudiosos de outros países na análise mais objetiva dos demais movimentos nacionais de vanguarda.
       O seu primeiro estudo nessa área é um artigo publicado no Contemporanul em 1962 2. Antes de se dedicar à teorização e análise dos fenômenos da Vanguarda, esclarece problemas de terminologia e discute as noções de Moderno, Modernidade e Modernismo (especialmente em "Le Moderne et l'évolution de la conscience littéraire"- "Moderne et nouveau approche sémantique-historique"; "Modernisme et Modernité, quelques precisions sémantiques',3). Além de rastrear afinidades semânticas, detecta a ligação íntima entre os conceitos de Moderno, Modernidade e Modernismo com a idéia de novo e novidade. A pesquisa de Marino constata uma tendência geral, desde a Antigüidade, para se transformar a novidade em qualidade, em condição essencial da arte. Isso é, o novo se transforma em elemento de valorização literária. Essa discussão tem o mérito de mostrar como a noção acronológica de Modernidade influiu paulatinamente no desenvolvimento da consciência literária, questionando sempre a legitimidade e o estatuto da idéia literária. Outro traço pertinente ao Moderno, discutido por Marino e importante para a compreensão dos fenômenos de Vanguarda, é a postura de negação-contestação instaurada a partir da ruptura que a novidade provoca. Observa-se que, aos poucos, a estética literária conscientizou-se da insurreição e da necessidade de liberalizarão, dessacralizou o objeto literário e desmistificou a maneira de concebê-lo. Marino revela ainda que a consolidação da idéia de Moderno introduziu a dialética do universal/nacional. O "gosto" do moderno se localizou, se nacionalizou. Sobretudo no século XX, onde ocorreu uma maior valorização da literatura em função da novidade.
       Marino não aceita a tendência de determinadas literaturas em apoderar-se da etiqueta Modernismo a fim de definir "uma época moderna" (o Modernismo espanhol, o sul-americano e o anglo-saxão). Acredita que bem antes da famosa "Querela dos antigos e dos modernos" (século XVIII) existiram muitos Modernismos. As várias periodizações do Modernismo espanhol são pretexto para considerar difícil a demarcação dos contornos precisos do Modernismo, ainda que em uma só literatura. A denominação convencional de Modernismo - uma época, corrente, movimento, escola - no seu entender, peca pela falta de unidade, unia vez que cada cronologia implica em novas delimitações de tempo, identificando outros conteúdos, outros Modernismos. As reflexões de Marino têm por base o Modernismo espanhol e o inglês. De qualquer sorte, encara o Modernismo como uma noção aplicável a qualquer aspecto literário, contemporâneo ou não. A exemplo das noções de Moderno e Modernidade, entende por Modernismo o impulso renovador, reformador, crítico, polêmico, ou seja, a expressão da novidade literária. A nível de literatura comparada, propõe uma leitura simultânea das constantes, assim, tem-se a oportunidade de examinar outras significações do Modernismo, que encaixam num modelo virtual do Moderno com uma funcionalidade precisa. E discorda também quando se rotulam de Modernismo fenômenos que na realidade se caracterizam como Vanguarda. Não faz referências ao movimento de renovação artístico-literária que eclodiu em muitos países da América do Sul, inclusive Brasil, na primeira metade do século, também chamado de Modernismo. Toca de leve no assunto em outros ensaios, mas não se alonga para estabelecer as diferenças que afastam esse Modernismo daquele que aconteceu na Espanha no século passado.
      Embora essa série de artigos, algumas vezes, se apresente confusa e repetitiva, obtém-se a sistematização de muitas idéias conhecidas que se encontravam dispersas. Marino consegue levar a termo seu objetivo. Prova como a supervalorização da literatura, em função do fator novidade, não foi privilégio único da Vanguarda do início deste século. É redescoberta de uma idéia antiga. E ao traçar a sua continuidade e coerência ao longo da história literária, constata que o elemento novo - marca do Moderno, da Modernidade e do Modernismo - exige redefinição constante, a cada momento do seu percurso.

      "Essai d'une définition de l'avant-garde" (1975) 4 estruturado em oito partes, subdividido em vários itens, às vezes, peca pelo detalhe e repetição dos argumentos. Todavia, a intenção foi frisar insistentemente pontos importantes, ignorados em muitos trabalhos sobre a Vanguarda histórica. É um texto síntese, tentando abarcar os traços que caracterizam e definem as manifestações na Europa. Tem também o caráter de apresentação do assunto (inclusive a revista, onde o ensaio aparece pela primeira vez, é um número e especial dedicado ao estudo da Vanguarda literária). Enumera os problemas que possivelmente enfrentará para estudar o tema: 1, a dificuldade de isolar a Vanguarda literária dentro de um contexto estético mais amplo; 2. sua natureza caótica e heterogênea que desafia toda definição; 3. emprego abusivo do termo em situações diferentes, descaracterizando por vezes o fenômeno. Com esse levantamento análise, a literatura comparada é enriquecido de muitas sugestões de trabalho a ser desenvolvida e aplicada no domínio das demais ramificações, em diferentes países e literaturas.
       Depois desse ensaio de caráter geral, Marino principia a analisar "topos" que ecoam por todos os movimentos de Vanguarda. Uma perspectiva que faz parte da teoria e metodologia desenvolvidas mais tarde no ensaio "Le comparativisme des invariants: le cas des avant-gardes"(1976) 5. Encontra-se, por exemplo, delineada nas Vanguardas a proposta de renovação da linguagem. No "Manifesto técnico futurista" (l9l2) exige-se a "liberação total da imaginação", que desencadeia as demais propostas de renovação lingüística, responsável pela instalação de nova ordem estética e criativa. Tenta provar em "L'avant-garde et la révolution du langage poétique" (l975) 6 que foi no contexto histórico-literário, das Vanguardas que se iniciou a renovação da linguagem poética nos moldes em que hoje é teorizada 7.
        Discute problemas metodológicos no âmbito da literatura comparada. Propõe um comparativismo no campo das idéias literárias ou das "idéias-forças comuns", com o auxilio da pesquisa de "invariantes". Ou melhor, sugere a pesquisa de identidade de ordem teórica, temática, tipológica, visando a um panorama síntese dos fenômenos de Vanguarda. Os exemplos colhidos permitem comprovar na consciência teórica desses movimentos, a existência de dados que propiciam uma definição cornum da Vanguarda. Conta com adesões que reforçam sua metodologia: 1. o reconhecimento das "invariantes" pelos críticos comparatistas e pelos estudiosos da Vanguarda; 2. os escritores e artistas refletem sobre o movimento em termos de constantes. Esse mesmo método vem sendo imprimido às pesquisas realizadas sob orientação do Centro de Estudos da Vanguarda Literária da Universidade de Bruxelas. Ao traçar a programática de trabalho o supervisar do Centro esclarece: "numa obra de comparação importa reduzir a multiplicidade de fenômenos, estendendo por mais de meio século e tendo nascido nos quatro cantos do mundo, a alguns tipos fundamentais. Objetiva-se traçar uma apologia das Vanguardas, partindo-se de um modelo básico (método genético e tipológico). O resultado dessa pesquisa será a "História das Literaturas de Línguas Européias", em preparo.
      Marino analisa separadamente os elementos considerados "invariantes" (revolução da linguagem, a relação da revolta estética com a tradição artística, etc.). Embora levante dados não totalmente desconhecidos, organiza as idéias, pincelando-as com a marca de eruditismo que lhe é peculiar, enriquecendo-as de uma gama variada de exemplos. Disserta sobre todas as manifestações, do Cubismo às Neovanguardas e reconhece os aspectos revolucionários pioneiros do Futurismo italiano. No ensaio "L'avant-garde, la révolte et la tradition artistique"(1976) 8 observa que as Vanguardas do século XX condenaram a estética estupidamente tradicional. E as diatribes contra o passado desgostado foram encontradas, primeiro, nos futuristas, cuja atitude radical contra as instituições culturais é muito bem explicado. Essa vontade de destruir é entendida como tentativa de sacudir as bases da instituição símbolo da arte antiga. A sua iconoclastia tem como um dos objetivos questionar a idéia tradicional de arte: arte enquanto materializarão do belo. Lembra como os futuristas se enfurecem contra a arte entronizada. Uma fúria que mais tarde o Dadá consciente do esvaziamento da arte e das mudanças radicais na função, técnica e forma de concebê-la leva às últimas conseqüências. Dentro desse espírito, acrescenta, é normal se esperar uma investido contra a convenção suprema da estética tradicional - o princípio do belo. Aliás, a idéia de anti-belo foi posta em voga exatamente pelos futuristas ("Manifesto dos pintores futuristas", 1911), como explica em "Anti-beau et anti-art selon l'avant-garde" (l976) 9. Deste artigo, conclui-se que a rebelião contra mais esse princípio da estética tradicional é generalizada e formulada em termos semelhantes, mesmo levando-se em conta as diferenças específicas e históricas de cada movimento. Uma ilustração disso é a frase do futurista Soffici - "a arte não é uma coisa séria" - repetida mais tarde, com escândalo, por Tzara (l9l6).
       O desejo de retornar às origens, ao estado primordial não corrompido, é uma constante presente em todas as ramificações vanguardistas. L'avant-garde et l'histoire retrouvée" (1977) 10 documenta os objetivos com que as Vanguardas encarnam essa busca. Como reação de defesa e método de regeneração, ressalta a pregação futurista pelo "fervor entusiasta dos elementos primordiais", a "nostalgia dos elementos primordiais" dos expressionistas, a "pureza primeira" dos futuristas russos e da Bauhaus, a busca dos "elementos primários" por Tzara e o "retorno aos princípios" pregado pelos surrealistas. A proposta de ida às fontes, delineado nos textos teóricos e na criação propriamente dita, vem esquematizada em seis itens: 1. a procura dos elementos primordiais, de modo geral; 2. a obsessão da pureza elevada à condição de mito o Homem inocente, simples e ingênuo; 3. o mito da infância; 4. o motivo do primitivo; 5. a obsessão paradisíaca; 6. o conceito de poesia moderna relacionado com as forças espirituais da Humanidade.
       Na luta da Vanguarda contra os princípios estéticos tradicionais a desvalorização do princípio do real é detectada no roteiro de toda a programática esboçada 11. Ao confrontar a posição da crítica marxista com os textos teóricos da Vanguarda sobre a questão do realismo, percebe-se que este é um assunto apenas evocado de maneira acidental tanto na teoria como nas atividades dos porta-vozes vanguardistas. Isto acontece pelo menos até 1932. Todavia, a insistência em repe lir a imitação esteve sempre em pauta do Futurismo ao Construtivismo. Segundo Marino, a Vanguarda rejeita a teoria e a prática burguesas da realidade (ver por exemplo o Manifesto Surrealista de 1924), e, no plano artístico, o realismo-dogma, o realismo-convenção, o realismo clichê. O novo critério estético adotado é a confrontação com a realidade em formação. Deixando de lado o critério mimético, o que comanda é a imaginação criadora do real. Argumenta Marino que os artistas de vanguarda se distanciara do chamado realismo social ao reivindicarem o direito de selecionar, recuperar e deformar a imagem da realidade, introduzindo distorções e exageros (grotesco, caricatura, hipérbole). E dentro desta visão, todos os procedimento de apreensão da realidade são considerados válidos: colagens, alegorias, símbolos, parábolas. Esse ensaio reforça aquilo que intuitivamente se vislumbrava: a Vanguarda reelabora radicalmente a idéia da realidade e do realismo.
       A obra de Adrian Marino fornece ao pesquisador da literatura de vanguarda subsídios do ponto de vista teórico e metodológico. A sua proposta de análise e levantamento das "invariantes", além de proporcionar uma compreensão ampla do fenômeno Vanguarda, realiza um panorama geral dos movimentos da Vanguarda artístico-literária na Europa. Definidas as características gerais do fenômeno, torna-se mais fácil estabelecer no âmbito nacional as manifestações que alcançam o nível de uma produção de vanguarda. Processo que decorre não por pura mimetização, mas por ter o movimento nacional levantado propostas novas de transformações da linguagem e da sociedade, utilizando-se de procedimentos peculiares a uma arte de vanguarda.
      Dentro desta perspectiva metodológica, está descartada a idéia de influência, problema aliás na maioria das vezes mal colocado por aqueles que analisam a literatura de um país dependente. Pensamos no Brasil, sobretudo no movimento da Antropofagia (1928 - 1929), liderado por Oswald de Andrade. A ênfase que a Vanguarda dá na sua relação com precursores e sucessores, analisada por Marino, é traduzido em termos de reiteração, de correspondência. A Vanguarda cria sua. tradição ao reconhecer a existência de elementos idênticos que preexistem e continuam. E essa seria uma das leituras viáveis para o movimento antropofágico no Brasil, sob a tutela de Oswald de Andrade, em outras palavras, determinar as constantes e permanências da Vanguarda incorporadas e transformadas pela corrente antropofágica. Examinandas à luz do processo de formação da literatura nacional, temos o exemplo da utilização pela Antropofagia de produções do período colonial, cuja incorporação se transforma em instrumental de análise crítica de problemas sócio-culturais contemporâneos.

     Canibalismo, a idéia de futuro, o homem novo, o desejo de destruição. A correspondência no movimento brasileiro aparece de forma transfigurada, a partir da realidade e das exigências do nosso processo cultural. Nas Vanguardas européias buscam-se motivos na arte africana (Dadá) e no Oriente (Surrealismo), numa preocupação evidente com os elementos primordiais. A Antropofagia persegue isto nas fontes brasileiras. No nosso primeiro habitante procura inspiração para suas propostas do Homen novo, da vida paradisíaca na sociedade matriarcal e da metáfora do canibalismo cultural.

NOTAS

1- Renato Poggioli - Teoria dell'arte d'avanguardia. Bologna, Mulino, 1962.

2- Adrian Marino - Avangarda literara si traditia, Contemporanul. Bucarest, 1966.

3- Idem, - Le moderna et l'évolution de la conscience littéraire. Diogene, Paris, 77: 111-132.

Idem - Moderne et nouveau, approciie sémantique-historique. Cahiers Roumains d'Études littéraires, Bucarest, 2: 64 - 73, 1973.

Idem - Modernisnie et modernité, quelques precisions sémantiques. Neohelicon, Bucarest, 3/4: 307 - 318.

4- Idem - Essai d'une définition de l'avant-garde. Revue de l'Université de Bruxelles, Bruxelles, I: 64 - 120, 1975.

5- Idem - Le comparativisme des invariants: le cas des avant-gardes. Cahiers Roumains d'Etudes Littéraires. Bucarest, l : 81 - 95, 1976.

6- Idem - L'avant-garde et la révolution poétique. Cahiers Roumains d'Êtudes Littéraires, Bucarest, 3 - 2 : 92 - 107, 1975.

7 Julia Kristeva - La révolution du langage poétique. Paris, Seuil, 1974.

8 Adrian Marino - L'avant-garde, Ia révolte et la tradition artistique. Synthesis, Bucarest, 3 : 167 - 177, 1976.

9 Idem - Anti-beau et anti-art selon l'avant-garde. 'Revue Roumaine des Sciences Sociales, Bucarest, I : 51 - 57, 1976.

10 Idem - L'avant-garde et l'histoire retrouvée. Synthesis, 4 : 227 - 241, 1977.

11 Idem - L'avant-garde historique et la question du réalisme. Cahiers Roumains d'Études Littéraires. Bucarest, I : 416 - 26, 1978.