MANOEL DIONIZIO NETO
mdneto@terra.com.br Professor de Filosofia do Departamento de Ciências
Sociais da Universidade Federal da Paraíba – UFPB – Campus V
É desse entendimento que partimos para a compreensão daquilo que Rousseau propôs para a educação da criança, fazendo uma certa revolução copernicana no tratamento dado à infância. Preferimos nos referir a uma certa "revolução" por sabermos das mudanças que já se processavam no trato com as crianças por parte de pais e professores. É o próprio Montaigne que nos permite considerar este fato. Paradoxalmente, até poderíamos dizer, ele apresenta a sua rejeição a uma forma mais afetiva no tratamento das crianças ainda muito novas, sendo exemplo destas as recém-nascidas, a quem ele não concebia que fossem beijadas por estarem "ainda sem forma definida, sem sentimento nem expressão que as tornem dignas de amor. Por isso mesmo foi com desagrado que as tive educadas ao meu lado" [p. 180]. Esta última afirmação expressa muito bem o fato de que já havia um tratamento mais afetivo dispensado às crianças desde a sua mais tenra idade. No entanto, conforme podemos entender, compreendia, por outro lado, a necessidade desta afetividade à proporção em que fossem as crianças tomando forma definida, ao adquirirem sentimento e expressão que as fizessem dignas de amor. É também o mesmo Montaigne que nos chama a atenção para a necessidade de educarmos a criança logo cedo, para que se torne possível dar a ela a formação que seja peculiar a sua natureza. É neste sentido que nos diz o seguinte: "Os filhotes de ursos e de cães mostram sua tendência natural; os homens, porém, metendo-se desde logo em hábitos, preconceitos, leis, mudam ou se mascaram facilmente". [I, p. 74]. É nesta direção que encontramos Jean-Jacques Rousseau, compreendendo que se faz necessário pensar seriamente no significado da infância que começa com o nascimento da criança que, por sua vez, deve ser também educada a partir daí. Ou seja: a educação deverá começar a partir do memento em que a criança vem ao mundo. Assim deve ser por se tratar da necessidade de formamos o homem, antes que este possa se inserir na sociedade como cidadão. No Emílio, diz-nos da impossibilidade de formar ao mesmo tempo o homem e o cidadão. Mas, considerando, por outro lado, a necessidade de termos homens capazes de assumir sua cidadania, faz-se necessário também compreender a necessidade de formar o homem, o que não poderá ser feito concomitantemente à formação do cidadão, nem muito menos em um momento posterior. O ser, que desde o seu surgimento no mundo, é designado como ser humano, não poderá prescindir da sua formação de homem, carecendo assim da sua educação a partir do seu nascimento. A necessidade de compreender o significado dessa formação do homem, conforme o proposto por Rousseau, exige de nós o lançarmo-nos sobre o que ele nos diz em seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Neste, damo-nos conta da condição natural em que está posto o ser humano, se considerarmos o mesmo em sua origem. Assim, ao pensarmos na formação do homem, que tem início com o seu nascimento, pensamos, na verdade, no que pode ser compreendido como homem natural. É este que terá de se fazer do seu nascimento até a adolescência, quando passa a adquirir as qualidades que o permitem inserir-se na coletividade dos homens, abrindo espaço para a construção da sua cidadania, conforme podemos ver no Livro Quarto do Emílio. Voltando-nos, pois, para o significado do que ficou compreendido por Rousseau como homem natural, temos diante de nós a estátua de Glauco. Esta, depois de ter sido desfigurada pelo tempo, bem como pelo mar e todas as intempéries, tornou-se um referencial com que deve ser confrontado o homem conforme o conhecemos hoje. Para que este homem possa se ver agora tal como o fez a natureza, faz-se necessário retornar àquilo que ele foi originalmente, pondo à parte toda sucessão do tempo e das coisas, separando, a partir daí tudo pertencente à sua própria essência daquilo que foi acrescentado do seu estado primitivo pelas circunstâncias e os seus semelhantes. Assim, temos que considerar o fato de que, no seio da sociedade que conhecemos, há uma enorme distância entre o homem natural e o homem social configurada pela alteração da alma humana A partir do momento em que Rousseau considera a necessidade de se pensar na formação deste homem natural, que conhecemos na infância, passa a se perguntar pelo que seria do homem se não lhe fosse dada uma educação conforme à natureza. Esta educação deixa de existir quando o homem passa a se formar de acordo com as determinações do meio social em que está inserido. Mas, por que não isolá-lo deste meio? Se, ao invés de isolarmos o homem de tudo aquilo que conhecemos da sociedade, deixarmos o mesmo entre os demais, teremos como conseqüência a sua desconfiguração. Isto nos diz Rousseau, quando nos chama a atenção para o seguinte: Mas, se queremos pensar na formação do homem, com vistas a sua cidadania, é preciso considerar que o mesmo deve ser educado para ser o homem natural para o qual aponta as determinações da natureza, ratificando-se assim o que já havia sido proposto por Montaigne, conforme vimos anteriormente, quando diz da necessidade de educarmos o homem desde sua primeira infância, para que lhe seja garantida a preservação de todas as suas inclinações naturais, que podem ser corroídas pelo meio social, revestido de hábitos e costumes que imprimem os vícios e os preconceitos no indivíduo. Assim, o processo educacional em Rousseau pode ser dividido em dois momentos distintos. O primeiro destes vai do zero aos quinze anos, quando o indivíduo atinge a adolescência, e o outro que vai daí até o momento em que se tem o homem adulto, o que acontecerá, segundo o entendimento rousseauniano, por volta dos vinte cinco anos de idade. Mas é da primeira educação que depende a segunda, de forma que podemos afirmar ser somente possível o exercício da cidadania plena mediante a preparação do homem para a sua condição de cidadão, o que não ocorrerá se, antes, o indivíduo não for devidamente preparado para se firmar como homem, simplesmente, o que guarda neste simplesmente a sua condição natural de ser. Deste modo, antes de pensarmos no desenvolvimento do intelecto, havermos de pensar no desenvolvimento de todos os aspectos físicos que constituem o indivíduo como homem, no seu sentido mais natural que se possa imaginar no seio da sociedade que conhecemos. Reportar-se a esta sociedade que conhecemos se faz necessário, tendo em vista o fato de que é para ela que se educam os homens. Se partimos deste entendimento, podemos compreender que a educação primeira é imprescindível, o que seria diferente, se, hipoteticamente, pensamos na possibilidade de uma preparação do homem para habitar simplesmente na selva, digamos assim, onde somente poderíamos contar com o meio natural, para o qual se tornou impossível o retorno do homem com o advento da sociedade, o que muito bem ficou demonstrado no Segundo Discurso. Considerando, portanto, a importância desta primeira educação, Rousseau nos diz o seguinte: A questão que fica posta está voltada para o significado de um contrato que se faz entre pessoas de diferentes condições em termos de liberdade. De um lado, temos o adulto, educador, que, em primeiro momento, é identificado com os pais, e mais precisamente com a mãe. Por outro lado, temos a criança que, como bem o diz Rousseau, não é um adulto em miniatura, mas um ser com características próprias, isto é, um homem ainda em sua infância, momento em que há uma desproporção entre suas forças e os seus desejos ou necessidades. Neste sentido, a criança, em um primeiro momento, se encontra a mercê do adulto que lhe aprece como educador; mas, por outro lado, ainda não pode ser considerado um ser livre, uma vez que não se encontra em condições de fazer as escolhas que lhe são necessárias à satisfação dos seus desejos; estas condições lhe faltam tanto porque não dispõe da força necessária para viabilizar esta satisfação, como também não viveu ainda o suficiente para conhecer a experiência humana de modo a ser capaz de discernir com precisão o sim e o não em suas escolhas. Poderíamos, portanto, falar de inviabilidade de qualquer contrato entre estas partes, já que entendemos ser o contrato um acordo afirmado entre pessoas livres, que assim o são devido às possibilidades de livres escolhas por parte delas. Para que se torne compreensível a possibilidade deste contrato, conforme o entendimento de Rousseau, há de considerarmos as condições que, direta ou indiretamente, ele nos apresenta para a viabilização do mesmo. Temos assim de voltarmos a questão da mãe, isto é, ao significado do primeiro educador. Se refletirmos a respeito do lugar da mãe no processo de formação do indivíduo, veremos em que nível se dá a relação entre mãe e filho para que se torne possível uma sadia formação desse indivíduo. Entendendo por indivíduo o ser que se faz homem a partir do seu nascimento, voltamo-nos para o modo pelo qual começa o processo educativo que o leva a uma formação específica do caráter ou da personalidade com que passa ser identificada a pessoa. Como uma criança, que ainda não está experienciando a sua liberdade em toda sua extensão, de modo que muito bem podemos ter como indivíduo ainda sem liberdade, por não dispor ainda das suas possibilidades de escolha, pode afirmar um acordo com um sujeito livre, seja este sua mãe ou simplesmente um educador, que poderia ser identificado como preceptor, conforme o exemplo posto por Rousseau em o Emílio? A formulação desta questão poderia se fazer de uma forma mais simplificada, se perguntássemos pela possibilidade da afirmação de um contrato em que somente de um lado se encontra um ser livre, contradizendo o que é racionalmente permitido. Para que bem se entenda isso, faz-se necessário considerar uma categoria que é forte no pensamento de Rousseau: o sentimento. Temos que ver a racionalidade humana revista pelo sentimento que a antecede. Neste sentido, é possível compreender que, na afirmação de um contrato, ao contrário do que parece a primeira vista, não somente se encontra a racionalidade de ambos os lados; há também sentimentos. Se levarmos em consideração o significado dos sentimentos nas decisões humanas, haveremos de ver que não há ato humano, por mais frio ou racional que possamos imaginar, sem que, de uma forma ou de outra, diretamente ou não, seja antecedido pelo sentimento. De alguma forma, sentimos. É para este sentimento que teremos que nos voltar para compreendermos que o homem, mesmo em sua mais tenra infância, já é capaz de sentir. Quando nos voltamos para esta questão de sentimentos, que antecede a racionalidade, passamos a ver numa outra perspectiva a afirmação do contrato pedagógico de Rousseau. Trata-se de um contrato que terá necessariamente de estar fundado na afetividade entre as partes, para que o mesmo possa ser viabilizado. O estudo feito por Georges Snyders e apresentado em seu livro Alunos felizes nos coloca diante desta questão de afetividade que está subentendida no pensamento de Rousseau, quando a questão proposta é aquela que diz respeito à educação, sobretudo àquela que se dá na infância, e mais precisamente naquela primeiríssima. Snyders chama muito bem a atenção para o fato de que o processo educativo não se fará satisfatoriamente se não houver a devida afetividade entre o aluno e o professor. O mesmo podemos dizer a respeito do que vemos como contrato pedagógico em Rousseau, que, por sua vez, antecede aquilo que posteriormente ele apresentou como contrato social, o que já está anunciado mesmo no Emílio. E daí vem-nos a lembrança de Antoine de Saint-Exupéry, em seu O Pequeno Príncipe: para que seja possível a conquista da amizade de alguém, o que implica na verdade a conquista da confiança deste alguém em relação a nós, precisamos antes cativá-lo, como o diz a raposa ao principezinho: Chamamos a atenção para o significado deste "cativar" posto no Pequeno Príncipe para enfatizar a habilidade necessária de um educador para que se torne possível um contrato entre ele e uma criança. Se ele não a cativa, de forma que possa se falar da verdadeira afetividade referida por Snyders, não se torna possível um contrato pedagógico entre um bebê e sua mãe, por exemplo. Da mesma forma se torna inviável qualquer tentativa de contrato entre um educando e um educador, seja ele em sua fase mais infantil ou mesmo na adolescência, se é que não queremos aqui também nos referir ao homem em sua fase já adulta. A grande diferença no modo de estabelecer o contrato está na manifestação do sentimento pela via da racionalidade, quando o indivíduo já se encontra em condições de verbalizá-lo, de modo que possa dizer com todas as palavras alguma coisa que possa se expressar como cláusulas de um contrato. Assim, pelo viés da afetividade, podemos compreender como se firma o processo de educação em Rousseau, que começa no memento do nascimento da criança, indo até a fase adulta, quando o homem já é capaz de fazer suas escolhas e verbalizar seus sentimentos através de diferentes argumentos que pode articular diante do outro que lhe aparece como possível educador. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA E/OU CITADA —————. Ensaios. Tradução por Sérgio Milliet.5. ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991. p. 179-188 Lv. II. (Os Pensadores, 18). ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução por Lourdes Santos Machado. 5. ed. São Paulo : Nova Cultural, 1991. p. 215-320 (Coleção Os pensadores, 6 ). —————. Emílio ou da educação. Tradução por Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1995. Tradução de: Émile; ou, De l’éducation. SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Tradução por Dom Marcos Barbosa. 31. ed. Rio de Janeiro : Agir, 1987. SNYDERS, Georges. Alunos felizes: reflexão sobe a alegria na escola a partir de textos literários. Tradução por Cátia Ainda Pereira da Silva. 2. ed. Rio de Janeiro: 1996. 208 p. Tradução de: Des elèves heureux – Reflexion sur la joie à l’école à partir de quelques textes littéraires. São Carlos, 27 de outubro de 2001. |