Natureza, Cultura e Civilização;
prolegômenos para um entendimento de Rousseau.


Bernardo Curvelano Freire
Universidade Federal de São Carlos
Departamento de Ciências Sociais
Centro de Educação e Ciências Humanas
 

Dos problemas pensados na questão da humanidade e suas conseqüências, isto é, o que invoca a condição de ser humano, a oposição entre natureza e cultura talvez seja uma daquelas que venha a trazer maiores dificuldades ao pensamento científico-filosófico até então. Tanto que as devidas fronteiras entre estes estados de existência ainda não delineiam claramente nos debates seus limites. Isto quer dizer que o que é demasiado humano pode ainda ser demasiado biológico ou demasiado cultural sem termos exatamente nos rendido a uma elucidação mais apurada a respeito. Obviamente o conceito de civilização, nitidamente um agravante, não é colocado aqui com a pretensão de desenvolvê-lo à risca, mas sim de objetivar algum tratamento no sistema de oposições em Rousseau, tal qual Lévi-Strauss apontara em sua conferência "Jean-Jacques Rousseau: fundador das ciências do homem" e entender onde tal sistema declinado pode fazer grande sentido no pouco da obra do autor aqui refratada.

Um parêntese, no entanto, deve ser colocado. Este exercício de declinação na verdade busca realizar uma nova possibilidade de organizar o corpo de uma teoria qualquer. Nesta perspectiva, a declinação que almejo realizar consta em revelar alguns aspectos na obra de Rousseau que indiquem homogenia em sua filosofia embora não esteja claramente indicada por sua própria pena. Estaria eu, portanto, realizando uma espécie de arqueologia onde elaboro uma possibilidade de interpretação, entre as várias possíveis, do trabalho do filósofo genebrino.

Rousseau não era um essencialista. Sua questão da verdade seria ainda mais frustrante (1) do que fora posto por seus antecessores, pois sua positividade não se refletia nas margens do etnocentrismo. O que afirmava começava a inaugurar reflexões acerca da humanidade levando em conta a ausência de uma razão autêntica puramente auto-reflexiva. Lévi-Strauss aponta nele a superação do cogito cartesiano nas humanidades, já que o problema se encontra em nós, mas sua elucidação está ausente de nossas opiniões intrínsecas a nossa versão do ser. A condição humana é entendida através do comportamento humano enquanto tal em sua variedade, e esta variedade deve ser vista e posta à prova. Obviamente conclamar esta condição humana evoca muito mais do que simplesmente dizer que falamos do que é obviamente humano, já que esta dissemelhança com o que o cerca pode não ser tão fácil de discernir assim.

A situação do ser humano em relação com os outros animais normalmente aponta no comportamento verbal em geral a consciência de ser diferente. Ser diferente... Nada mais que um aspecto morfológico do que existencial em si, pois se assim fosse, em nosso entendimento assim guiado, o leão só teria existido em sua primeira geração em sua gênese. Os demais seriam diferentes. Quanto aos humanos, só Adão, seja lá que tenha sido o rapaz. A questão é em que condição aquilo que podemos entender como ser humano( bípede, racional, sem pelos, polegar opositor, com linguagem articulada) se submete em relação ao real. Quais são os termos que relacionam o homem/mulher e a natureza?

É claro que nem de perto pretendo entender tais termos em tão conciso exercício e minha grosseria ao tratar da questão já o indica. Nem tampouco Rousseau pôs a termo este problema insistente. Na verdade a sua posição fora a de entender a situação do homem perante si. Se trata de uma questão de reorientar as formas de procurar entender as condições da humanidade.

O contexto histórico, como bem se sabe, era norteado, como ainda o é, pelo imaginário judaico/cristão, onde o ordenamento da verdade recaía para a idéia de Deus; onipotência e onipresença; a única coisa certa, presente em tudo. O modelo teológico de proposição acaba por relegar a responsabilidade à uma ordem divina e afastaria, como o fez, as possibilidades do homem/mulher de si mesmo. Não digo que Rousseau tenha abandonado a Deus em sua posição, mas no caminho do método maquiavélico de compreensão da realidade social, que procura enxergar as coisas em sua realidade presente, e não sua idealização, Rousseau propôs entender o ser humano em sua própria realização de si, em sua concretude. Algumas conseqüências não podem deixar de ser notadas neste movimento.

A radicalidade de sua proposta não deixa de aviltar algumas facetas da concretização da religião. Quando afirma que "Não se deve concluir (...) que a política e religião têm, entre nós, um objeto comum, mas sim que, na origem das nações, uma serve de instrumento à outra" (1999:113), o filósofo nivela a prática política e a prática religiosa a um nível próximo no campo da prática, já que uma serve à outra, Rousseau supõe compatibilidade em alguma área. E qual seria se não no discurso da moral, nos critérios de identidade e da real medida de seu significado da unidade cristã e do corpo social?

O avanço realizado pelo próprio Rousseau, e aí está a admiração de Lévi-Strauss, está em elaborar não só uma separação entre o cultural e o natural (ou social do divino, segundo uma lógica mais apropriada que confere natureza à Deus) mas em organizar uma nova oposição de identidade e alteridade dentro do próprio gênero humano. Os outros somos nós, portanto, e a selvageria está em nossos olhos, enquanto a nossa coisa (destilado de Durkheim) estaria com eles. Afirmações a respeito do ser humano compreendem a generalidade real; seria preciso entender da forma que a etnografia se propõe constantemente.

Mas a noção de civilização, que propus como mediadora, não se vislumbra, a meu ver, nesta direção. Este desvio se propõe a expor a responsabilidade do ser humano que, excedendo o teísmo subjacente, em muito lembra a condenação pela liberdade de Sartre. O ser humano é responsável por si, e isto evoca a compreensão de sua identidade, o que se retoma com diferentes perspectivas em o "Contrato Social".

A palestra do Prof. Monzani, proferida na ocasião do Curso de Extensão cuja avaliação estas linhas se prestam a apresentar contas, indicam exatamente o ponto sobre o qual almejo maiores entendimentos.

Seguindo a orientação do citado professor e realizando uma leitura do Livro Nono das Confissões, Rousseau aponta a variedade do ser humano em si mesmo. Que o forte é fraco quando cede à tentação e é forte quando, fraquejando, resiste à intempérie. Contudo, se falarmos do mesmo ser humano, podendo ser o próprio Jean-Jacques, estaríamos repetindo o logos heraclítico (2), plagiando Damião Berge, que afirma que o mesmo homem não pode entrar no mesmo rio duas vezes, pois o rio não será o de outrora e tampouco o homem. Neste propósito Rousseau coloca:
 

"Sondando-me a mim mesmo, e procurando nos outros a quem eram devidas estas diferentes maneiras de ser, achei que dependiam em grande parte de impressão anterior dos objetos exteriores, e que, modificados constantemente pelos nossos sentidos e pelos nossos órgãos, trazíamos, sem em tal reparar, o efeito dessas modificações nas nossas idéias, nos nossos sentimentos, as nossas próprias ações.(...) De quantos desvios salvaríamos a razão, quantos vícios impediríamos de nascer se soubéssemos forçar a economia animal a favorecer a ordem moral que ela com tanta freqüência perturba!" (1985:130)


Do que se trata tal preocupação de Rousseau? Não sermos o mesmo, mas sim fluídos em nossa própria condição, estarmos a mercê do devir. Seria esta uma condição que avilta o ser humano? Claro que sim, diria o genebrino paranóico. A elaboração de uma conduta moral em nada tem a ver com as fruições da vontade que por vezes copula e por outras se trona casta. E se torna presente em todo lugar a preocupação que é chamada de Moral Sensitiva e que, ao meu ver, culminaria em uma Civilização Objetiva, uma espécie de pré-projeto do que viria a ser a filosofia política positivista, tendo suas versões mais influentes em Marx e Comte que propunham a visão objetiva, em outras palavras, a filosófico-científica, como desveladora de um mundo cheio de falsas afirmações. Esta preocupação coesa pode ser demonstrada em trabalhos de preocupações muito diferentes e que demonstram um fio de ordenação muito visível a partir do momento que se tem em vista sua proposta.

Começarei com o "Ensaio sobre a Origem das Línguas" por uma razão de ordem epistemológica. Já em Saussure, passando por Lévi-Strauss e trilhando alguns dos anais da sociologia do conhecimento, a linguagem absorve em seu corpo o fator de coesão objetiva de uma sociedade. Isto quer dizer que os padrões de sociabilidade se encontram na formulação e prática do uso da linguagem. Rousseau já aponta este caminho ao elaborar uma série de etapas bastante impressionantes no que diz respeito à elaboração de diferentes linguagens em diferentes sociedades. Aqui a língua se aproxima de sua acepção antropológica a qual a identificação do agente se possibilita pela sua língua. A intuição característica da língua possibilita o entendimento do homem enquanto específico de uma sociedade. Isto porque, em Rousseau, a aparição da língua se aplica em um evento conjetural da necessidade de exteriorizar a um outro da mesma espécie, os pensamentos e a identidade é elaborada pelo estreito contato..

Neste sentido estaríamos em um enfoque mais próximo de um utilitarismo da linguagem. A linguagem teria sido criada por um fim de utilidade, portanto de uma necessidade. Porém, Rousseau aponta as paixões como causa do surgimento da ação comunicativa. Segundo o próprio autor, "(...) as necessidades ditam os primeiros gestos e (...) as paixões arrancam as primeiras vozes" (1999:265). Trocando em miúdos, as línguas caracterizadas por sua ancestralidade e que se constituem como poética não são dotadas de exatidão. Poderíamos pensar que os ideogramas tão assim característicos carregam em seus traços a idéia originalmente exprimida assim conferindo ao que é dito hoje visões sobre dragões, montanhas e flores compondo um processo de metaforização da linguagem. E se bem estendo este processo de metaforização da linguagem, mais se trata de declinações (3) sucessivas na utilização de vocábulos no processo de significação do que aplicação de novos vocábulos somente possível em línguas articuladas, ou seja, com maior atividade de consoantes do que vogais abertas.

A diferenciação mais fundamental aqui em pauta seria a da exatidão lógica das classificações. Se a escrita através de ideogramas sempre declina de uma significação original, o alfabeto atua diretamente nos fonemas, o que permite maiores possibilidades e menor perenidade. As possibilidades estão na exatidão da construção dos conceitos de acordo com as necessidades técnicas e que contam com a distorção de significados originais que seriam preservados pela presença dos ideogramas. Esta arbitrariedade da articulação aponta em Rousseau um processo de logicização da língua que permitiria maior exatidão do dizer as coisas. As palavras deixariam de emanar as paixões. Mas percebamos o que diz Rousseau sobre as paixões. Não seriam estas as responsáveis pela mudança de estações de acordo com os humores do homem? Então uma língua clara que expresse a que se porta seria em si uma etapa fundamental para a consolidação de uma moral que se reporte a si mesmo sem maiores possibilidades para declinação.

Não ignoro aqui, porém, a importância tão elevada que Rousseau aplica às especificidades culturais, mas sua reflexão moral é mais essencialista (4) do que suas preocupações para com as sutilezas de caráter material, e é aí que seu projeto de moral sensitiva se encontra com seu respeito pelo saber local. Ao elaborar suas principais preocupações no campo político, Rousseau acaba por afirmar-se na seguinte direção:
 

"Se por exemplo, o solo é ingrato e estéril ou a região muito acanhada por habitantes, voltai-vos para a indústria e as artes, cuja produção trocareis por mercadorias que vos faltam. No caso contrário - ocupais planícies ricas e colinas férteis? Numa boa terra faltam homens? - dedicai todo o vosso cuidado à agricultura, que multiplica os homens, e expulsai as artes, que só contribuirão para acabar de despovoar a região reunindo em alguns pontos do território aos poucos habitantes" (1999:128)


Cortando para um paralelo com sua Carta a d'Alembert, Rousseau examina este processo de degradação incorrendo em um fatalismo adivinhatório fenomenal. Apesar de apontar como quimeras suas previsões sobre as mazelas levadas pelos espetáculos a regiões de produção agrícola, Rousseau elabora um xeque-mate em cinco lances, traçados como prejuízos decorrentes da instalação de uma companhia de teatro em uma aldeia campesina que obedeça seus critérios de alta qualidade de vida tendo como fio condutor um anti-urbanismo radical.

O que temos em mãos portanto? Uma sociedade inflada de pessoas no meio urbano e um contingente populacional mais adequado em meios urbanos. Se a Moral Sensitiva, projeto não concluído, aponta uma vida reta e sem superficialidades, tal recurso de aversão ao meio urbano se justifica. O que concretiza a vida de Paris, por exemplo? Espetáculos, uma política tendenciosa, gozos e festas, grandes criações que hoje assumem a marca de indústria do entretenimento. O indivíduo se depara com inúmeras opções para um mesmo saciar. Há excessos. E não seriam exatamente estes excessos que Rousseau condena, já que os aponta como responsáveis pela fluidez conveniente do ser humano? Mas o que se pode fazer, se é indissociável da idéia de cidade o grande aglomerado de pessoas e, por decorrência, a grande preocupação em fazer-se na imagem que esperam de si, e não como a que se faz de si, como ocorreria na vida próxima da natureza que Rousseau aponta para os montagnons.

A sociedade urbanizada é viciada e não há nada que se possa fazer caso seja de sua vontade sê-lo. Isto deve ser respeitado, e este é o tom da república no estilo rousseauniano. O respeito devotado à vontade geral é fundamental. Mas o afastamento da vida campesina das artes dramáticas se dá exatamente no projeto da evitação de qualquer contaminação de um estilo de vida voltado para suas necessidades reais, mais próximos do projeto de moral de Rousseau.

A lógica de toda esta operação reside em um determinado sentido. Poderia dizer que simplesmente não sei, que seria arrogância de minha parte apontar alguma coisa, mas humildade intelectual, em certa medida, não é a minha característica mais visível. Assim, pretendo arriscar.

Logo acima eu apresentei a idéia de uma Civilização Objetiva que escondesse sob sua epiderme uma moral adequada ao comportamento do povo e um afastamento deste mesmo povo de excessivas paixões e desejos, devaneios e polissemias. Como a moral, a língua, o comportamento e as artes contribuiriam para tal empreendimento em obra que não oferecera sua palavra capital condensada?

Se a língua, ao ampliar seu grau de articulação e se tornar mais exata e menos fruitiva, se o comportamento for regido pela primazia dada às necessidades reais não incorrendo em nenhum jogo de excessos, se as artes forem reflexo de um povo e não um atiçamento de novas paixões, o que incorreria em desvios de comportamento, o ser humano estaria a realizar aquilo que deve realizar.

Conviver com a vida e dela aprender a ser coletivo de forma adequada. Estes ideais democráticos e profundamente fundados no bucolismo pré-romântico organizam o pensamento rousseauniano elaborando inclusive a sua visão de uma sociedade plenamente ordenada. Este ideal exige um ser humano nada voltado para as opiniões alheias, que é geradora de um narcisismo desinteressante, que aliena o ser deu suas reais necessidades, dando margem assim para um homem devotado para a coletividade. Entendendo que o ser humano é uma ser único e igual em sua generalidade, o satisfazer das necessidades básicas e fundamentais renova o pacto social de forma constante e honesta, pois o que é fundamental para um o é para todos. Ninguém se torna algo a mais e, por conseqüência, nada a menos. A vontade geral estaria por se estabelecer pela necessidade comum.

O indivíduo estaria realmente voltado para sua vida, não como fora outrora em seu estado natural, mas harmonizado no sentido mais audível possível em seu estado social, mas sem perder de vista a sua herança da natureza. Para tanto, os selvagens, os bons selvagens, tudo teriam para apontar a humanidade do velho continente sobre viver sem excessos. Eles seriam a utopia de uma humanidade que esquecera de como ser a si mesmo sem adereços demais que desconjuntam a sua realidade perante si mesmo. Apenas a natureza e o ser, agora cônscio de si.

* * *

Não há dúvida que as lacunas aqui são mais constantes que o preenchimento possibilitado pelas idéias levantadas. Contudo, imagino este primeiro vôo panorâmico como uma etapa de uma talvez mais interessante empreitada a ser continuada neste projeto utópico rousseauniano, pouco visível, mas pleno de tentativas. Cada detalhe, cada instituição fundamental, cada localidade.
 

BIBLIOGRAFIA:

Lévi-Strauss, C. (1993) Jean-Jacques Rousseau: Fundador das Ciências do Homem in Antropologia Estrutural Dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro

Rousseau, J.-J. (1999) O Contrato Social. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural

____________ (1999) Ensaio sobre a Origem das Línguas. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural

____________ (1985) Confissões. Lisboa: Relógio D'Água

____________ (1993) Carta a d'Alembert. Campinas; Editora da Unicamp
 

NOTAS:

1  O que frustra, aqui apontado, é o que falha à concepção de ser que subentende a relação do "eu", que é identidade, com o que o todo o resto, que em (in)certa medida pode ser entendido como alteridade. O outro, então, não seria exatamente o que é proposto pela identidade, o que quer dizer que a identidade não é exatamente aquela que se afirmara antes da frustração.

2  Tal repetição elabora um Rousseau que entende o ser humano em movimento, assim como Heráclito. Todavia, a moral proposta por Heráclito aceita e endossa esta espécie de “riverrun” joyceano, enquanto o projeto de Rousseau busca romper com esta “metamorfose ambulante” tornando o ser humano uma existência reta.

3  Declinação: revelar significados restritos à fases-do-objeto, quero dizer, usufruir de determinadas caracerísticas para reorganizar o entendimento do todo; função vicária de Quine.

4  É possível essencializar sem ser essencialista; é possível materializar sem ser materialista