Tópicos introdutórios sobre filosofia da ciência

Prof. Dr. Silvio Seno Chibeni

Departamento de Filosofia, Unicamp

www.unicamp.br/~chibeni

 

Tópico 3. Limites do conhecimento científico

 

3.1. Limites contingentes do conhecimento científico

3.2. Limites intrínsecos do conhecimento científico

3.3. Sites e livros recomendados

 

3.1. Limites contingentes do conhecimento científico

Na percepção popular, a imagem da ciência é tão exaltada que certamente parecerá estranho falar-se em limites do conhecimento científico. Sendo tão poderosa, a ciência desconheceria limites. No entanto, há diversos sentidos em que se pode dizer que o conhecimento científico é limitado. Indicar e comentar brevemente esses sentidos é o objetivo desta aula.

Num sentido fácil de entender, o conhecimento científico exibe limites simplesmente pelo fato de que nem tudo no mundo foi investigado pela ciência. Parece certo, ao contrário, quando se considera a riqueza imensa de fenômenos no universo, desde o micro até o macrocosmo, que a porção já investigada pela ciência, em seus diversos ramos, é diminuta. Mesmo quanto aos tópicos em que já há algum progresso feito – o estudo da luz, por exemplo – é evidente que muita coisa ainda é desconhecida, muitos processos não são previstos e muito menos explicados por nossas melhores teorias científicas.

Nesse primeiro sentido, os limites do conhecimento científico são contingentes, isto é, dependem de circunstâncias diversas que, se fossem outras, os limites seriam outros. Entre essas circunstâncias podem-se enumerar o interesse efetivo que os cientistas tiveram em investigar tais e tais fenômenos, mas não outros; o talento que eles tinham; os recursos financeiros e tecnológicos a seu dispor; a sorte; as pressões externas à ciência (por exemplo, pressões políticas, religiosas, econômicas, etc.), e muitos outros fatores que fizeram com que o conhecimento científico tenha, atualmente, os contornos que tem. Em cada momento histórico, a ciência está limitada por esses contornos, que vão se modificando gradualmente à medida que ela progride.

 

3.2. Limites intrínsecos do conhecimento científico

Há, porém, outra classe de limites que não são contingentes, e sim intrínsecos ao próprio conhecimento científico. São limites em princípio incontornáveis. Um dos mais importantes desses limites já foi mencionado de passagem no início da seção 2.2: as teorias científicas não podem, por princípio, ser provadas a partir de fenômenos, da mesma forma em que, na matemática, podem-se provar teoremas a partir de conjuntos de proposições básicas, os chamados axiomas.

A conclusão é que o conhecimento científico encapsulado em teorias nunca é absolutamente seguro, estabelecido de uma vez por todas. Ele está permanentemente exposto a possível evidência experimental contrária, que obrigue os cientistas a rejeitarem ou, ao menos, ajustarem suas teorias. Isso desfaz a idéia de infalibilidade usualmente associada à ciência. Mas tal constatação não deve levar ao erro oposto, de desqualificar o conhecimento científico, igualando-o a formas menos sistemáticas e cuidadosas de obtenção de conhecimento.

Esse equívoco pode ter consequencias tão nefastas como o da crença na infalibilidade da ciência, conduzindo, por exemplo, a uma posição que ganha espaço hoje em dia em certos círculos intelectuais, e que os filósofos chamam de relativismo. Segundo essa perspectiva, a crença em teorias científicas estaria no mesmo nível que qualquer outra crença. Exagerando um pouco, o argumento seria: como não são absolutamente seguras, as teorias científicas não são nada seguras; vão e vêm ao sabor de circunstâncias fortuitas e variadas.

Essa posição só parece plausível quando se ignoram alguns fatos importantes. Um deles, ainda não comentado explicitamente, mas que está subentendido no que já vimos, é que a ciência, qualquer que seja, tem como fundamento fenômenos, ou seja, observações experimentais. Ora, apesar do que dizem alguns relativistas radicais, essa base empírica é, num sentido preciso que não será detalhado aqui, sólida e estável. Por mais que mude a compreensão científica de um fato, o fato continuará sendo fato. Tomemos um exemplo simples: a concepção do que é um planeta, e do que explica seu movimento nos céus, mudou muito com a chamada “revolução científica” dos séculos XVI e XVII; mas as trajetórias dos planetas – que são propriamente fenômenos – não mudaram. Tampouco mudaram suas cores e brilhos, que também são fenômenos. O que mudou foram as teorias astronômicas e físicas que se propunham a predizer e explicar tais fenômenos.

Outro ponto ignorado pelo relativismo é que, embora as teorias científicas não desfrutem do mesmo tipo de solidez epistemológica que os fenômenos, elas se beneficiam indiretamente dessa solidez, na medida em que, para serem genuinamente científicas, têm de exibir relações específicas e bem definidas com os fenômenos que formam a sua base empírica. Vimos, na aula precedente, que a mais importante dessas relações é uma relação lógica entre a teoria e os fenômenos, a extração de implicações empíricas da teoria. Tal relação impõe severas restrições às teorias admissíveis na ciência: teorias que tenham implicações empíricas falsas não podem ser aceitas.

Agora, mesmo as teorias que passam nesse critério básico não são todas igualmente boas. A ciência desenvolveu, ao longo de sua história, uma série de critérios complementares que auxiliam a escolha teórica, quando mais do que uma teoria alternativa está disponível: são consideradas melhores as teorias mais abrangentes (i.e. que cubram um maior e mais diversificado número de fenômenos), mais precisas, mais coerentes (i.e. cujos princípios teóricos suportem-se mutuamente), mais simples, e, sobretudo, que sejam capazes de levar a predições de fenômenos de tipos novos (i.e., que favoreçam o avanço do próprio conhecimento experimental, ao invés de virem sempre a reboque dele).

Portanto, a ciência – especialmente seus ramos mais maduros, como a física – possui um arsenal de critérios e métodos de avaliação de teorias que, embora não estabeleça verdades definitivas e completas no campo teórico, tem efetivamente permitido uma filtragem severa das teorias propostas, de forma que a ciência não é, como pensam alguns de seus críticos, uma terra de ninguém, onde qualquer coisa valha. Isso significa que, embora limitado, nesse sentido epistemológico, não contingente, a ciência oferece garantias bastante razoáveis, que permitem que, em cada momento da história da ciência, o conhecimento científico se apresente como o melhor de que dispomos para nos guiar tanto na predição como na explicação dos fenômenos naturais.

Podemos agora ter uma visão melhor de um ponto já mencionado, o critério de demarcação entre ciência e não-ciência, ou pseudo-ciência. O que caracteriza o conhecimento científico não é sua infalibilidade, mas o cuidado permanente que há (ou deve haver), na ciência, em explorar ao máximo as implicações experimentais das teorias, em busca quer de confirmação, quer de refutação, e a tomada de providências resolutas neste último caso, rejeitando-se ou modificando-se a teoria, de forma a que se compatibilize com todos os fenômenos conhecidos.

 

3.3. Sites e livros recomendados

        Notas de aula “Algumas observações sobre o ‘método científico’”, Prof. Silvio S. Chibeni, http://www.unicamp.br/~chibeni/textosdidaticos/textosdidaticos.htm

        Hempel, C. G. Filosofia das Ciências Naturais. Trad. P. S. Rocha. Rio, Zahar, 1974. (The Philosophy of Natural Science. Englewood Cliffs, Prentice-Hall, 1966.)

        Notas de aula sobre os capítulos 3 e 4 (sobre teste de hipóteses) de Philosophy of Natural Science, de Carl Hempel. Prof. Silvio S. Chibeni. http://www.unicamp.br/~chibeni/textosdidaticos/hempel-3e4-notas.htm