Graduação, 1o Semestre de
2011
Prof. Silvio Seno Chibeni - Departamento de Filosofia – Unicamp
Exame (14/7/2011)
· Este exame versa sobre as teorias
epistemológicas apresentadas por Russell em Os Problemas da Filosofia e
por Hume no Tratado da Natureza Humana e na Investigação sobre o
Entendimento Humano. Nas questões as referências aos pontos relevantes do
livro de Russell são feitas segundo numeração seqüencial dos parágrafos,
iniciando-se do número 1 em cada capítulo; e, no caso das obras de Hume,
segundo a convenção padrão internacional adotada no curso. Idênticos
critérios de referência deverão ser adotados nas respostas, não sendo aceitável
a indicação por número de página, ou referências sem localização precisa. Todas
as respostas deverão fazer referência explícita às passagens relevantes das
três obras mencionadas.
· Responda de forma objetiva.
Seja sucinto, mas não esquemático. Indique o número da questão e os sub-itens que está respondendo. Não responda em bloco.
· Para a aprovação final,
tais alunos deverão ter nota no exame que, em média com a média das provas,
resulte em 5,0 (cinco) ou mais.
Questões:
1.
No Tratado da Natureza Humana, 1.1.2.1,
lemos: “As impressões podem ser divididas em dois tipos: as de sensação e as de reflexão. As do primeiro tipo surgem na alma originalmente, de causas desconhecidas.” a) Explique
esta última afirmação (em itálicos), localize o ponto de T 1.3.5 em que o
assunto é retomado e cite o trecho relevante. b) A posição de Russell em Os Problemas da Filosofia é compatível
com essa afirmação de Hume? Justifique.
2.
Como Russell defende a existência
da matéria nos parágrafos 2.12 e 2.13 de Os Problemas da
Filosofia? Qual a relação dessa defesa com a classe de argumentos que Charles Peirce chamou de “abdutivos” (explicados em aula e que estão
em notas específicas disponibilizadas para os alunos)?
3.
Indique e
comente brevemente o(s) aspecto(s) do método filosófico adotado por Hume para a
constituição da “ciência da natureza humana” que ele procura evidenciar por
meio da comparação com a anatomia e a geografia, feita nestes trechos: Abstract,
2: “[O autor do Tratado] se propõe a fazer uma anatomia da natureza
humana de uma maneira sistemática, e promete não tirar nenhuma conclusão sem a
autorização da experiência.” Investigação, 1.13: “E se não pudermos ir mais além dessa
geografia mental, ou delineamento das diferentes partes e poderes da mente,
chegar até lá já terá sido uma satisfação...”.
4.
a) Quais
são, segundo Hume, os princípios de associação de idéias? b) Dê, para cada
princípio, um exemplo de idéias associadas pelo princípio (exemplos diferentes dos dados por Hume). c) Qual
a faculdade da mente responsável pela associação? (Atente, nesta resposta, a ambos
os livros de Hume!). d) Quais as causas apontadas por Hume pelas
quais a dita faculdade associa idéias?
5.
a) Ao
estudar, na Investigação sobre o
Entendimento Humano, a relação de causa e efeito, Hume assevera,
inicialmente, que nunca podemos conhecê-la por raciocínios a priori. Explique isso, fazendo referência à passagem relevante
desse livro, e dando dois exemplos. b) De onde provém, então, segundo Hume, o
conhecimento da relação causal? Cite a passagem relevante e exemplifique com
duas situações da vida comum ou da ciência em que concluímos que eventos estão
relacionados causalmente.
Respostas do professor:
1. a) Hume adota aqui uma
posição cética quanto à origem das impressões de sensação (sons, cores, formas,
cheiros, solidez, etc.). Em T 1.3.5.2 ele retoma o ponto, especificando três
das alternativas mais comuns entre filósofos para tentar explicar essa classe
de impressões: “Quanto às impressões que surgem dos sentidos, sua causa última
é, em minha opinião, perfeitamente inexplicável pela razão humana, e sempre
será impossível decidir com certeza se surgem imediatamente do objeto, ou se
são produzidas pelo poder ativo da mente, ou derivadas do Autor de nosso ser.”
Portanto Hume defende que não podemos “decidir com certeza” qual é a causa
última das sensações de sensação; mas acrescenta que essa incerteza não impede
que se avance na constituição de sua “ciência da natureza humana”, pois “essa
questão [da causa das impressões de sensação] não é importante para nosso
presente propósito” (ibid.). b) No cap. 2 do citado
livro, Russell apresenta um argumento para a existência da matéria, que, nos
termos em que colocou a questão, equivale a manter que os dados sensoriais –
que correspondem ao que Hume chama de impressões de sensação – têm sua origem
última em objetos físicos, entendidos como algo distinto e independente da
mente. Portanto Russell defende filosoficamente
a primeira das alternativas apontadas por Hume, o que estabelece uma
incompatibilidade entre as posições dos dois filósofos (nas obras de que
estamos tratando, diga-se de passagem, pois algum tempo depois Russell iria
adotar, por várias décadas, postura cética semelhante à de Hume).
2. O argumento de Russell a que
a resposta anterior faz referência é o de que a existência da matéria,
postulada como uma hipótese, explica de modo mais simples do que as alternativas (em especial a segunda, das
apontadas por Hume) o conjunto de nossos dados sensoriais, sendo por essa razão
preferível a elas, enquanto melhor candidata à verdade. Trata-se, portanto, de
um argumento do tipo que Peirce chamaria mais tarde de
“abdutivo”, e que na literatura contemporânea se
chama de “argumento da melhor explicação”: temos bases para crer que a melhor,
dentre várias explicações disponíveis, é a que melhor se candidata a
representar a verdade sobre as causas dos fenômenos por ela explicados.
3. A anatomia e a geografia se
caracterizam, epistemologicamente, por serem disciplinas científicas
fenomenológicas, ou seja, que se limitam a descrever sistematicamente fenômenos
e estabelecer as regularidades superficiais a que estão sujeitos. A comparação
com a geografia e anatomia destina-se, pois, a destacar que Hume concebe sua
“ciência da natureza humana” como também tendo, prioritariamente, esse escopo
mais limitado, enquanto ciência. Um exemplo disso é o que se discute na resposta
à questão 4, abaixo. [Deve-se notar porém que Hume indica em E 1.15 que,
secundariamente, podemos legitimamente, com a devida cautela e competência, tentar
ir além do nível fenomenológico, buscando determinar, “pelo menos em algum
grau”, “os princípios secretos pelos quais a mente humana funciona”.]
4. a) Os três princípios de associação de
idéias são semelhança, contigüidade em tempo ou lugar e causação. b) Exemplos: Semelhança: a idéia de tinta vermelha
sobre a mão de alguém costumeiramente evoca a idéia de sangue; contigüidade: a idéia da Torre Eiffel em
geral associa-se à do Rio Sena; causa ou
efeito: a idéia de impacto sugere a idéia de barulho. c) No Tratado (1.1.4) Hume invariavelmente indica a
imaginação como a faculdade que associa idéias; na Investigação (E
3) acrescenta a memória. d) Hume explicitamente se recusa a investigar
essas causas; em T 1.1.4.6 diz que elas são “em grande parte
desconhecidas, e têm de ser atribuídas às qualidades originais da
natureza humana, que não pretendo explicar.” [Temos aqui,
incidentalmente, um caso em que vemos a aplicação da abordagem epistemológica
comentada na resposta à questão precedente: Nessa passagem Hume pende ao
ceticismo, e não vê inconvenientes nisso; mas em T 1.2.5.20 se dá a liberdade
de imaginar uma hipótese explicativa para a associação de idéias, em termos de
mecanismos neurológicos inobserváveis.]
5. a) Ambos os pontos são
apresentados na primeira parte da seção 4. Quanto ao primeiro, significa manter
que “nenhum objeto jamais descobre, pelas qualidades que aparecem aos sentidos,
quer as causas que o produziram, quer os efeitos que dele seguirão; nem pode
nossa razão, sem a ajuda da experiência, jamais extrair nenhuma inferência
sobre existências reais e questões de fato” (E 4.6). Hume argumenta a favor
dessa tese considerando vários exemplos, como o de Adão, logo ao ser criado,
que seria incapaz de concluir, pela fluidez e transparência da água, que ela
tem o poder causal de sufocar (E 4.6), e o da pessoa sem experiência e ignorante
em filosofia natural, que não poderia inferir que duas peças de mármore polido
aderem uma à outra, quando puxadas na direção perpendicular ao seu plano de
contato (E 4.7). b) Quanto à segunda tese, ou seja, que o conhecimento da
relação causal provém da experiência, o ponto importante é a qualificação dessa
experiência como sendo a da conjunção
constante de objetos: “o conhecimento dessa relação ...
surge inteiramente da experiência, quando descobrimos que [dois] objetos
quaisquer estão constantemente conjugados um ao outro” (E
4.6). Entre os exemplos dados por Hume, está o do poder causal do leite de
nutrir seres humanos (E 4.7), e o da bola de bilhar, de causar o movimento de
uma outra por impacto (E 4.8), que só podem ser descobertos pela repetição da
ocorrência de casos em que uma coisa (nutrição, movimento) se segue à outra
(ingestão de leite, impacto).