HG 304 Teoria do Conhecimento

Graduação, 1o Semestre de 2011

Prof. Silvio Seno Chibeni

Departamento de Filosofia - Unicamp

Prova 2 (16/6/2011)

·       Esta prova versa sobre a teoria epistemológica apresentada por Hume no Tratado da Natureza Humana e na Investigação sobre o Entendimento Humano. Nas questões da prova as referências aos pontos relevantes são feitas segundo a convenção padrão internacional adotada no curso. Idêntico critério de referência deverá ser adotado nas respostas, não sendo aceitável a indicação por número de página, ou referências sem localização precisa. Todas as respostas deverão fazer referência explícita às passagens relevantes das obras de Hume.

·       Responda de forma objetiva. Seja sucinto, mas não esquemático. Indique o número da questão e os sub-itens que está respondendo. Não responda em bloco.

·       O exame final será no dia 14/7, quinta-feira, às 14 h., sobre toda a matéria vista no curso. Deverá ser feito pelos alunos que, não estando reprovados por falta, não obtiverem média igual ou superior a 5,0 (cinco) nas provas. Para a aprovação final, tais alunos deverão ter nota no exame que, em média com a média das provas, resulte em 5,0 (cinco) ou mais.

 

Questões:

1.     Em ambos os livros mencionados, Hume propõe o que ele chama (no Tratado) de “primeiro princípio da ciência da natureza humana”. Na Investigação, a formulação desse princípio é a seguinte: “todas as nossas idéias, ou percepções mais tênues, são cópias de nossas impressões, ou percepções mais vívidas” (E 2.5) Nessa formulação simplificada, pouco rigorosa, o princípio está aberto a uma objeção imediata: há idéias – como a de uma montanha de ouro – que não parecem ter sido copiadas de nenhuma impressão. a) Explique como Hume contorna essa objeção em E 2.5 e 2.6. b) Reproduza agora a formulação do princípio tal qual exposto no Tratado, e mostre como essa formulação mais rigorosa evita automaticamente a objeção.

2.     Na seção 4 da Investigação, Hume estabelece a distinção entre relações de idéias e questões de fato. a) Explique-a, indicando claramente os dois critérios usados para fazer a distinção. b) Dê exemplos de proposições sobre relações de idéias e sobre questões de fato (dois de cada).

Introdução às questões 3, 4 e 5: Imagine que você está numa floresta e encontra uma árvore com frutos que nunca viu antes. Assuma a posição de Hume na seção 4 da Investigação e responda as seguintes questões sobre a relação de causa e efeito.

3.     Verificando a cor vermelha, o gosto doce, a forma arredondada e a consistência pastosa dos frutos (e demais qualidades aparentes) você poderá, a partir disso, saber se são venenosos? Justifique sua resposta apresentado um dos casos discutidos por Hume e mostrando a semelhança entre ambos, quanto aos aspectos epistemológicos relevantes, referentes ao conhecimento de causas e efeitos.

4.     Do meio da folhagem surge então um índio. Perguntando-lhe se os frutos são venenosos, ele responde que não, mas que sua ingestão produz formigamento nos pés. Qual a única forma pela qual você poderia verificar, segundo Hume, se o índio está certo nessas duas afirmações?

5.     Após saborear os frutos diariamente durante um mês e, em cada ocasião, sentir os pés formigarem algum tempo depois, você se lembra que estuda filosofia e indaga: Como posso saber se ao comer estes frutos mais uma vez sentirei de novo o formigamento? Mais especificamente, responda: a) É possível demonstrar essa questão de fato a partir da experiência passada? Justifique. b) Há algum “raciocínio moral” ou “provável” que nos assegure que ela é verdadeira? Justifique.

 

Respostas do professor:

1.     a) No caso de idéias como a de montanha de ouro – que é uma idéia complexa –, Hume propõe que façamos uma análise da idéia em componentes mais simples. Com isso, sempre se alcançariam idéias que reconhecemos haver derivado de impressões semelhantes. (No caso desse exemplo, basta separar, na idéia de montanha de ouro, a idéia de montanha da idéia de ouro, ambas derivando claramente de impressões ordinárias.) b) “Toda idéia simples, em sua primeira aparição na mente, deriva de uma impressão simples semelhante” (T 1.1.1.7). Ao restringir o princípio às idéias simples, a formulação do Tratado automaticamente evita contra-exemplos como o da montanha de ouro, de Nova Jerusalém, etc., que são idéias complexas; o princípio não vale para elas, mas vale para cada uma das idéias simples que as compõem.

2.     a) Todos os objetos da razão ou investigação humana podem ser divididos em relações de idéias e questões de fato. Segundo um critério epistemológico, proposições sobre relações de idéias são aquelas cuja verdade pode ser determinada por intuição ou demonstração, enquanto que as que expressam questões de fato são conhecidas apenas por observação (experiência). Segundo um critério modal, as primeiras são necessárias e as segundas contingentes. b) Exemplos: a proposição de que o todo é maior do que as partes e o teorema de Pitágoras expressam relações de idéias; que Napoleão foi derrotado na batalha de Waterloo e que a Terra tem apenas um satélite natural são questões de fato.

3.     Não. Dizer que os frutos são venenosos significa dizer que eles têm o poder causal de envenenar, que sua ingestão tem como efeito o envenenamento. Mas a observação das qualidades sensíveis dos frutos (e dos corpos em geral) não revela nenhum poder causal, não indica nenhum efeito ou causa. O primeiro dos vários casos discutidos por Hume para exemplificar esse ponto é o da água (E 4.6). Uma pessoa sem nenhuma experiência da água (como teria sido Adão, logo ao chegar a este mundo), não poderia inferir, de sua transparência, fluidez, etc., que ela tem o poder causal de sufocar um ser humano. Tal conhecimento só resultará mais tarde, se a pessoa vier a observar vários casos de sufocação por mergulho da cabeça de homens na água.

4.     Ambas as afirmações do índio – que os frutos não envenenam e que produzem  formigamento dos pés – são proposições sobre causas e efeitos. Conforme dito na questão anterior, esse tipo de afirmação nunca pode apoiar-se na inspeção das qualidades sensíveis dos corpos individuais. Só passamos a considerar um objeto ou evento como a causa de outro quando verificamos que objetos ou eventos desse tipo regularmente fazem-se acompanhar de corpos ou eventos do outro tipo: “o conhecimento dessa relação [de causa e efeito] não é, em nenhum caso, alcançado por meio de raciocínios a priori, mas provém inteiramente da experiência, ao descobrirmos que certos objetos particulares acham-se constantemente conjugados uns aos outros” (E 4.6.). Assim, para avaliar as afirmações do índio temos que fazer várias experiências de ingestão dos frutos e verificar se em todas elas à ingestão se segue um estado normal de saúde, porém com o formigamento dos pés.

5.     a) A extensão da regularidade observada para casos novos não é intuitiva, nem pode resultar de nenhuma demonstração, pois não há nenhuma contradição na suposição de que a regularidade vá cessar, de que o curso da Natureza vá se alterar nesse novo caso. Se essa alteração é concebível, é possível, e portanto a regularidade da natureza não é necessária; portanto seu conhecimento não é a priori (E 4.18). b) A extrapolação da experiência passada também não pode apoiar-se em “raciocínios” (ou inferências) “morais” ou “prováveis”, pois tais inferências sobre questões de fato assentam na relação de causa e efeito, que a seu turno assenta na experiência; mas as inferências experimentais assumem exatamente o ponto em questão, ou seja, que a Natureza é regular. Nas palavras do próprio Hume, em E 4.19: “Mas, se nossa explicação dessa espécie de raciocínio for admitida como sólida e satisfatória, estará claro que não há nenhum argumento desse tipo [no presente caso]. Dissemos que todos os argumentos relativos a existência fundam-se na relação de causa e efeito; que nosso conhecimento dessa relação deriva-se inteiramente da experiência; e que todas as nossas conclusões experimentais procedem da suposição de que o futuro estará em conformidade com o passado. Portanto, esforçar-se para provar esta última suposição por meio de argumentos prováveis, ou argumentos que dizem respeito a existência, é evidentemente andar em círculo e tomar como dado exatamente o ponto que está em questão.” (Ver também E 4.21.)