Maria da Glória Rocha Pirolla
"Eis-me, portanto, sozinho na terra, tendo
apenas a
Jean-Jacques Rousseau nasceu em 28/07/1712, em Genebra, Suíça,
numa família de origem francesa e protestante.
mim mesmo como irmão, próximo, amigo, companhia" Devaneios do Caminhante Solitário
A morte da mãe e o desleixo do pai deixaram-no, bem cedo, entregue a si mesmo. As leituras desordenadas e precoces habituaram-no a viver mais no reino da fantasia do que na realidade. Ainda criança, transcorria, por vezes, noites inteiras lendo, em companhia do seu pai e ambos se comoviam até as lágrimas perdendo a noção do tempo, conforme revele em "Confissão": "Minha mãe deixara romances. Meu pai e eu começamos a lê-los após o jantar. A princípio pensou-se apenas em exercitar-me a leitura através de livros divertidos, mas em breve o interesse tornou-se tão vivo que líamos alternadamente sem parar e passávamos as noites nessa ocupação. Só podíamos parar ao final do volume. Às vezes, meu pai, ouvindo as andorinhas pela manhã, dizia todo envergonhado: vamos deitar, sou mais criança que tu. Em pouco tempo adquiri, com esse método perigoso, não somente uma extrema facilidade para ler e ouvir, mas uma compreensão das paixões em minha idade. Não possuía nenhuma idéia sobre as coisas, mas todos os sentimentos me erma conhecidos". Tais leituras despertaram-lhe, muito cedo, o gosto pelas sensações e pelas tramas romanescas. Com dez anos é recolhido pelo tio maternal quando seu pai deixa Genebra. Não tinha ainda dezesseis anos, quando, ao voltar para Genebra, após um passeio, encontrou as portas da cidade fechadas. Resolve então, abandonar Genebra e procurar asilo junto a um sacerdote católico. Este, encaminhou-o à Madame de Warens, que residia na Sabóia (França). Madame de Warens se ocupava em receber e mandar instruir os protestantes desejosos de conversão. Assim, Rousseau foi enviado a Turim para ali receber a preparação religiosa e o batismo. Se aceita obedecer Madame de Warens e ir a pé para Turim para consumar sua abjuração e sua conversão, não é por convicção religiosa, mas pela cega admiração que tem pela bela católica: "uma religião pregada por tais missionários não pode deixar de levar ao paraíso". Chama-a de "Mamãe" e nutre por ela um amor filial. Madame de Warens quer que ele se dedique a alguma profissão; Rousseau acaba por dedicar-se ao ensino da música à filhas de família de Chambéry (antiga capital de Sabóia). Sente-se atraído pelas jovens e antes que ele sucumba a seus encantos, Madame de Warens inculca-lhe, pouco a pouco, o sentido e o gosto dos prazeres mundanos e o desejo de ter sucesso. Na casa de campo que esta possuía, o rapaz pode gozar da serenidade; em contraste com a natureza pôde instruir-se, lendo com avidez, recorrendo mais metodicamente que antes à literatura e estudando latim, história, matemática, física e música. Madame de Warens lhe proporciona condições parar desenvolver seus talentos, seus saberes, homini di lettera, tendo contatos com pessoas cultas que se reuniam em torno dela. Em 1742, vai para Paris levando um esquema de notação musical de sua autoria, além de uma comédia, uma ópera e originais de alguns poemas. No ano seguinte, ocupou o cargo de secretário de embaixador francês em Veneza. Nessa época escreveu um balé intitulado "Les muses galantes" (1745) que foi encenado na Ópera de Paris. De volta à França, torna-se amigo de Diderot e Condillac, e foi incumbido por Diderot de escrever os artigos sobre música para a "Grande Encyclopédie". Em 1745, Rousseau encontra uma criada iletrada com cerca de vinte e cinco anos: Thérèse le Vasseur, que passará a ser sua companheira. Sendo inferior, ela não se impõe a ele. Têm juntos cinco filhos naturais, todos confiados ao asilo dos Enfants Trouvés. Em 1750, a Academia de Dijon instituiu um curso sobre o tema: "Se o renascimento das ciências e das artes tinha contribuído para sanear os costumes". Rousseau apresenta um "Discurso sobre as ciências e as artes" repleto de ardor e convicção, que revelou a força de sua eloqüência. Baseando-se em sua própria experiência ele sustentou que o progresso, ao invés de melhorar os costumes, corrompe-os. Certamente Rousseau pensava nos anos transcorridos em Paris, ávido que era de glória e resolvido ao obtê-la por todos os meios; comparando este período com a feliz mediocridade, com a vida pia e virtuosa que abandonara, concluiu que a mesma coisa acontece com toda a humanidade. "As artes, e a riqueza encorajam nossos vícios, criam as desigualdades, afastam-nos da perfeição, que consiste na vida simples e modesta". O Discurso sobre as ciências e as artes, que obtém o prêmio é um enorme sucesso, muda a vida de Rousseau. Tendo conquistado a glória, deve desprezá-la e voltar sobre seus passos pois o tema de seu Discurso é a volta do homem à inocência das primeiras eras. Assim, o retorno do premiado da Academia de Brijon à humildade sem baixeza e ao anonimato sem ambição da primeira juventude é o movimento da vida de Rousseau. É pois, porque o discurso foi premiado que seu autor teve de, ele próprio, viver conforme os princípios austeros que expôs. Dois anos mais tarde, Rousseau teve uma de suas comédias Narcisse (1753) representadas no Théâtre Français. Publicou sua Lettre sur la musique française (carta sobre música francesa) em que procura demonstrar superioridade da música italiana em relação à da França. Em 1753, Rousseau decide trabalhar no novo assunto proposto para a Academia de Dijon: "qual é a origem da desigualdade entre os homens, e se ela é autorizada pela lei natural". Esse seu retorno evidencia que, apesar da reforma que impusera à sua própria vida, a glória ainda o seduzia. Embora habitasse Paris, Rousseau fez à Saint Germain "uma viagem de sete ou oito dias" para "meditar à vontade sobre esse grande assunto". "Embrenhado na floresta, procurava nela e nela encontrei a imagem dos primeiros tempos, de que fielmente traçava a história" dizia ele; "peguei as pequenas mentiras dos homens; ousei desvendar sua natureza, seguir o progresso do tempo e das coisas que às desfiguraram e comparando o homem do homem com o homem natural mostrar-lhes em seu pretenso aperfeiçoamento à verdadeira fonte de suas misérias". À medida que triunfava de seus contraditores, Rousseau sentia firmar sua convicção de que a inadaptação permanente de que sofria não vinha de uma fraqueza pessoal, de um vício de constituição, mas de uma lenta corrupção das sociedades. Traça um quadro acrescido de um histórico das sociedades humanas, demonstrando que as desigualdades são frutos da civilização. Suas convicções são ditadas por um sentimento profundo pois cita as inúmeras misérias que encontrava em sua vida aventurosa. Rousseau defende a tese que os homens foram livres e felizes enquanto viveram no estado natural e que quando começaram a agrupar-se, a constituir uma sociedade organizada, surgiram as desigualdades, o desejo de possuir, a avidez de riqueza e o domínio de alguns em detrimento dos outros. É então que, ultrapassando o simples sonho, começa a fundar solidamente sua indignação sobre princípios que a justificavam. Uma espécie de sublimação opera-se em sua alma em conseqüência dessa transferência de culpabilidade que o faz passar daí em diante por sensor de nossos hábitos. A idéia da bondade natural do homem o conduz, por contraste, a criticar a injustiça da sociedade contemporânea. O paradoxo que fará a unidade de todo pensamento rousseauniano: "o homem é bom e feliz por natureza; é a civilização que o corrompe e arruína sua felicidade primitiva. A sociedade civil corruptora de almas nasce da propriedade". Todas essas afirmações estavam em flagrante contraste com as opiniões correntes do tempo e da sociedade em que vivia Rousseau. Despertaram portanto enorme interesse e tiveram grande influência sobre a opinião pública. Rousseau, então, fiel aos preceitos dos dois Discursos, deixa Paris com estrondo abandonando a sociedade corrompida do mundo e vai procurar a solidão na floresta de Montmorence. Em nove de abril de 1756, instala-se juntamente com Thérèse, no L’Emitage de la Chevrette, como convidado de Madame d’Epinay esposa de um coletor de impostos. Cheio de fé naquilo que defendia, pôs em prática, ele próprio, seus princípios retirando-se para solidão. Assim aos 44 anos de idade (1756), Rousseau decide realizar uma reforma em sua pessoa, baseada na simplicidade e autencidade. Reforma exterior, renunciando à espada, ao relógio, aos enfeites dourados, as meias brancas, a peruca, mas também interior, renunciando ao mundo e aos "insensatos julgamentos dos homens". É nesse momento de sua vida que Rousseau nas Confissões declara: "Como era possível que, com uma alma naturalmente expansiva, para quem viver era amar, não tivesse encontrado até então, um amigo que me pertencesse, um verdadeiro amigo e eu me sentia tão bem preparado para sê-lo? Como era possível que, com sentimentos tão combatíveis, com um coração repleto de amor não tivesse eu pelo menos uma vez ardido com duas chamas por um ser determinado". Havia amado Madame de Warrens que era baronesa como anteriormente Mlle de Breil cujo pai era marquês e o avô conde ou ainda suas jovens estudantes de Chambery que eram quase todas filhas da boa aristocracia de Saboia. Eremita em Montmorence, vai apaixonar-se por Madame d’ Houdetot que era condessa "e conhecer o amor que engaja o ser inteiro e transforma uma vida". Assim vivendo mais próximo a natureza, saboreando as belezas dos campos e dos bosques vendo o renovar das estações, ouvindo a música das águas e dos pássaros, Rousseau prepara uma de suas obras mais importantes. E no outono de 1756 "nascem" Julia d’Etange, Clara, Saint-Preuxe, Barão d’Etange e o Senhor de Wolmar. Porém, na primavera de 1757 quando a Nova Heloísa fora iniciado, a própria Julia encarna-se na figura de Sophie d’Houdetot jovem aristocrata de 26 anos, cunhada da Senhora d’Epinay por quem Rousseau apaixona-se totalmente. Mas, além de ser casada a Sra. d’Houdetot é amante de Saint-Lambert, ao qual pretende ser fiel. Estão, portanto instalados o conflito e a paixão que inspirarão o gênio de Rousseau e transfigurarão seu romance mas não afastarão o autor de seu plano: escrever o romance de amor e de amizade, mas sobretudo do amor e da virtude que, para Rousseau, são inseparáveis. Rousseau constrói seu livro segundo a técnica do romance por cartas muito em moda na época. Faziam sucesso Cartas Persas (Montesquieu - 1721) Pâmela e Clarice Harlowe (Richardson - 1742/1751) e Cartas Portuguesas (1669). E Rousseau, conhecido como inimigo dos romances, começa a série de suas grandes obras justamente com o que seria o romance do século XVIII. Publicado em 1761, a Nova Heloísa foi modelo de muitos romances posteriores, como Werther (Goethe - 1774). De um certo ponto de vista, toda a Nova Heloísa que Rousseau vai escrever em seu retiro de Montmorence, é um romance anti-francês dirigido contra os hábitos franceses, os jardins, a galanteria, a polidez, enfim contra o espírito francês, escrito para agradar o público francês. A Nova Heloísa é em grande parte a aplicação do pensamento teórico do autor que nos dá também o espelho da sociedade da época: a vida da alta sociedade, sociedade do Valais, a de Genebra, os costumes dos lacaios, a influência inglesa na vida familiar suíça, o teatro da ópera, o balé em Paris com detalhes da sala e do palco (terceira parte, carta XXIII) a vida das diferentes classes sociais em Clarens, a administração da casa e co patrimônio (quarta e quinta partes), a vida no campo oposta a vida na cidade, a educação das crianças (quinta parte, carta III - em que temos a impressão de lermos as páginas de Emílio), comparação entre a música italiana e a música francesa, que tantas polêmicas levantou na época (primeira parte, carta XLVIII), a vida cotidiana, o vestuário, o duelo, as vindimas, o jardim à inglesa, o romântico, que começava a impor-se ao jardim clássico, o pensamento do filósofo Wolmar e sobretudo o pensamento religioso de Julia. O livro foi recebido como um dos maiores best-sellers da época. De 1761 a 1800 teve cem edições ou contrafações, número enorme para o século XVIII. Romance do pensamento de Rousseau que suas obras iriam teorizar, Nova Heloísa é a sensibilidade e o lirismo de seu autor aprofundando o tema das relações humanas, examinando ou relatando acontecimentos sobre vários pontos de vista onde o espaço físico e o espaço interior ampliados têm mais tempo para serem elaborados. Centrada na região suíça de Vaud (Vevey e Clarence esta última reunida hoje ao aglomerado de Mountreaux) mas derramando-se pelo Valais por Genebra, Paris, Londres, Roma, ela acaba englobando a terra inteira quando Saint-Preux - seu duplo - dá a volta ao mundo com a expedição do almirante George Ansom (1740 - 1744). A estrutura do romance, a ordem dos acontecimentos é determinada pela presença do orgulhoso Barão d’Etange, figura discordante dos laços de amor e amizade que ligam os personagens e oponente, mostrando que essa oposição nasce de um preconceito de ordem social: a sociedade do antigo regime estruturada em camadas sociais estanques. O pensamento Rousseauniano se faz presente enfocando que o homem é intrisicamente bom e virtuoso e a sociedade é corrompida. Numa sociedade libertina do século XVIII, quando as uniões obedeciam a interesses e quando o amor e casamento e fidelidade raramente andavam juntos, a virtude é uma das novidades trazidas pela Nova Heloísa, na verdade uma das formas de voltar em parte ao estado natural e não corrompido do homem, outro ponto fundamental da filosofia Rousseauniana. Porém, entre os temas de primeira importância, impõe-se ao da natureza exterior que já existia antes de Rousseau, mas que adquirisse toda sua importância justamente com esse romance. Uma enorme diferença separa Rousseau de seus predecessores, pois é muito grande nesses últimos o espaço ocupado pelo pensamento racional, característica do iluminismo. O sonho e o devaneio diante a natureza não existem antes de Rousseau. Ninguém antes de Rousseau realizara a fusão entre o homem e a natureza a ponto de fazer dela o conteúdo da própria consciência. O estado de alma dos personagens estão intimamente ligados à paisagem. É um "eu" que se une ao "não eu" como se ambos estivessem numa mesma essência. À estética clássica do verossímil e do mundo psicológico substitui-se a estética natural e da fusão do mundo exterior com o mundo interior, conseqüência necessária da filosofia de Locke do sensualismo, do empirismo, da importância que adquirem da época, as ciências da natureza. Sabendo que o homem não pode mais voltar ao estado natural, Rousseau coloca seus personagem num ambiente campestre, rural onde a pequena sociedade se entrega à criação, ao plantio, enfim ao enriquecimento da natureza, e não à sua destruição. Em a Nova Heloísa a montanha que nunca figurara como valor positivo na literatura, nem mesmo na vida cotidiana, invade agora o século XVIII, revelando não somente o valor estética dos Alpes, mas também o bem-estar físico e espiritual proporcionado pela montanha. Rousseau expõe assim, temas fundamentais que serão enfatizados na literatura posterior e cuja importância somente hoje é possível compreender em toda sua extensão. Mas, os seis anos que passou em Montemorency não foram apenas um idílio campestre. É tempo das grandes crises de amizade e de amor. Inicialmente, em 1756, ocorre a briga com Voltaire a propósito do "Poema sobre o desastre de Lisboa", ao qual Rousseau responde com a "Carta sobre a Providência" (1756). Depois desentende-se com Diderot, a propósito de uma frase que este insere no "Filho Natural" (1757). Enfim, explode a crise violenta e complicada em que seu amor por Madame d’Houdetot é pretexto para uma longa briga, depois uma ruptura brutal com Madame d’Epinay e mais particularmente com o amante desta, Gremim. Seguem-se seqüelas dessa grande crise: primeiramente a discussão com d’Alembert a propósito do artigo "Genebra", que este compusera para o sétimo volume de Encyclopédie (1757); em seguida, a ruptura definitiva com Voltaire: "Odeio-o", escreve-lhe, finalmente, Rousseau, em 17/06/1760. Em 1762, Rousseau publica Emílio - ou Da Educação e Contrato Social. As mesmas idéias colocadas no Discurso sobre a desigualdade servirão de abertura a "Emílio": "Tudo está bem ao sair das mãos do Autor das coisas. tudo degenera entre as mãos do homem". O "Contrato Social" não terá ponto de partida diferente: "O homem nasceu livre e, em toda parte está preso". Em Emílio, Rousseau vê o menino que ele poderia ter sido e descreve a educação que teria desejado a si mesmo. Emílio receberá uma "educação negativa", que consiste em deixar agir as forças naturais das forças e espírito sem imposição de livros e regras de castigos. Basta deixar agir a natureza: a curiosidade espontânea o levará a observar, a interessar-se, a desejar aprender e fazer. O professor deve limitar-se a eliminar os obstáculos. Primeiro, Emílio aprenderá a ler, a escrever, a contar porque compreende que isso é cômodo e útil. Também a seguir a educação positiva consistirá a orientá-lo a observar para refletir. Quanto à educação do caráter, Rousseau defende o princípio das conseqüências naturais: o menino se corrige de sua obstinação, dos caprichos, de suas leviandades, porque deverá sofrer as conseqüências. Somente aos quinze anos Emílio conhecerá a vida social, moral religiosa e a cultura sistemática. Emílio tornou-se uma das obras pedagógicas fundamentais pois, a partir de então todas as teorias pedagógicas aprenderam a levar em consideração a natureza da criança, a respeitar-lhe e secundar-lhe a personalidade. Tratando da educação religiosa, Rousseau provocou uma onda de lástima e indignação. Emílio deve aprender que existem Deus, alma, a lei moral. Seu preceptor ensina-lhe que a orientação mais certa quanto à virtude, à verdade é a voz da consciência que nos indica nossos deveres. Na quarta parte de Emílio, Rousseau escreve: "Por demais freqüentemente a razão nos engana e adquirimos todo direito de recusá-la: mas a consciência não se engana nunca, ela é o verdadeiro guia do homem, ela é para a alma o que o instinto é para o corpo, quem a segue obedece natureza, e absolutamente não teme enganar-se (...). Consciência! Consciência! Instinto divino, mortal e celeste voz, guia seguro de ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre juiz infalível do bem e do mal que torna o homem semelhante a Deus, és tu que fazes a excelência de sua natureza e a moralidade de suas ações; sem ti nada sinto em mim que me eleve acima dos animais a não ser o triste privilégio de perder-me de erro em erro, ajudado por um entendimento sem regra e de uma razão sem princípio. Diferentemente da maioria dos deístas, propagandistas de sua época, Rousseau pode-se pagar o luxo de permanecer somente no plano individual do coração e de fechar os olhos a toda a claridade estranha àquela de sua única luz interior. É porque tem felicidade de ser surdo à eloqüência dos racionalistas que pode reverter audaciosamente a situação e enterpelá-los como o faz. Mais tarde, poderá devolver à razão seus direitos, mas não antes de ter colocado sobre as bases inatacáveis desse sentimento involuntário os grandes pilares que sustentam toda a Profissão de fé: existência de Deus, existência da alma, sobrevivência desta depois da morte do corpo, e mesmo existência de regras morais e elementares governando a conduta do indivíduo. A partir daí, compreende-se que a segunda metade da Profissão de fé: a que iria provocar a proscrição e a perseguição - se dedique a refutar as pretensões de todas as religiões ditas reveladas. Para Rousseau, todas as religiões se equivalem, são inúteis, portanto, pois a única verdadeira é a religião natural e a voz interior que fala de Deus, diretamente à alma do homem. Estas assertivas pareceram, desde logo, como verdadeiras e próprias heresias. No Contrato Social, Rousseau formula uma teoria do Estado, baseado na convenção entre os homens em que defende o princípio de soberania popular. Suas idéias políticas demonstram que ele desejava reformas, tendo por isso, sido considerado como um dos homens que mais contribuíram para preparar a revolução. Mas os sonhos desse republicano genebrino e burguês saboiano, levaram as mentes suficientemente longe para que as autoridades constituídas se enquietassem. Arrumando seu mundo ideal segundo seus gostos, Jean-Jacques não criava apenas uma nova estética. Esboçava os traços de um mundo novo: aquele onde todos os Jeans-Jacques do mundo tomariam o poder, cada um por sua vez. Assim se explicam as perseguições empreendidas contra ele por ocasião da publicação de Emílio e do Contrato Social. Assim, em 9 de junho de 1762, Rousseau recebe mandado de prisão. Tendo brigado com tantos amigos influentes e com tantos protetores de prestígio, encontra-se sem defesa, sendo estrangeiro. Tomando como pretexto a audácia das idéias religiosas exprimidas em "Emílio", as autoridades francesas mandam queimar o livro. Rousseau foge e refugia-se em Môtiers na Suíça. Aí escreveu suas célebres "Lettres ecrite de le montagne" - 1764 em que ataca o governo de Genebra por ter determinado a destruição das edições do "Contrato Social" e de "Emílio". Aterrado pelas perseguições de que é objeto, alarmado pela imagem mentirosa que divulgam dele, Rousseau passará a usar a pluma quase apenas para restabelecer a verdade. Na "Carta a Beaumont", Rousseau se defende das acusações de impiedade e irreligião lançadas pelo arcebispo de Paris, Christophe de Beaumont ao censurar o livro Emílio. Nesta carta, Rousseau também resume, em várias passagens, os princípios centrais de sua filosofia. "O homem é um ser naturalmente bom". Em Genebra, seus amigos querem fazer anular suas condenações mas Voltaire incita seus adversários e reclama contra ele a pena capital. Em 1764, Rousseau recebe um panfleto anônimo intitulado "O sentimento dos cidadãos" em que o acusavam de hipócrita e ingrato. O artigo era de autoria de Voltaire. A população de Môtiers, revoltada contra ele, incitada pelo sermão hostil a Rousseau, feito pelo pastor, lapida sua casa - na noite de 6 para 7 de setembro - apedrejando as janelas de sua casa: é a célebre "lapidação". No dia seguinte, Rousseau deixa a cidade e vai para a ilha de Saint-Pierre, no largo de Biernne. Mas a influência francesa - tanto a de Voltaire quanto a da monarquia de direito divino - persegue-o ali e proscreve-o sucessivamente de todos os locais, Estados ou principados suíços. Por um decreto do governo de Berna, Rousseau foi obrigado a abandonar a ilha em 24 horas, tendo passado apenas 2 meses na ilha. "Deixaram-me passar apenas 2 meses nessa ilha, mas nela teria passado 2 anos, 2 séculos e toda a eternidade, sem me entediar um só momento (...) Considero esses 2 meses como o tempo mais feliz da minha vida(...)" Se, a partir de então, Rousseau perde um pouco o gosto de escrever, é que as perseguições oficiais de que é vítima mostram-lhe a futilidade das grandes obras doutrinais a que consagrou os 6 últimos anos de sua vida. Diante do fracasso dos sistemas que quis construir dedicar-se-á, cada vez mais totalmente às delícias da evasão que lhe oferecem a música e herborização (7ª caminhada). É então que compõe seus livros mais célebres: Confissões e Devaneios do caminhante solitário. Em 10 de outubro, após ser expulso da Ilha de Saint-Pierre, Rousseau obedece passa algumas semanas em Strasbourg e, em 4 de dezembro aceita o convite de David Hume para ir a Inglaterra. Decepciona-se com Hume que, "embora escocês, está próximo demais intelectualmente da filosofia parisiense" e apressa-se para deixar Londres. Vai para o Derbyshire a convite de Richard Davenport, onde passará 13 meses e onde acaba a primeira parte de Confissões, em que peregrina às fontes vivas de sua infância, em busca do homem natural, deixando-o em face consigo próprio. As Confissões não são seu primeiro ensaio nesse domínio. "Cartas a Malesherbers" (dezembro 1761 / janeiro 1762) e "Carta a Beaumont" (1763) representam já ensaios de explicação sistemática. Mas é preciso retraçar as diferentes etapas de sua vida espiritual, assim como descreveu o crescimento físico e moral de seu Emílio. Aguçando novamente sua sensibilidade moral, a necessidade de justificação mais de uma vez põe em movimento sua imaginação. Não sonha mais apenas com seu passado com melancolia, põe-se a construí-lo peça por peça, se necessário, quando a memória falha. Depois de passar um ano incógnito no castelo do príncipe de Conti, deixa Trye bruscamente como havia deixado Wootton. Passa dois meses a errar de Paris a Lyon e de Lyon a Grande Chartreuse onde herboriza algum tempo. Pára em Bourgoin, no Dauphiné, onde diante de testemunhas, declara desposar Thérèse. Instala-se, finalmente, a alguns quilômetros de Bourgoin, no povoado de Monquin, onde passa quinze meses. Retoma ali a segunda parte das "Confissões". Em abril de 1770, deixa Monquin, retoma seu verdadeiro nome e, embora esteja ainda sob mandado de prisão, retorna a Paris. No decorrer de 1772, na mais forte de suas crises de alucinação, põe-se a escrever os Diálogos ou Rousseau juiz de Jean-Jacques, pois suas Confissões não convenceram ninguém e lançaram-no nas trevas. Trabalhará durante quatro anos nos Diálogos. Durante esse tempo, copia música, confecciona herbáreos, compõe pequenas peças musicais. No início de 1776 termina os Diálogos, que considera a única imagem fiel, a única explicação verdadeira e completa de seu caráter e de suas obras, a resolução de todas as suas contradições e de todos seus paradoxos: uma apresentação tão completa que ele pode enfim reconciliar-se consigo mesmo. Nos Diálogos Rousseau se desdobra e coloca na boca de um francês as acusações levadas contra ele - hipocrisia, mentira, fraqueza, plágio, etc - e na sua própria, os argumentos de sua própria defesa. Vendo-se abandonado por todo o mundo, decide depositar seu manuscrito no altar de Nossa Senhora para oferecer à Providência, mas encontra a grade do coro fechada e vê ali um sinal de que mesmo Deus se recusa a ouvi-lo. Se, com a oposição das autoridades à leitura de suas Confissões. Rousseau tem provas da existência de um complô contra ele, o caráter misterioso, proteiforme desse complô cresce, ao contrário, bruscamente pela impossibilidade em que se encontra, a partir daí, de conhecer as reações do público em relação a ele. Rousseau acredita que com os Diálogos fará recuar, ao menos à posteridade imediata, o julgamento desfavorável de seus contemporâneos, se puder encontrar alguém que o compreenda e assegure, depois dele, sua defesa. Assim nasce, talvez, a idéia de uma nova justificativa. Espera, entretanto, os últimos dias bonitos do verão que termina, ou do início do outono, que eram favoráveis à paz de sua alma. Segundo toda verossimilhança, com efeito, concebe a idéia dos Devaneios por volta de setembro-outubro de 1776, em um momento de exaltação no decorrer de suas caminhadas solitárias que o faziam recuperar a alegria de viver. As dez caminhadas dos Devaneios foram redigidas em Paris de 1776 a 1778 e publicadas em 1782. Escritas para si próprio, para seu aperfeiçoamento moral e seu prazer, constituem sua obra mais sincera. Persuadido de que nem mesmo será possível transmitir à gerações futuras uma imagem exata de sua pessoa e de seu pensamento, resigna-se e enfim encontra o apaziguamento no retiro e no esquecimento dos homens. Rousseau espera a morte sem inquietação e consagra seus últimos dias a "sair da vida, não melhor, pois isso não é possível mas mais virtuoso" (III). Ao longo dos Devaneios dedica-se a um exame de consciência de uma precisão minuciosa que, mais ainda do que as Confissões, fazem-nos penetrar na intimidade de sua alma doente. Essas análises, às vezes ampliadas até a reflexão filosófica, no que diz respeito à moral e à religião (III), à mentira (IV), à felicidade (V), à bondade (VI), aos benefícios da solidão (VIII) e ao amor ao próximo (IX), revelam-nos um Jean-Jacques descontraído, mas profundamente melancólico e aflito por ter deixado escapar a vida (II). Reconhece suas fraquezas, o abandono de seus filhos, a tendência à mentira, que explica pela timidez e pela necessidade de liberdade, mas permanece convencido de sua bondade inata e protesta contra o fracasso de sua existência cuja responsabilidade recai sobre seus inimigos (II). Aqui e ali, com efeito, reaparecem as inquietações doentias e a obsessão do complô: seu esquecimento dos homens não é tão completo como ele que se persuadir (II/final). Não mais encontrando em sua imaginação esgotada pelos anos a faculdade de evasão que ela lhe ofereceria no passado, refugia-se em suas lembranças. Encanta o presente com as imagens encantadoras dos passado: imagens da felicidade que sentia na ilha de Saint-Pierre (V), encantos da herborização (VIII), prazeres puros da beneficiência (IX), lembrança enternecida de seu primeiro encontro com Madame de Warens (X). Dessas páginas luminosas, tão justamente célebres emana toda uma filosofia de felicidade, ligada à bondade original do homem: felicidade de fazer o bem ao próximo (IX), felicidade de gozar de nosso ser de acordo "com o que a natureza quis" (V). Isolado dos homens, o Caminhante Solitário procura seus maiores prazeres na natureza, a dos arredores de Paris, ou a que ele reencontra em suas lembranças. A natureza que evoca nos Devaneios não é mais o cenário irregular da montanha (A Nova Heloísa/ Confissões), é, sobretudo, uma paisagem moderada e "risonha", à beira de um lago com suas águas frescas e seus tufos de verdura (V), o apaziguamento que Saint-Preux pedia ao ar das montanhas; a seus gostos simples ela fornece as sãs atividades rústicas (V), já cantadas no Emílio e na Nova Heloísa; enfim, à sua alma de artista ela oferece o encanto de seus conjuntos variados, de suas linhas harmoniosas, ou ao contrário, a perfeição minuciosa que ilumina o botânico (V). Rousseau não se preocupa em descrever como espectador o pitoresco desse cenário. Pinta, ele próprio em sua comunicação com a natureza: é sensível sobretudo às vibrações que ela desperta em seu coração (V), às harmonias entre a paisagem de outono e sua alma melancólica (II), aos êxtases que o aproximam de Deus (V). O devaneio proporciona a Rousseau esse "enlevo enespremível" que consiste em fundir-se no "sistema dos seres" e a "identificar-se com a natureza inteira" (V). A filosofia que Rousseau nos mostra em Devaneios coincide com o movimento de sua vida interior. O devaneio em Rousseau não é apenas um estado de alma do poeta: permite-lhe "despreender-se" dos mundos dos desejos que o condena à ação e à preocupação. Recusa de um pensamento sistemático em proveito do devaneio, gosto pela esfera do privado, adesão ao presente, prevalência da autonomia do "eu", paixão por uma natureza que requer exame minucioso e discrição, exaltação da festa espontânea: tais são os caracteres dos "Devaneios" que podem ser considerados como uma obra maior da literatura francesa. Na primavera de 1778, Rousseau deixa Paris pela última vez, atendendo
a um convite do Marquês d’Girardim, e instala-se com Thérèse
em Ermenonville. Morre inesperadamente no dia dois de julho, com sessenta
e seis anos de idade.
Outubro / 2001
Bibliografia
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