(à guisa de prefácio:) A imaginação do passado

A crítica literária brasileira contemporânea não consistiu naturalmente apenas naquela praticada na Universidade, a qual pressupunha especialização de campo, acesso programático às fontes formadoras, sossego de estudo. Com o caráter dispersivo e aleatório que lhe é próprio, a imprensa continuou a ser o foro animado e apaixonado de debates literários e intelectuais, tanto através do articulismo avulso de autodidatas e curiosos, quanto do "rodapé" crítico subscrito por alguma autoridade do ramo, quanto, ainda, pelo rastro provocador de movimentos de experimentação estética, que se afirmam com grande vitalidade e acirram os debates de teor formal. É o momento do fastígio de páginas e suplementos literários, os quais, nesses quarenta anos que vão dos meados dos Anos 30 a meados dos Anos 70, com todas as vicissitudes sociais e políticas do País - crises sucessivas, revoluções, golpes de estado, guerra internacional, dois ciclos ditatoriais discricionários e repressivos -, animam intensamente a atuação da intelectualidade cabocla. De certo não tardará muito a reedição fac-similar dos mais palpitantes e expressivos desses semanários, quinzenários e mensários, hoje em dia que a reprodução iconográfica chegou a uma perfeição surpreendente, podendo inclusive reduzir, sem prejuízo, as dimensões do original para melhor manuseio do leitor. Possivelmente os mesmos suplementos sabáticos e dominicais serão recolhidos em volumes de consulta freqüente, pois sem eles não será possível fazer seja a história da nossa literatura no período, seja a mesma crônica do gosto cultivado, já que tais documentos possuem imenso interesse visual que diz respeito diretamente à sintomatologia estética e social buscada pela análise semiológica. Oposto ao nobre gueto universitário, que do ponto de vista ideal deve participar da cela, do laboratório, do estúdio e da enfermaria das Letras, de forma alguma pode ser minimizada a importância definitiva que para a vida intelectual brasileira continua a representar a imprensa. Nesse foro aberto e livre os formandos em Letras da Universidade Anos 40 interviriam com certa constância; ao lado de alguns dos seus mestres serão eles aí os mediadores de novidades provenientes das respectivas especializações de cada um, novidades que começarão a ser absorvidas também pela comunidade não iniciada na alquimia acadêmica. Tais notícias atingiriam assim, além do público que acompanha de modo mais perfunctório o movimento cultural, os colaboradores mais alertas e inquietos, que na imprensa levam avante empiricamente reflexões e estudos sobre o temário da cultura nacional. Some-se a isso a já aludida provocação inovadora das vanguardas, que também reabre o espaço experimental na imprensa do tempo; pode-se adivinhar o estimulante alvoroço intelectual que propicia um comércio de idéias extremamente animado e complexo até mesmo pela mesma contigüidade física na página do suplemento. Tudo sinal certo de profícuas mudanças em curso, afetando diretamente a crítica literária a qual tem de se reaparelhar a fim de comparecer com agilidade e competência no enfrentamento de problemas até agora inéditos do seu ofício. Torna-se evidente, portanto, a falsidade da oposição maniqueísta que uma apologia pro domo promoveu ao contrastar emblematicamente o espaço degradado, frustro e árido do jornal com um idealizado espaço de laboratório universitário, habitat ideal da nova crítica. Oposição que não se mantém de pé e é inteiramente alheia à realidade factual, embora também seja verdade que a imprensa diária jamais poderia ser, como jamais pretendeu, nem poderia, a estufa propícia onde as catléias raras do mais complexo ensaísmo crítico iriam florescer. Não fiquem esquecidas, portanto, as mediações constantes entre as duas áreas, inclusive o vivacíssimo intercâmbio de estímulos que ainda hoje tem lugar entre uma e outra. Lembre-se ainda que um nível mínimo de exigência acadêmica, infiltrando-se aqui e ali no jornalismo literário, pôde recuperar para a área do trabalho erudito vocações que, talvez em outra circunstância, se disparassem sem esse acicate. Conforme demonstrou Silviano Santiago, isto de alguma forma teria ocorrido com um Brito Broca. A organicidade subterrânea do ensaísmo crítico desse escritor-jornalista "que se fez em pedaços", conforme a aguda expressão retalhada por ele mesmo, permitiu ao autor de Pontos de Referência ingressar com segurança no campo dos estudos literários sem de todo abdicar da experiência profissional jornalística; no entanto Brito Broca contribuiu como poucos para a fixação de vertentes literárias esquecidas ou abandonadas da nossa história intelectual. Em casos como este, que não constituem regra, ocorreu a conciliação do fator informativo do meio-de-comunicação convencional com o fator informativo de função universitária. Sem insistir em teorias, sem abordar problemas especificamente metodológicos, esse garimpeiro do jornal escrever atinge certa decantação epistemológica, que contribui de modo efetivo para o soerguimento comum do organismo cultural. Será neste ponto que a análise concreta do texto individual e a generalização organizativa da história literária podem se integrar e se completar - a forma da História integrando a História-das-Formas. Trata-se do momento de reintegração do texto no contexto: quando, ao se realizar o levantamento crítico do caso particular, perquirido na mesa de dissecação da anatomia crítica, essa análise sente dever-se superar a si mesma, inserindo-se no espaço abrangente da história das idéias, que é história da cultura e história intelectual de uma coletividade. Essa passagem para a abrangência consegue relacionar marginalidade e internacionalizarão do conhecimento. Abertura de horizonte, ela é fruto de um súbito iluminar de perspectivas graças ao concurso de novas informações de origem diversa que, de certo modo, falta - em minha opinião pelo menos - a grande parte de nossa crítica literária contemporânea - apesar dos grandes avanços que esta tem conquistado sobre si mesma desde as origens românticas. Superar um certo sentido de compartimentação sufocante, segundo indispensável confluência de saberes complementares (todos de preferência sob rigoroso controle, brida curta em vez de rédea solta), deveria ser o programa mais urgente dessa atividade levada avante dentro e fora da universidade. Este problema, que aflige todas as áreas de conhecimento limítrofes, lidando com questionamentos semelhantes, não pode abrir mão da amplitude de vistas e de juízos, pois trata diretamente com programas complexos de leitura inseparáveis da decifração hermenêutica e exegética. Ainda recentemente, o arqueólogo Victor Oliveira Jorge, em entrevista para o Jornal de Letras, Artes e Idéias de Lisboa, fazia, a respeito da sua especialidade, uma série de considerações muito próximas daquelas que me parece nos dizerem respeito na área específica da crítica literária. Tocam elas na indispensável confluência do conhecimento que despreza a compartimentação tradicional. Dizia ali Victor Oliveira Jorge:

E concluía mais adiante:

Voltando ao nosso campo, em seguida às considerações que ficaram atrás, talvez fosse o caso de dizer: A crítica literária brasileira só existirá de maneira não-episódica quando decorrer de um pensamento ensaístico englobante, essencialmente interpretativo, que nele, pensamento, se reintegre enquanto excurso exemplificador iluminante. Esse pensamento, por sua vez, tem de ser fruto de certa minuciosa reflexão estética, em que análise formal e interpretação histórica muito concretas se defrontem numa instância dialógica cheia de intensidade, e que assim anule provisoriamente os feixes de interseção de diacronia e sincronia. Uma abrangência que é desejo de História, visão culturalista sem preconceitos, onde o mesmo juizo valorativo se dissolve a fim de se incorporar, outra vez de modo provisório, ao código contemplado. Apenas desse modo se efetiva a compreensão da linguagem poética, abordada nos seus específicos valores culturais, existenciais e intelectuais; apenas debaixo do impacto da projeção sentimental identificadora é que se pode cristalizar - que pode ter lugar - o processo crítico de deslinde de determinado código inventiva, processo durante o qual a intuição divinatória da participação empática tem peso decisivo. O processo de fruição, surpreso e emocionado, que aí tem lugar, é repensamento da diacronia mesmo quando tenha lugar num eixo sincrônico; permanecerá contudo insuficiente sempre que não abranger por inteiro tempo e modo daquela forma nas suas projeções pregressas - que assim exigirão do contemplador (em sentido amplo) rigoroso aparato filológico. A obra posta em sossego na sua historicidade qualquer não deve portanto constituir pretexto para generalizações historicistas pseudo-englobantes; em qualquer situação exige referenciamento objetivo dos substratos culturais do tempo e modo que são os seus. Portanto a revisão das técnicas de explicação do texto através da leitura colada, da close reading, dando toda ênfase à consciência do fato literário, enquanto específico fenômeno comunicativo, propicia a continuidade da mesma reflexão crítica. Pois nada existe de mais desastroso e enganador do que o desreferenciamento que desconheça, na diacronia, o concreto das condições de tempo, lugar, mentalidade, alusões específicas. Daí a crítica literária se constituir idealmente o sítio em que contemporaneidade e sucessão dos tempos se integrem, e onde tenha lugar, com rigorosa verossimilhança, a imaginação do passado, segundo os indícios que amorosa arqueologia do saber vai permitir efetuar-se. É neste ponto que história e crítica literárias fecham uma circularidade de rio-oceano cuja cabeça morde a cauda em harmoniosa e contínua transcronia. Visão de conjunto que pode esboçar o perfil de certa tradição dentro do conjunto concreto das condições culturais de determinado tempo e determinado lugar. A abrangência da história intelectual enquanto história das formas é antes de mais nada história das idéias. O que nos permitirá complexa recuperação do passado cultural, cuja visão simplificado as mais das vezes é linear e ingênua por falta de referências. Assim sendo, a urgência da interdisciplinariedade no interior do discurso crítico de análise das escritas poéticas - sejam elas linguagens literárias, visuais, sonoras ou combinem essas especificidades em técnicas mistas e várias vozes e se tornem ato acontecendo como espetáculo, cênico ou não, - só pode alcançar a complexidade própria, que independe do movimento de importação dos centros emissores de doutrinas, com a contribuição de saberes paralelos que se interpenetrem com a leitura literária. Fruto do mesmo departamento da cultura, lidam com pressupostos de objetividade e paixão que integram o conhecimento - o rigor da paixão criadora. Integração do conhecimento que é, ao mesmo tempo, resenha das formas e história social dos meios de criação. A reflexão coletiva sobre o "esforço brasileiro", consciência viva do País, apenas então, enquanto consciência coletiva profunda, pode ser chamada sem demagogia de Memória Nacional. Pobre Mnemosine, mãe das Musas brasílicas, de cocar e tanga, pintada por Glauco Rodrigues nas areias de Copacabana (ou Ipanema?) e tão pouco considerada pelos seus vizinhos de praia. O enriquecimento da crítica literária tem que se dar assim, em nosso meio, pela interpenetração não apenas com a Sociologia (o que acontece pelo menos desde o projeto Desanctisiano de Sílvio Romero) mas principalmente com a História e a Antropologia, muito em especial com esta última, com a Psicanálise e com o urgente conhecimento da teoria e da prática das outras artes. Não se trata da proposição de um novo Ecletismo mas da instrumentalização de saberes complementadores que contribuem de modo decisivo para a operação hermenêutica. O juízo categórico ou mediado vem sendo progressivamente substituído pela busca intrínseca da poeticidade do texto, vale dizer, da complexidade compositiva que tem lugar na peça observada. Dentro da circunstância brasileira - uma literatura de extensão e densidade modestas, relativamente aos universos culturais divergentes que nos originaram - interessar-nos-ia, mais do que a avaliação hierárquica em nível comparatístico da obra analisada, a sua problematização poética, ou seja, dos seus níveis cultural, existencial e intelectual. Questões implícitas na linguagem dessas obras, pois traduzindo elas as singularidades e reelaborações nascidas no seio de uma cultura reflexa, desafiarão a nossa análise com problemas que lhe são específicos e peculiares e que caberá a nós mesmos deslindar. Não sei se estou levantando aqui apenas mais um praticável para a utopia' crítica. Prefiro, contudo, que seja assim, e ele possa ficar ao lado dos esplêndidos portões sem muros, soltos no espaço azul da transcronia, que o notável escultor português Charters de Almeida projetou para a celebração das estações num parque aberto no tempo, à espera de lazer e danças do futuro.

Alexandre Eulalio

Nota

1. O autor refere-se ao texto que escreveu sobre as esculturas de Charters de Almeida, publicado no catálogo que acompanhou a exposição apresentada no MASP em 1981, a que chamou de "Praticáveis para a utopia". (N.O.)