OS DENTES DO DRAGÃO OSWALD

"Nada de revolução: o papel impresso é mais forte que as metralhadoras" Oswald de Andrade

     Reunir em livro entrevistas de escritores famosos não é novidade. Na história da literatura ocidental temos exemplos pioneiros e marcantes desse tipo de publicação. Modernamente sobressai a reunião de entrevistas de conhecidos escritores à Paris Review, organizada por Malcolm Cowley, com tradução brasileira; O Movimento Literário, editado em 1902 por João do Rio, é bibliografia obrigatória para quem deseja conhecer a vida cultural brasileira do fim do século passado e dos primeiros anos deste século, a partir de depoimentos de vários intelectuais atuantes. Com a divulgação das entrevistas de Oswald de Andrade, um dos expoentes da vanguarda literária de 22, a história do nosso movimento modernista se enriquece.

     A mitologia oswaldiana tem-se alimentado de muita informação vaga e deturpada sobre as atividades do escritor, desde o começo de sua carreira como jornalista e diretor de O Pirralho até l954, ano de sua morte. Portanto, para os jovens leitores de Oswald, a publicação desses depoimentos é bastante oportuna, na medida em que os textos escolhidos retratam o envolvimento do escritor no cenário cultural brasileiro; oferecem um panorama de suas idéias em torno dos assuntos mais palpitantes da época; revelam o interesse da imprensa da época pela obra do autor de Miramar e por fim mostram a disposição dos entrevistadores de empreender revisões do movimento modernista.

     O leque dos temas tratados e o espaço de tempo dos textos recolhidos cobrem uma faixa muito ampla. A seleção principia em l924 até a ultima entrevista realizada poucos dias antes da morte do poeta. Um verdadeiro mural narrando a trajetória literária de Oswald, compraendendo o período de apogeu, - a chamada fase do café, quando na sua fazenda Santa Tereza do Alto "fazia um corcunda preto e ritual servir a Segall e Jenny o leite espumoso de uma jersey, com cognac velho, trazido pessoalmente de Bordeuax, em frente ao terraço senhorial da minha fazenda"- até o tempo de ostracismo, época em que os jornais mais importantes recusavam os seus artigos; ou melhor final da década de 40 e início dos anos 50, no momento em que, não tinha fãs e distribuia autógrafos somente "aos pregos e aos bancos", como o próprio Oswald lembrava.

     A variedade dos depoimentos acompanha a mudança de interesse do escritor e ao mesmo tempo dá uma idéia do panorama histórico, político e literário do país. Naqueles da década de 20, as questões giravam em torno do Modernismo, da Semana de 22, do intercâmbio com a Vanguarda européia sobretudo com a França. Neste aspecto é bom atentar para os canais dessa permuta de idéias, observando os artistas e correntes sobre os quais Oswald tecia considerações e com quem mantinha contato nas suas viagens ao exterior. De 30 a 40 prevalecia a discussão sobre política, as fofocas em volta da política nacional; a história de sua ligação com o Partido Comunista e o posterior afastamento, com lances de ressentimento em relação à opção feita pela cúpula do partido de romper com a burguesia progressista.

    Oswald reagiu virulentamente contra as duas linhas básicas do Partido em diferentes momentos: a aliança com Getúlio e a tendência obreirista calcada no desprezo pela inteligência e na luta contra a cultura. Estes pontos de discordância entre o PC e Oswald tornaram as relações conflituosas: o escritor via na aliança da burguesia progressista com o operariado (Aliança Nacional Libertadora) o caminho revolucionário para o Brasil, mas para Oswald a CNOP (Comissão Nacional de Organização Proletária) e Prestes foram incapazes de aproveitar a conjuntura entre os comícios do Rio (São Januário) e o de São Paulo (Pacaembu, em l945). Por outro lado, Oswald discordava do tratamento dado aos escritores e aos artistas pela direção do partido, que não "teve sensibilidade para aproveitar o potencial da contribuição de renomados intelectuais" ( Caio Prado Jr., Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade ) na luta pela criação de uma sociedade brasileira mais justa: "os comunistas não deixaram passar o sangue vitalizador da inteligência e da cultura pelas suas malhas partidárias"; não permitiram aos intelectuais oferecer ao partido as suas diferentes contribuições.

     No campo das matrizes reconhecidas do Modernismo, Machado de Assis e Euclides da Cunha foram responsabilizados por terem introduzidos na literatua moderna a "aventura íntima e a pesquisa da terra". Em três décadas de depoimento, Oswald confirmou o nome de Monteiro Lobato como o grande pré-modernista com sua prosa nova e limpa e insistiu no papel de "fundadores da literatura moderna nacional" exercido por Machado e Euclides, consolidando as duas linhas mestras de nossas letras - o campo e a cidade, "temas essenciais do Brasil". Constante também foi sua resistência à nova literatura nordestina que interrompeu, no seu entender, por um bom período, a especulação literária. Do ponto de vista internacional, rastreou as correntes estéticas européias de um ângulo muito pessoal, listando apenas os intelectuais mais próximos ou com os quais manteve contato: Valery Larbaud, Cocteau, Jules Romains, Satie. Não citou nenhum nome ligado ao Dada e ao Surrealismo nem à vanguarda italiana, que representasse a tendência mais radical de renovação estética. Destacou naquele momento quatro correntes dentro da modernidade parisiense: l. Jules Romains, Duhamel, Vildrac; 2. Proust, Giraudoux, Morand; 3. Cocteau, Radiguet; 4. Apollinaire, Cendrars, Max Jacob. Reconhecia nesses grupos o incentivo à onda de nacionalismo que eclodiu junto com o nosso Modernismo: uma pesquisa intensa de conhecimento entusiasmado do Brasil e de consolidação de uma língua brasileira, para por fim na "invertebralidade nacional, compenetrada do espírito dos nossos dias", argumentava Oswald. Essas avaliações literárias surpreendem. Sobre sua própria obra por exemplo Oswald destoa de toda a crítica, elegendo o Marco Zero como a grande obra da e de maturidade.

    Para desencanto daqueles que o consideravam apenas o "Clown" da burguesia paulista, vamos encontrá-lo defendendo a importância do trabalho sério:"Passamos do tempo em que a pura intuição fazia um artista. Hoje em dia, o estudo possui uma importância fundamental". Por sinal, a sua idéia da relação entre poesia e público está muito ligada à preocupação com o aprimoramento espiritual do homem. Para Oswald a poesia nunca será compreendida pelo grande público a não ser através da análise, pois, a compreensão é problema de sensibilidade e cultura.

     O espaço do jornal, por sua própria natureza, algumas vezes não permitia o aprofundamento maior das questões discutidas, uma vez que o entrevistado era convidado a se pronunciar de improviso sobre os mais variados assuntos. Oswald discutiu os temas do momento, tratando-os de maneira engraçada e irônica. Outras vezes as entrevistas respondidas por escrito ofereceram uma visão mais trabalhada e inédita para os seus leitores hoje. É o caso dos depoimentos apresentados por coincidência a dois escritores: Paulo Mendes Campos e Edgard Cavalheiro. A entrevista a Paulo Mendes Campos, comemorando os 40 anos de literatura de Oswald, é uma espécie de revisão das leituras que marcaram a sua formação literária de um modo geral. Aproveitou para abordar temas mais complexos, gerais e expressar seu ceticismo: em relação ao destino da civilização ocidental, "onde triunfam a filosofia do recorde e a moral da tolerância e da chantagem"; sobre o atrazo do Brasil - "crise de reflexo" - e finalmente reafirmar a responsabilidade e a missão revolucionária da elite intelectual. Uma das obsessões nesses depoimentos - a situação do escritor - provavelmente refletia não apenas o quadro geral, mas o seu caso particular de desamparo, sem condições de sobreviver com os rendimentos da profissão, obrigado a exercer muitas atividades diferentes: "O escritor no Brasil é um pobre diabo (...) as dificuldades são tremendas: ou ele tem de se vender, se isolar ou sorrir..." Nesse sentido, o título geral de suas Memórias é bastante sugestivo - Um homem sem profissão -, lembrando na ocasião: " no Brasil ser escritor é não ter profissão. Foi o que me aconteceu". Não media palavras para fazer críticas, daí o relacionamento nada harmonioso com os colegas, sobretudo os escritores considerados por Oswald menos interessantes. No meio da mediocridade e da picaretagem tinha esperança na"Vitamina-Universidade" e via com simpatia a atividade exercida pela Universidade, depositando esperança no trabalho dos jovens. Não foi a primeira vez que Oswald se referiu à Universidade de maneira carinhosa e positiva. Aliás sempre sonhou em poder desfrutar do convívio acadêmico. Defendeu várias teses na Usp sem obter sucesso. Em l945 - O sentido da nacionalidade no Caramuru e no Uraguai" e A Arcádia e a Inconfidência, ambas apresentadas à Cadeira de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia da USP; a outra defendida na cadeira de Filosofia da mesma Universidade - A crise da filosofia messiânica. Pouco antes de morrer, já bem adoentado, acalentava novamente seu velho sonho, desta vez fora de seu país. Fazia projetos e elaborava o Roteiro de Upsala, um vasto programa para um curso de estudos brasileiros, planejado para a Univerisidade de Upsala e para a Escola Superior de Estocolmo. Por intermédio de seu amigo e antigo companheiro da garçonniere da Líbero Badaró, Vicente Rao, Oswald foi convidado também para dar um curso em Genebra. Em conversa, sua filha Antonieta Marília relembrou o alento que estes convites proporcionaram ao velho escritor, doente e esquecido.

      Mas o entusiasmo pela função da elite intelectual se transforma de um texto para outro subitamente em ceticismo, descrença diante de manifestações de incompetência de um "bando de ignorantes". Pro vavelmente influiu nessas atitudes do escritor o ressentimento pessoal, resultado talvez do ostracismo a que foi submetido depois da década de 20: "escritores não me levam a sério, nem sequer me consideram também escritor".

     No decorrer desta antologia o leitor terá surpresas com as idéias defendidas, com os nomes citados e com a diversidade temática. Uma das novidades é o nome de Gustavo Corção duramente criticado por Oswald inúmeras vezes, e recuperado na galeria dos autores esquecidos. Embora Oswald discordasse ideologicamente do autor de As fronteiras da técnica, considerava seu romance a grande realização brasileira no gênero. Não é sem razão que na biblioteca de seu filho Nonê, cheia de livros presenteados por Oswald, encontramos Lição de Abismo de Gustavo Corção com uma dedicatória bastante expressiva: "Para Nonê essa lição de Vida" . Na literatura brasileira contemporânea apontava a "existência de três gênios no Brasil", três grandes promessas: Oliveira Bastos na crítica; Luci Teixeira na narrativa e Ferreira Gullar na poesia. O pós-modernismo, enquanto movimento sistemático de idéias e estética foi muito criticado: "foi a polêmica contra nós de 22". Nas análises que empreendia sobre os movimentos contemporâneos, procurava traçar correspondência direta com o seu tempo - o Modernismo. O iniciante movimento do Concretismo, na época, foi erroneamente visto como incerto e como uma variante do Modernismo. Na hora de apontar a personalidade literária mais fascinante também escolheu nas fileiras modernistas - Mário de Andrade - e no rol de nomes dissonantes em relação à vida cultural da época: João do Rio e Emilio de Meneses.

    Como solução para os descaminhos da vida cultural, defendia ardorosamente o movimento do qual foi um dos líderes, reservando especial atenção para as correntes Pau brasil e Antropofagia. Com a primeira declarava ter pretendido o renascimento do Brasil e a verdadeira poesia nacional, recuperando elementos desprezados da nossa lírica; no período do pau brasil, Oswald denunciava o intelectualismo falsificado, postiço, imperando a confusão de idéias importadas; com a Antropofagia pretendeu instaurar uma revolução de princípios, de roteiro, de identificação. Ambos projetos nacionalistas criados para recuperar o país da "fadiga intelectual" e alternativa para o "banho de estupidez" em que mergulhou a nossa "realidade mental". Num instante de irritação um desabafo: "A literatura brasileira não conseguiu projeção mundial porque não presta".

    Os amigos do escritor testemunham sobre a agitação da sua vida pessoal. No período de vacas gordas o tempo era de festa, de surpresas, o grande público todavia desconhece o outro lado da vida de Oswald, crivado de dificuldades econômicas - na fase de isolamento que marcou o final da sua vida. É bom lembrar que depois da crise de 29, foi obrigado a recorrer à fortuna deixada pelo pai, concentrada particularmente em imóveis na grande São Paulo, na década de 50, com a doença, a situação se agravou, obrigando-o a desfazer de preciosos objetos cuja posse representava uma ligação afetiva e cultural. Numa folha de papel anotada a mão por Oswald conhecemos a relação exata da sua coleção estrangeira de objetos de arte: 2 Léger, óleo e aquarela com dedicatória; 3 Chirico, óleo; 2 Picasso, guache e aquarela; 1 Chagall, desenho; 1 Miró, têmpera; 1 Delaunay, litografia com dedicatória; 1 Archipenko, óleo; 1 Laurens, desenho; 1 Severini, óleo; 1 Picabia, desenho. Muitos desses objetos foram deixados como garantia de dívidas, de títulos, levantados por Oswald, segundo nos informa o rascunho manuscrito de uma declaração que foi obrigado a fazer com objetivo de dispor do seu guache de Picasso (em azul e preto) para fins de avaliação por especialistas. Pretendia vender o quadro para o MAM do Rio, incluisve tomou várias iniciativas nesse sentido, repetidas vezes escrevia a Paulo e a Niomar Bittencourt, proprietários do Correio da Manhã e fundadores do museu carioca. Esses momentos de crise, Oswald os enfrentava com o humor de sempre, alternando com demonstrações de ressentimento e mágoa. Uma travessia difícil facilitada e encorajada pelo seu filho mais velho, Nonê, a quem Oswald agradeceu de público a sua dívida: "Foi graças a meu filho, Oswald de Andrade Filho, que consegui suportar tudo, foi-me possível sobreviver".

    O discurso dos entrevistadores revela a curiosidade pela figura humana tão polêmica do escritor Oswald de Andrade; o interesse em se aproximar do romancista com vistas a um balanço do movimento modernista, da literatura e da cultura brasileiras contemporâneas. Transparece nas perguntas dos jornalistas o desejo de evidenciar a discrepância e o inusitado das idéias do entrevistado, principalmente sobre esses assuntos.

    Esses bate-papos publicados pelos variados periódicos do país mantido de maneira amena e pacífica, com o correr dos anos se transformaram em ataques pessoais a personalidades da vida cultural ou se limitaram a revidar outros ataques. Muitos desses textos têm um aspecto de balanço e de retrospectiva, sobretudo as entrevistas no final da vida do escritor, resultado natural de momentos de desabafo e cansaço.

    A personalidade mutável e complexa desse artista se revela inteira nessas conversas informais. Permanece no final da leitura de todos esses textos uma impressão do espírito generoso e amável, que, sem rancor, prontamente revia suas posições anteriores acerca de personalidades importantes da nossa cultura, como foi em relação a Gustavo Corção, ao antigo companheiro de partido com quem Oswald rompera em l945 Jorge Amado - "mestre inconfundível da literatura brasileira, o sucessor de Castro Alves"; e a Cassiano Ricardo - "o maior poeta do Brasil" e que pertencia ao grupo verde amarelista, adversário modernista de Oswald. Os dois colegas em vários momentos foram duramente agredidos pela contundência verbal oswaldiana no calor de discussões, e em seguida carinhosamente elogiados.

Confirmam-se nesses debates "à queima roupa" além da personalidade irriquieta, a veia satírica e a crítica mordaz do autor de Serafim. Desvendam-se facetas desconhecidas desta personalidade e consolida a imagem do intelectual corajoso, que não gostava de posições "mornas", sempre pronto a manifestar sua opinião. Enfim reconstitui-se o percurso do escritor em diferentes fases, obtendo-se um desenho do desenvolvimento dos seus projetos de ficcionista, poeta e ensaista.