Érica Milaneze
Não podemos dizer que houve verdadeiramente um movimento pré-romântico, mas escritores em cujas obras observamos os primeiros germes de uma linguagem da natureza, da paixão e dos sonhos. Ao debruçarmos sobre a obra de Jean-Jacques Rousseau notamos alguns traços que o colocam na posição de precursor do movimento romântico, em especial o sentimento da natureza, tema central de sua vasta obra.O sentimento da natureza está profundamente relacionado com uma atitude subjetivista, com o voltar-se para si mesmo. Tomando por base sua própria personalidade, Jean-Jacques começa a estudar o homem e sua relação com o mundo que o cerca.
Em seu Discours sur l’origine de l’inégalité, Rousseau situa a desigualdade entre os homens como enraizada na vida social: os seres humanos eram originalmente bons e viviam em uma condição de isolamento e inocência; a sociedade e seus valores culturais criaram, por meio da propriedade privada e da divisão do trabalho, uma desigualdade artificial de origem social, não natural, e uma falsa moralidade; logo, é a sociedade que corrompe o homem. Daí, a proposta de mergulho no interior de si mesmo para encontrar o homem natural: um homem originalmente isolado e auto-suficiente, com todas as suas necessidades atendidas sem lutas e sofrimentos e sem medo da morte.
Rousseau busca, assim, uma natureza humana selvagem, pura, sem a mácula causada pelo mundo corrompido pela civilização. É o famoso mito do bom selvagem, ser íntegro e primitivo, tão amplamente retomado pelos autores românticos. Esse homem está oculto no interior de cada homem, possui a essência de todos os homens, a liberdade. Mas, uma liberdade não apenas social, também emocional, sentimental.
Ao localizar na vida social a fonte da corrupção humana, Rousseau estabelece um profundo pessimismo no tocante à sociedade e à civilização, que se estenderá ao espírito romântico. O homem romântico é um eterno insatisfeito, que não acredita na realidade social, procurando escapar dessa opressiva realidade, por meio da imaginação e da sensibilidade; porém, como tal espírito é feito de profundas contradições, volta ainda seus olhos para a realidade presente, a crítica do mundo contemporâneo, como o próprio Jean-Jacques o faz. Como a propriedade, fonte da desigualdade entre os homens, provoca a corrupção humana, ocorre a necessidade de se exaltar a simplicidade, exteriorizar a voz da alma e da consciência, escondidas no interior de cada ser humano em sua criatividade original.
Entretanto, de acordo com Rousseau, a escritura não é apenas a representação da palavra, uma vez que esta representa o pensamento por meio de signos convencionais. Ao estabelecer a necessidade de liberdade, de pensamentos, de palavras e da livre expressão da criatividade, rejeita as regras e modelos impostos pela razão em detrimento de uma maior simplicidade e franquezas estéticas. O homem se realiza na sensibilidade e na criatividade, liberando a inspiração original que verte das profundezas do ser. Novamente, percebemos características que serão retomadas pelos românticos: a liberdade estética e a inspiração como verdadeira fonte de expressão do gênio criador.
Desta forma, pode-se dizer que um dos pontos de partida da obra de Rousseau é a interioridade como sinônimo de sentimento, o que o contrapõe ao racionalismo do Século das Luzes. É no sentimento que se encontra a melhor tradução da interioridade humana, pois é no sentir-se que o homem mergulha em suas raízes de maneira mais livre. Há uma expansão do eu e da subjetividade, que será a base de todo pensamento romântico. O espírito romântico, já no século XIX, volta-se para a subjetividade, para a valorização dos sentimentos em todos os seus matizes, mas é no amor que encontramos sua grande expressão. O amor que para Jean-Jacques é também uma forma de ressaltar a essência primitiva do ser humano.
No entanto, ao falar de natureza, Rousseau não pressupõe apenas a natureza interna, mas também a natureza externa, o espaço físico externo. O homem deve procurar refletir sobre a natureza que o rodeia, o que essa natureza tem a lhe dizer, que sentimentos ela desperta em sua interioridade. Tem-se, assim, uma fusão do espírito humano com a natureza através de uma interiorização do espaço externo, ou seja, a natureza torna-se parte da alma humana. O espírito humano acaba por se alargar ao se fundir com um elemento puro, sem a mácula da mão humana corrompida pela sociedade.
A natureza mostra-se ao homem em todo seu esplendor e grandeza, é a natureza selvagem, cuja força impulsiona o movimento universal. Na famosa obra de Rousseau, Les rêveries du promeneur solitaire, o caminhante solitário evoca a natureza em seus longos passeios, é nela que encontra seus maiores prazeres, pois sente essa natureza com todos seus sentidos, com todo seu ser. A natureza transforma-se em refúgio da solidão e sua harmonia sensibiliza a alma melancólica ao entrar em comunicação com Deus.
O sentimento da natureza manifesta-se no romantismo como extensão das idéias de Rousseau, na busca da solidão, seja pela procura de lugares distantes como o Novo Mundo, seja pela preferência por lugares pitorescos, grandiosos e selvagens. A natureza guarda algo de religioso, é a expressão concreta da divindade, representando um refúgio para a melancolia sentida. O espírito romântico busca, ainda, na natureza aquilo que está escondido, o mistério que se oculta por trás de sua grandeza e profundidade.
Observamos que as idéias de Rousseau tiveram forte influência na formação de todo o pensamento romântico e denotam um verdadeiro despertar da sensibilidade em um século em que a razão se impõe como base fundamental da sociedade e cultura.
BIBLIOGRAFIA:
PINTO, M. C. Q. M. O pré-romantismo francês: Rousseau e Chateaubriand TEXTOS: O romantismo francês, seus antecedentes, vínculos e repercussões. MACHADO, G. M. (org.), n. 12, 1992, p.21-9.
GUINSBURG, J. O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.