ROUSSEAU: POLÍTICA, EDUCAÇÃO E LIBERDADE

Manoel Dionizio Neto
Professor de Filosofia do Departamento de Ciências Sociais do 
Centro de Formação de Professores da UFPB – Campus V – 
e Doutorando em Educação na UFSCar

 
A decadência do Império Romano deu lugar à formação de aglomeração de ducados e principados distribuídos por toda Europa, entre os séculos IX e XIV. A organização da sociedade passou a ser sustentada pelos domínios territoriais representados pelos feudos, havendo assim a predominância das relações feudais que tinham seu assento na propriedade agrária e no trabalho servil.

Do lado espiritual, estava a Igreja, com o seu clero formado pelos cardeais, arcebispos, bispos, padres, monges, frades e freiras, todos estes sob a liderança do Papa. Seguindo esta ordem, estavam também os professores de teologia e de filosofia, bem como as Universidades que se formaram a partir do século XIII, com a criação da Universidade de Bolonha.

Essa organização social, política e econômica passou a ficar com os seus dias contados com o aumento da população e a necessidade cada vez maior de distribuição de feudos entre os servos. Aos poucos, vão tomando corpo os burgos à medida em que fora se expandindo o comércio com o conseqüente crescimento da burguesia, no primeiro momento, visto sob o ponto de vista econômico, para depois afirmar-se também politicamente.

Ao lado desse crescimento da burguesia, em conseqüência da reorganização do comércio que deu origem ao que se chamou mercantilismo, estavam também se gestando e mesmo nascendo uma nova forma de se fazer a filosofia e a ciência, depois que esta última se viu sufocada pelo pensamento de ordem filosófico-religiosa. A gestação dessa nova ciência já se faz com Rogério Bacon (1214-1294) ganhando um sopro maior de vida com Nicolau de Cusa (1401-1464) e Leonardo da Vinci (1452-1519). Giordano Bruno juntamente com Nicolau Copérnico e Galileu fazem nascer isto que se chamou ciência moderna. Por outro lado, René Descartes e Francis Bacon apontam para novos horizontes da filosofia. Dava-se com estes últimos o alvorecer do racionalismo e do empirismo. Estavam assim lançadas as bases para novos métodos da filosofia e da ciência.

É em meio a todos esses acontecimentos que o aglomerado de ducados e principados vai dando lugar à formação dos Estados nacionais, com o fortalecimento dos reis e o enfraquecimento dos senhores feudais. Ergue-se assim o Estado moderno centrado no absolutismo, convertido posteriormente em liberalismo, com o Estado deixando de ser absoluto para se firmar como Estado liberal.

O Estado moderno, seja em sua versão absolutista ou liberal, irá respaldar-se em pensadores que procuram teorizar a respeito dele. Exemplo disto são Maquiavel, Thomas Hobbes, John Locke e Montesquieu. Respondendo a todos estes, como se se tratasse de buscar uma terceira via para o Estado moderno, vamos encontrar Jean-Jacques Rousseau: crítico do absolutismo, crítico do liberalismo, crítico das ciências e das artes – isto é: um crítico moderno da modernidade.

Tudo parece ter começado com os assédios que passara a receber Suzanne Bernard, mulher bela e talentosa com quem havia casado Isaac Rousseau, quando este se ausentara, tendo ido buscar fortunas em Constantinopla. A pedido dela, ele retornou – mesmo sem a fortuna que acreditou alcançar – para que, dez meses depois, pudesse haver o nascimento daquele que se chamara Jean-Jacques Rousseau, o que aconteceu depois de sete anos do nascimento do seu irmão François e dois dias antes da morte de sua mãe, o que ocorrera no dia 28 de junho de 1712, em Genebra. A respeito de François, diz o próprio Jean-Jacques o seguinte:

"Tinha um irmão mais velho do que eu sete anos. Aprendia o ofício de meu pai. A afeição extrema que sentiam por mim fazia com que o neglicenciassem e não é isso coisa que eu aprove. Sua educação ressentiu-se de tal negligência. Enveredou pela libertinagem, antes mesmo de atingir a idade de ser verdadeiro libertino. Puseram-no em casa de outro patrão, de onde escapulia como tinha feito na casa paterna. Quase não o via, mal posso dizer que o conheci, porém não deixava de amá-lo ternamente e ele me amava tanto quanto um maroto pode amar alguma coisa. Lembro-me de que uma vez em que meu pai o castigava rudemente e encolerizado, num ímpeto, lancei-me entre eles, abraçando-o apertadamente. Cobri-o desse modo com meu corpo, recebendo os golpes que lhe eram destinados; e mantive tão teimosamente esta atitude que foi preciso, por fim, que meu pai o perdoasse, ou abrandado por meu gritos e minhas lágrimas, ou para não me maltratar mais do que a ele. Por fim meu irmão tornou-se tão mau que fugiu e desapareceu completamente. Tempos depois soubemos que estava na Alemanha. Não escreveu uma única vez. Deste então não tivemos mais notícias dele; e eis como me tornei filho único". Mal-entendidos levaram o pai, Isaac, a ser condenado por crime que não cometera e, não tendo como pagar a fiança nem provar sua inocência, este, assim como o seu filho François, desapareceu, depois de se estabelecer em Nyon após a sua fuga de Genebra, tendo aí casado novamente. Jean-Jacques ficara só. Perambulando entre as casas dos tios, aos dezesseis anos de idade, isto é, seis anos depois da fuga do pai de Genebra, acabou fugindo para a França, onde buscou a ajuda de um sacerdote católico que o enviou, com uma carta, à Senhora Françoise-Louise de la Tour, baronesa de Warens, que morava em Annecy. Deu-se a partir daí a sua conversão ao catolicismo e também a sua iniciação sexual com a própria Sra. Warens (como era conhecida) por decisão dela mesma, que, aos vinte e oito anos, ficara viúva, e era na ocasião amante do seu mordomo, Claude Anet. Esta iniciação sexual ocorrera em Chambéry, para onde tinha ido morar a Sra. Warens, depois do retorno de Jean-Jacques de suas andanças entre Turim e Lyon, quando estivera tentando a sua carreira de sacerdote ou de músico, em 1733, quando tinha 21 anos.

Mas não queremos aqui apresentar uma biografia de Jean-Jacques Rousseau. Apenas queremos chamar a atenção para o fato de que, depois de todas essas ocorrências envolvendo a sua vida, passara a morar em Paris, onde fez amizade com alguns dos intelectuais da época, que ficaram conhecidos posteriormente como iluministas e autores da grande Enciclopédia, que procurara reunir tudo que dissesse respeito à filosofia, às ciências e às artes. Dentre estes intelectuais, estava Denis Diderot, com quem estabeleceu uma grande amizade e a quem fora visitar em Vincennes, numa tarde do ano de 1749. Durante o percurso entre Paris e Vincennes, procurara se distrair com a leitura de um exemplar do Mercure de France e se deparou com a informação a respeito do concurso da Academia de Dijon, previsto para o ano seguinte. A referida Academia estava oferecendo um prêmio a quem melhor respondesse a seguinte questão: "O restabelecimento das ciências e das artes contribuiu para aprimorar ou corromper os costumes?". Rousseau submeteu-se a este concurso para responder esta pergunta com o Discurso sobre as ciências e as artes, posicionando-se com uma negativa a respeito da possível contribuição das ciências e das artes para os costumes. Isto valeu-lhe o prêmio e entrada para a imortalidade com uma vasta obra, onde podemos ver o mundo através do seu pensamento, voltado para a questão política que arrasta consigo uma forma de pensar a educação e a liberdade, tendo em vista uma nova forma de organizar a sociedade, o governo e uma nova forma de se fazer a cidadania.

Rousseau tinha diante de si os vícios de um capitalismo emergente, pelos quais podia ver a configuração do mundo da cultura e da civilização. Tratava-se da corrupção dos valores genuinamente humanos, que, no entender de Rousseau, eram a expressão da natureza, fosse esta do próprio homem ou mesmo de todo um universo em que ele estivera, desde o seu surgimento no mundo. Mas, esta natureza, fora corrompida quando uns homens passaram a dominar os outros à medida em que foram se apossando dos recursos naturais, transformando-os em propriedades suas. A passagem da inocência, representada pela pureza do modo pelo qual lidavam com a natureza, sendo exemplo desta os próprios homens, para a inveja, a cobiça, a ganância e a exploração da maioria pela minoria passou a ser compreendida como a passagem do estado de natureza para o estado civil, deixando de ser a terra propriedade de todos para ser propriedade dos que a puseram sob o seu domínio. Como se deu esta passagem? A resposta a esta questão Rousseau expôs em um Segundo Discurso, com que concorreu pela segunda vez ao prêmio oferecido pela Academia de Dijon. Desta feita, tratava-se de responder qual a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Não obtive o primeiro lugar, como ocorrera no concurso anterior, ficando apenas com o segundo lugar com o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Apesar de o resultado deste último concurso ter sido apresentado pela Academia de Dijon em 1754, conforme fora anunciado no ano anterior (1753), este Segundo Discurso só foi publicado em 1755, ao contrário do que se deu com a publicação do Primeiro, ocorrida no mesmo ano da divulgação do resultado do concurso, em 1750. Isto não impediu, no entanto, um sucesso maior que o do Primeiro. Mais do que isto, apagou-se na história o brilho do premiado neste segundo concurso, enquanto o Discurso de Rousseau, tendo ficado em segundo lugar, brilha até hoje, tendo em vista a sua importância para a compreensão da sociedade e dos homens situados nela.

Pelo Segundo Discurso de Rousseau é possível perceber quanto o seu autor estava insatisfeito com a degradação humana, vista por ele como conseqüência da escravidão e do servilismo dos homens. Não se tratava de querer de volta a organização social da Antiga Grécia, mas não se deixava de ressaltar a recuperação dos valores corrompidos pela nova forma de organização da sociedade, estabelecida pela modernidade. Estava chegada a hora de repensar a relação do político e do ético suplantados pelo Estado moderno que fora muito bem teorizado por Maquiavel e Hobbes. Mas, o que dizer do liberalismo? Não se tratava de querer um Estado capaz de estabelecer relações reguladoras entre os homens, tendo em vista a necessidade de garantia da defesa dos seus interesses sem intervenção na propriedade, que, para John Locke, era fruto do trabalho. Tratava-se, sim, de se pensar em um contrato social que possibilitasse ao homem a conquista da sua liberdade, agora, no estado civil, uma vez que é irreversível a sua entrada no mundo da civilização. Para melhor explicar a possibilidade disto, bem como para dizer da forma pela qual seria possível, escreveu Rousseau O Contrato social e o Emílio ou da educação. Neste último, vemos o caminho que deve ser trilhado pelo homem para alcançar a cidadania que o coloca em condições de alienar a sua liberdade natural como condição para o alcance de sua liberdade civil, mediante a afirmação da vontade geral que se fará pelo contrato social a que nos referimos. Assim, por um lado, nem absolutismo nem liberalismo; por outro, nem escravidão nem servilismo. A educação, conforme o exposto em o Emílio, seria capaz de conduzir cada um dos homens ao estágio de civilização em que fosse possível a democracia direta, sendo o povo identificado com o soberano, e o governo com as ações daqueles escolhidos como magistrados para executar aquilo que fosse determinado pela vontade geral como expressão da liberdade de cada em forma de lei.

Assim sintetizamos o que fora apreendido de um recorte das exposições sobre Jean-Jacques Rousseau para o Curso de Extensão Universitária, realizado pelo Departamento de Letras Modernas da UNESP – Campus de Araraquara – em conjunto com o Departamento de Filosofia da UNICAMP, sob a coordenação da Prof.ª Drª Karin Volobuef (UNESP) e do Prof. Dr. José Oscar A. Marques (UNICAMP), tendo em vista a produção intelectual do referido filósofo como campo para a Filosofia, a Literatura e a Educação. Ressaltamos assim o fato de que a preocupação rousseauniana com a natureza fora caminho para se pensar no sentido ontológico de bondade que encontramos no homem ao lado de uma possível bondade como fruto de uma possível forma de educar os homens para a civilização. Rousseau, com esta forma de pensar o mundo e os homens, estabeleceu também formas de pensar a arte, expressa pelos espetáculos e a comédia, bem como a literatura, dando norte para o que se firmou a partir de sua obra como Romantismo, caracterizado, entre outras coisas, pela evidência da natureza, o significado da solidão, a pureza do amor em suas mais diferentes formas e o apego ao seu lugar de origem, o que demonstra com o carinho que expressa em relação à Genebra ou mesmo no que expõe no Emílio, quando chama a atenção para a importância de se amar a terra natal, o que expressa um forte sentimento nacionalista.

Em meio a todo o exposto sobre o pensamento de Jean-Jacques Rousseau vemos que por trás de sua forma de ver o mundo e os homens, seja nas ciências, nas artes ou no seu cotidiano, está posto aquilo que ele pensou a respeito da política, da educação e da liberdade, considerando-as todas juntas no fazer-se da existência dos seres humanos.


BIBLIOGRAFIA CONSULTADA E CITADA

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