TRANSFORMATIONS OF LITERARY LANGUAGE IN LATIN AMERICAN LITERATURE 1987

From Machado de Assis to the Vanguards

Edited by K. David Jackson

Department of Spanish and Portuguese
Universty of Texas at Austin
Abaporu Press

Modernismo e Surrealismo

     O Modernismo brasileiro, isto é, o movimento de rebeldia artístico-literária historicamente datado de 1917 a 1930. manteve com a vanguarda européia uma relação constante, diversificado e ao mesmo tempo independente. No inicio a principal meta do movimento, festejado por ocasião da Semana, foi a atualização das letras nacionais pretendendo sobretudo quebrar a hegemonia de uma estética parnasiana de grande sucesso. representada pelas figuras exponenciais de Bilac e Alberto de Oliveira. logo no primeiro texto programático--o editorial da revista Klaxon--os modernistas revelaram ansiedade de atualização e também de independência: "Klaxon não se preocupará de ser novo, mas de ser atual (…) Essa é a grande lei da novidade. Liberdade."
      É importante que as tentativas criticas de traçar filiação levem em conta o firme propósito do Modernismo de conseguirem identidade própria e ao mesmo tempo a sua ininterrupta disponibilidade de diálogo com o amplo leque das propostas de renovação estética proporcionado pelos vários ismos europeus das três primeiras décadas do século. O "Prefácio interessantíssimos (1922) e a Escrava que não é Isaura (1924), dois dos principais textos teóricos-doutrinários do nosso Modernismo, de autoria de Mário de Andrade, deixam desnorteados os críticos que vão à procura de um flagrante de filiação mais ortodoxa a qualquer desses ismos. Estes dois textos mostram a variedade da contribuição estrangeira incorporada e absorvida: desde a teoria das palavras em liberdade futurista até a incorporação da blague. da ilogicidade, da espontaneidade Dadá. Podemos até adiantar que. no panorama do movimento modernista brasileiro, particularmente no seu primeiro momento de questionamento e derrubada dos velhos padrões estéticos, as teorias que mais contribuíram para a desejada atualização foram certamente aquelas que apresentaram roteiros mais radicais de destruição: o Futurismo de Marinetti, Papini, Govoni e Soffici (estes três últimos autores muito mais lidos entre os brasileiros do que mesmo Marinetti) e o Dadaismo de Tzara e Picabia. As demais tendências da vanguarda histórica, mesmo considerando suas diferenças cronológicas e de idéias, como o Expressionismo, Cubismo e o Surrealismo, incentivaram num segundo momento os brasileiros a sistematizarem propostas em prol da construção de uma realidade nova e menos artificial.
      No caso especifico da revolução surrealista a acolhida brasileira se deu em vários tons. Primeiro, uma voz decididamente dissonante e de muito prestígio: a do principal critico do nosso Modernismo--Alceu Amoroso Lima. Tristão de Athayde, como era literariamente conhecido na seção 'Vida Literária,' que mantinha em O Jornal do Rio de Janeiro, consagrou dois domingos (14 e 21 de junho de 1925) para condenar veementemente o Surrealismo. A doutrina do Surrealismo, aliás do Supra-realismo como grafava Tristão, foi conhecida logo após a publicação do seu primeiro Manifesto, lido na edição francesa da Sagitaire de 1924, intitulada Manifeste du Surréalisme. Nestes dois artigos apontou o perigo das idéias que implicaram na quebra radical de tradições anteriores e na eliminação das forças e dos dogmas (sociais. econômicos, religiosos e morais) inibidores do homem contemporâneo.
      Tristão de Athayde captou perfeitamente a essência das inovações propostas por Breton. sobretudo aquelas que procuraram ressaltar a importância do subconsciente, apoiadas cientificamente em Freud. E não aceitou as forças do subconsciente ou melhor "os resíduos do espírito,' 'um mundo de larvas,' de sombras furtivas" como representantes da expressão profunda de nossa personalidade, e como componente primordial da nova arte. Admitia o recurso à psicanálise a fim de extrair novas riquezas, mas com total controle e domínio sobre as forças do subconsciente. Pensando assim, a psicanálise veio confirmar a lucidez como condição da grande arte, exatamente o oposto dos planos surrealistas. Tanto o critico modernista intuiu nessas conquistas o grau de subversão que poderia causar nos costumes, na moral, na arte enfim, que os tratou como uma perigosa "infecção literária' a ser duramente combatida. Não devemos esquecer que além de critico literário importante e bem informado, Alceu A. Lima retomou ao catolicismo em 1928, assumindo o lugar do filósofo Jackson de Figueiredo na liderança do movimento católico, Inclusive no presidência do famoso Centro Dom Vital. Portanto não é estranho que o aceno surrealista de liberdade absoluta o amedrontasse. "É preciso ver o mal para precaver-nos a tempo,' com esta advertência, Tristão de Athayde esperava pelo menos que a 'infecção' chegasse até aqui bastante arrefecida 'lá para 1950.' As Idéias assustadoras que o Surrealismo trazia no seu bojo. das quais era preciso 'defender-nos," se configuravam para o critico em primeiro lugar como um processo geral de 'involução': a arte purificação passaria a ser uma abjeçõo, uma volta à matéria. Para um líder católico essas mudanças pareciam mais grave que todo o materialismo, porque anunciavam um processo geral de dissolução que reduziria à forma gelatinosa a natureza e o espírito. O que extremava a diferença entre o pensador católico e o Surrealismo era a noção de limites. O manifesto de 1924 vinha propor a quebra de todos os barreiras e Instaurar o livre reinado da imaginação. Foi justamente a noção rígida de fronteiras do consciente e de renúncia ao livre trânsito do subconsciente que embasaram este pensamento conservador. 'Ser homem é impedir que o lodo flutue. Ser artista é decantá-lo' pregava Dr. Alceu. Apagar a topografia dessas regiões mentais significava derrubar a estrutura dos edifícios e isso no seu entender era ilusão de liberdade, conseqüência normal de um estado de inércia; a abolição da inteligência e conseqüentemente o domínio livre do instinto levava ao suicídio civilizacional. A marcha secular dos idéias não podia ser desviada. o católico atuante Interferia assim no trabalho do critico literário, impedindo este último de aceitar o espírito de liberação que a arte moderna anunciava.
      A outra voz de destaque nessa onda discordante ao chamado sobrerealismo foi a do poeta Mário de Andrade. Não na mesma diapasão que marcou o artigo de Tristão. Mesmo assim, uma atitude de franca oposição, expressada equilibradamente e em coerência com a concepção de arte interessada do escritor que ameaçava quebrar a sua pena "o dia em que ela se puser escrevendo sem estar predestinada.' A princípio Mário mostrou-se arredio, desinteressado até a respeito do Surrealismo. Importava-lhe no momento que sua arte estivesse inserido dentro de um projeto intelectual de arte brasileiramente interessada, isto é, de fixação nacional. de realização de obras de ação. "Em vez de pregar eu faço.' era dessa forma que explicava aos jovens discípulos correspondentes o caráter transitório e engajador da sua criação literária. E neste afã de contribuir para a organização da realidade brasileira, o Surrealismo representava um fenômeno de fadiga intelectual, perfeitamente psicológico e muito natural na França. Escrevendo para seu amigo Prudente de Morais. neto, 1 Mário não escondeu sua preocupação pelos traços surrealistas do texto 'Aventura," publicado na revista Verde. Lamentava que o jovem escritor estivesse enveredando para o caminho da arte pura à maneira do Surrealismo, 'arte quintessenciada" sem nenhuma relação com o país. Um comentário irônico na sua crônica no Diário Nacíonal quase provocou ressentimentos entre os dois amigos. Mário brincara com o titulo do texto de Prudente: "uma Aventura que é um primor de estilo.' De qualquer forma, inibido ou não com a reação do 'mestre' modernista, Pedro Dantas, pseudônimo literário de Prudente de Moraes, neto, preferiu fazer sua carreira apenas como jornalista. A literatura brasileira talvez tenha perdido um prosador que se mostrara naquela 'Aventura' bastante promissor, mas ganhou um excelente critico literário infelizmente pouco conhecido. Dez anos depois, Pedra Dantas nos surpreendeu com um estranho e interessantíssimo poema 'A cachora' tornado público através de Antologia Brasileira de Poetas Bissextos Contemporâneos de Manuel Bandeira. Curiosamente no nº 5 da mesma revista do grupo mineiro de Cataguases, Mário apresentou de forma simpática o texto em francês 'Exercice ou Pretexte Surréaliste ou Surtexte Réaliste' de Dolour (Dulce Amaral. filha da pintora Tarsila do Amaral). uma das colaboradoras da Revista de Antropofagia. A apresentação, também escrita em francês, embora simpática não convidava ninguém a fazer a viagem dessa jovem sobrevoando seus passados Imaginários num exercício de bastante intensidade psicológica, com sonhos, lágrimas, revoltas, trabalhados num texto 'alado.'
       Mário de Andrade, mentor Intelectual dos jovens escritores, discutia e dava sugestões literárias sobre estética, poesia, comportamento. moral. etc. Numa dessas lições ao poeta estreante Carlos Drummond de Andrade presenteou o seu público com um gesto de simpatia passageira pelo Surrealismo e uma noção equivocada do movimento francês: 'Poesia minha de agora: ou caio num lirismo absoluto, quase automático e sobrerealista, Intelectual, Incompreensível, ou melhor, paralógico, ao lado da lógica intelectual, os tais 'versos de louco,' ou traio de cabo a rabo esse conceito de poesia que é o meu atual e apenas evolução drástica e Incisiva de idéias expostas na Escrava." 2 Mário estava referindo-se aos 'Poemas da Negra' e 'Poemas da Amiga.' O livro de Drummond--Alguma Poesia--reunia poemas, muitos deles divulgados em revistas da época, na sua maioria marcados por processos nitidamente modernistas. Comentando o último poema--"Purificação'--. Mário observava: 'Isso é bem da psicologia de você com as grandes fadigas, os grandes amarguras e por isso desleixos intermitentes da vida, provocados pela sua enorme luta consigo mesmo sem ser o automatismo psíquico do sobrerealismo (que por servil demais, me parece um processo, como qualquer outro) repare como então o lirismo se separa do individualismo e pela sua própria vagueza se torna mais humano e mais geral.'
      Pensando no carismo intelectual do autor de Paulícéia Desvairada e na influência da critica de Tristão de Athayde sobre a jovem geração de intelectuais, compreendemos porque o Supra-Realismo, o Sobrerealismo ou Surrealismo repercutiu num circuito muito restrito do nosso Modernismo.
      Apesar dessas restrições de peso ao movimento surrealista, foi particularmente a força desagregadora da nova arte que atraiu Oswald de Andrade e seus companheiros de Antropofagia. No realidade, surrealistas e antropófagos tinham um sonho comum. Acreditando na força revolucionária de arte, esperavam que a dissolução dos velhos esquemas permitisse o surgimento de formas mais justas e prazerosas de vida. Fascinava-os a possibilidade de verem descortinar-se horizontes livres e desconhecidos. A ameaça de perigo, levantada por Tristão de Athayde, não passava pela cabeça audaciosa de Oswald, amante da novidade e da experimentação. Por sinal, ousadia criativa foi um dos ingrediente da sua obra. Os elementos surrealistas renegados, Oswald os recuperou e os reinventou. torríando-os seus. Como um inveterado bricoleur, soube aproveitar-se dos resíduos mais interessantes e construir um corpo doutrinário atualizado e original. A abolição da lógica e da inteligência, tão temida por Tristão por ser o esteio da espiritualidade superior, para a antropofagia oswaldiana era a única terapêutica possível no sentido de se estruturar um novo mundo. conforme sugeriu ainda nos tempos do pau brasil: . as leis nasceram do próprio rolamento dinâmico dos fatores destrutivos"; e depois transformou em proposta antropofágica: 'Deglutir tudo. Construir de novo.' Esta disponibilidade permanente de revolta de surrealistas e antropófagos foi absorvida da intimidade com o pensamento libertário, onde foram encontrar estreitas afinidades, tais como: a salvaguarda ciumenta da liberdade e da independência individual; a valorização de um julgamento moral e afetivo: a crença otimista no surgimento de um futuro mais digno.
      Em 1924 escritores e artistas arremataram a proposta de destruição estética o iniciaram uma nova fase, onde a visão esteticista do mundo dava lugar a um movimento de reconstrução geral, a nível nacional e Internacional. Oswald de Andrade no 'Manifesto da Poesia Pau Brasil," marco dessa fase brasileira de reconstrução, aproveitou para colocar os pontos nos lis no polêmica contribuição do Futurismo à moderna literatura brasileira. Mais tarde, no final da década de 20, nos tempos da Antropofagia, Oswald voltou a se preocupar com 'filiações.' Desta vez extrapolou o campo literário e procurou parentesco para sua revolução antropofágica em rebeliões que acenassem com transformações de caráter mais geral. como por exemplo a revolução Surrealista. Seu interesse pelo projeto filosófico bretoniano de investigação do pensamento humano era grande, aliás. na mesmo medida da sua admiração por Henri Bergson, Nietzsche, Freud e outros. Admirava nesses pensadores a 'confissão que todos eles traziam da falência de todo cultura artificial.' E a teoria da antropofagia oswaldiana propunha a revolução de princípios, roteiros com algumas identificações com o Surrealismo e outras filosofias irracionalistas.
      Breton e Oswald recusaram a definição de escola literária para seus projetas. Nada mais justificável, considerando-se seus objetivos, quais sejam o de provocar transgressão, de subverter as leis existentes para mudar as formas do viver. E obvio que a estratégia dos dois tinha que ser diferente dada a realidade particular de cada escritor.
      Como muitos modernistas, Oswald admitia dividas para com os movimentos europeus, do tipo do Surrealismo, que representavam 'a unificação de todas as revoltas eficazes no direção do homem.' Travestido de um dos exóticos pseudônimos que encheu a Revista de Antropofagia. Oswald explicava que "A liberação do homem como tal, através do ditado do inconsciente e de turbulentas manifestações pessoais foi sem dúvida um dos espetáculos para qualquer coração antropófago, que nestes últimos anos tenha acompanhado o desespero do civilizado.' Por outro lado, junto com seus companheiros, fazia profissão de fé de originalidade: "procurei uma geografia para os meus rumos estéticos, que foi precisamente o Primitivismo."
      O liame fundamental entre o arcabouço ideológico da sua obra e a tentativa francesa de restaurar no século XX um novo humanismo foi a paixão pela liberdade, Repensando os seus quarenta anos de literatura, Oswald procurou em Breton a síntese dos principias da teoria antropofágica; fez sua a antológica frase do manifesto surrealista: 'A simples palavra liberdade é tudo o que me exalta ainda." Foi particularmente a esperança no surgimento da 'cultura da liberdade' que animou toda a atuação da antropofagia. Como os surrealistas, Oswald observava com olho de poeta a condição humana e sua relação com o universo. Com muita fé na força da arte, acreditava que "a sociedade decrópita não poderia resistir à tremenda análise desencadeado pela equipe de gigantes-poetas, filósofos e cientistas--que a tomou pela guela numa gloriosa autofagia.' Lembrava a influência exercido por Baudelaire e Rimbaud sobre a poesia e esta sobre a vida, como se quisesse Ilustrar a sua concepção de arte e de vida. calcado no reconhecimento da realidade como poesia e vivência. Com isto entendemos melhor, tanto a natureza da sua obra interpenetrada de lances autobiográficos, como a sua vida atribulada poeticamente fruída. Certamente uma afinidade estreita com a valorização exagerado da vida pelos surrealistas: vida concebida como um ritmo fundamental. apreendida na sua essência, acima de todas as contradições.
     Não desanimaram estes vanguardistas em contribuir para a libertação do homem moderno. Liberação planejada por Breton e Oswald em todos níveis; principiando em 1924 obviamente por afirmações em prol da livre expressão e da autonomia da arte: 'nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos, livres.' A Revista de Antropofagia (1928-1929) não privilegiou as discussões de caráter estético. Tudo passou conscientemente pelo crivo deglutidor dos antropófagos, conforme notamos nas páginas divertidas desta revista e nas constantes advertências presentes nos variados textos-programas: 'A antropofagia tem uma base cultural seríssima. Não é só literatura. É política. Religião. Tudo." Mais explicitamente definiram: "A descida antropofágica não é uma revolução literária. Nem social. Nem política. Nem religião. Ela é tudo Isso ao mesmo tempo. Dá ao homem o sentido verdadeiro da vida." E essa descida em cima das 'forças de convenção, de acomodação, de hipocrisia' objetivava como anunciava com estardalhaço, furar a carapaça de todas as verdades sociais sufocantes. Para chegar a esta meta pregava a volta ao Matriarcado de Pindorama, a reabilitação do homem primitivo e seu extraordinário espírito edênico. ancorada, como dizia numa moral muito própria a da banana estalada.
      Para o Surrealismo todas as instituições sob as quais repousava o mundo moderno tornaram-se aberrantes e escandalosas, Por isso ridicularizava o aparelho de defesa da sociedade (as forças policiais, a justiça, a religião, a medicina, a educação). A receita para combatê-las com sucesso foi o ataque ao seu alicerce de ordem lógica e moral. A lógica, a moral, a religião e o regime do patriarcado foram os grandes temas da Antropofagia. Na verdade toda a vanguarda histórica tinha consciência da eficácia do irracionalismo como arma para balançar a segurança burguesa. Além da Revista de Antropofagia. o conjunto da obra de Oswald se empenhou em levantar dúvidas em torno da lógica que presidiu a civilização moderna: 'O Ocidente se envenenou do preconceito nacionalista. E só agora, quando tudo estava perdido, foi que compreendeu seu erro; ele chegou aos limites da razão, sem freios, derrapando.'
      Nesta caminhada, os antropófagos se julgavam adiante do Surrealismo, isto é, num estágio de maior radicalização. Os surrealistas eram considerados precursores ou melhor intercessores imediatos da mesma forma como era vista a instigante atuação de Apollinaire, Chirico, Picasso. Vaché, etc. 'Não nos esqueçamos que o Surrealismo é um dos melhores movimentos pré-antropofágicos. Depois do Surrealismo só a Antropofagia." lembravam os antropófagos. Marcavam assim sua ligação e ao mesmo tempo a sua individualidade, porque. é bom frisar, havia antes de tudo uma posição muito firme dos modernistas contra 'todos os importadores de consciência enlatada.' Contra aqueles que vinham para o Brasil: 'cuspir, feder e falir.' No entanto continuavam de braços abertos para o europeu descontente: tipo João Ramalho. De qualquer forma os canibais brasileiros não se davam por satisfeitos com os princípios revolucionários anunciados pelos surrealistas franceses. Para eles o Manifesto de Breton ainda 'respirava através de pulmões cristãos,' o "lirismo de quase todos os surrealistas ainda se resolvia numa tradição de poesia--a poesia francesa. Mesmo assim suas propostas representavam o exemplo mais eficaz contra 'O bolor oficial dos últimos remendos dos ocidentais.' Acreditamos que uma das grandes contribuições do Modernismo foi permitir que a literatura comparada no Brasil não mais se alimentasse de concepções colonialistas de mero levantamento de influências de escritores e artistas estrangeiros sobre os nossos correspondentes brasileiros. Foi a partir da vontade programado dos modernistas de interferir no concerto das nações civilizadas que a nossa poesia brasileira '(á)gil e cândida como uma criança' despediu-se da fase de Importação e 'entrou de cheio na era da exportação.' Não só a poesia. a arte brasileira de um modo geral. Os exemplos dessa troca reciproca saltam aos olhos. Basta lembrar a pintura pau brasil de Tarsila. Ilustrando a poesia de um artista de vanguarda do porte de Blaise Cendrars e os novos rumos que tomou a sua poesia depois do contato com os modernistas brasileiros. Oswald intuiu Imediatamente o alcance da nova arte nacional e a interferência que podia provocar na arte européia e vaticinava: sob um tom de paradoxo e violência, a antropofagia poderá quem sabe dar à própria Europa a solução do caminho ansioso em que ela se debate. "Note você como a Europa procura se primitivisar." E continuava: 'Vamos trabalhar. O mundo precisa de nós. Espera ansioso pelo nossa senha.'
      Seria interessante relembrar, para finalizar, que nossos intelectuais no período histórico do Surrealismo estavam enganados no projeto de criação de uma arte decididamente brasileira, buscando interferir no realidade do país. Projeto este Inspirado na recomendação da vanguarda européia de explorar os elementos primitivos como fonte de inspiração, para incutir um ânimo novo à arte e reconstruir um mundo mais viável--a da Idade de Ouro. Recuperando-se expressões artísticas populares e renovando-se os laços com os tradições folclóricas. os brasileiros reavivaram os elementos especificamente nacionais e primordiais. fundamentalmente novos. como aconteceu em outros países de história mais recente. Para os nossos artistas, na década de 20, havia uma imposição inadiável: o recurso ao nacional, recomendado não por uma simples questão ufanista, mas por ser nosso único caminho para a libertação.

NOTAS

l Mário de Andrade, Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes, neto, org. por G. Koifman (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985), pp. 245-250.

2 ---. A lição do amigo: cartas de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade, anotadas pelo destinatário (Rio de Janeiro: José Olympio. 1982), p. 157.

3 idem.

4 Oswald de Andrade, "O êxito na terra substituía esperança no céu.' Entrevista a Paulo Mendes Campos, Diário Carioca (Rio de Janeiro, 12/10/47).