Volta
Sonhos de um
monstro solitário: Jean-Jacques Rousseau e Frankenstein, de Mary
Shelley
Cristina Maria Teixeira Martinho
Universidade
Severino Sombra - RJ
Un
homme abandonné seul sur la face de la terre, a la merci du genre humain,
devoit être un animal feroce.
Jean-Jacques
Rousseau
O maior paradoxo e o resultado mais surpreendente
do romance de Mary Shelley é o fato de o monstro ser mais humano do que seu
criador. Esse ser sem nome, que é tanto um Adão moderno, quanto seu criador
é um Prometeu moderno, é mais admirável e mais digno de ódio do que aquele
que o criou, mais digno de piedade e de medo, e sobretudo, mais capaz de
propiciar ao leitor atento uma intensa percepção do significado do poder
individual
Harold Bloom
É tempo de nos perguntarmos como uma
história pessoal, dramática, tensa, cheia de fantasmas, pode se
apoderar de acontecimentos e de idéias de uma época na qual uma
jovem, ainda quase adolescente, inventa, escreve e publica a obra mais
transgressora, célebre, instigante e duradoura do século XIX. Embora
inicialmente um fracasso de crítica, o livro Frankenstein (1999)
jamais deixou de ser publicado, sendo traduzido em diversas línguas,
adaptado para teatro, tematizado em outros romances, chegando até o sucesso
cinematográfico, no século XX. Surpreendente é o volume de conhecimento
demonstrado pela autora inglesa, Mary Shelley, com referências a diversos
campos de literatura, ciência, educação, poesia, política e
mitologia.
Mary Shelley tem uma vida pessoal bastante
dramática. Isolada em sua infância, relegada pela família após sua fuga e
envolvimento com o poeta Percy Bisshe, seu futuro marido, perde três filhos
ainda bebês e aos vinte e quatro anos já está viúva. Encontra no discurso
escrito uma forma objetiva de restaurar suas forças. As perdas pessoais
constantes formam um tema bastante explorado nos enredos, no tom e nos
símbolos que utiliza em suas obras. Este padrão de imolação e destruição
afeta as relações humanas, pois todos os seus personagens ou se alienam
destes relacionamentos ou tentam desesperadamente estabelecer elos de
amizade. O resultado é a desilusão. A morte prevalece em todos os seus
trabalhos ficcionais: a morte das crianças, da raça humana, o isolamento
dos que estão morrendo ou o lamento dos vivos. Ela publica seis
romances, duas peças, dezessete historietas, dois dramas mitológicos,
numerosas resenhas, livros de viagem – raramente mencionados em antologias.
Registra todas as suas impressões do dia-a-dia, com uma visão
essencialmente feminina, a falar de solidão, de problemas ocasionados por
gestações difíceis, de doenças periódicas, da constante preocupação de uma
mulher com a família.
Nestes quase duzentos anos, Frankenstein
foi uma obra manipulada, modificada, parodiada, de acordo com diferentes
interesses ideológicos. O nome Frankenstein, que pertence ao pesquisador,
passou a ser o referente que designa a própria criatura, um erro que, na
opinião de Harold Bloom (1986), deriva, na realidade, da leitura
intuitivamente certa que se faz da obra. Na época de sua publicação,
1817, suscitou o imediato interesse do público. A imagem do monstro,
descarregando sua vingança sobre a humanidade, persegue e assombra leitores
e, desde a primeira versão cinematográfica, feita em 1910, também os
adeptos do cinema. Infelizmente, a imagem do terror monstruoso que o cinema
tornou tão familiar é somente uma parte insignificante de uma obra
provocadora que não recebeu, por parte da crítica, a devida apreciação.
Mary Shelley utiliza as
idéias de Jean-Jacques Rousseau para articular uma epistemologia
filosófica que demonstra o fracasso da simpatia, da convivialidade, da
tolerância em Frankenstein, dramatizando questionamentos sobre
identidade, semelhança, diferença e linguagem. É meu objetivo, neste
trabalho, apresentar algumas idéias sobre a grande influência exercida pelo
filósofo francês, tanto na vida pessoal, quanto na intelectual da autora
inglesa. Os pensamentos e sentimentos do monstro, em Frankenstein,
representam uma interpretação temática e encenam diálogos com e através de
Rousseau. Mary Shelley reflete sobre as idéias desenvolvidas no século
XVIII e encena uma atuação ambivalente dos sentimentos morais e estéticos
em voga.
Ao assumir que todo o mito elabora um
plano psíquico atemporal, uma leitura menos profunda reduz a história de
Victor Frankenstein a uma simples parábola sobre os eternos dilemas da
condição humana: a maldição do mal inato e inerente ao homem e/ou a agonia
da descoberta da autoconsciência. Mas não devemos entender que a obra de
Mary Shelley, bem como a de outros escritores deste período, avaliem apenas
a bondade inata do ser humano; apenas deixam entender que o ser
humano pode extrapolar os liames da sociedade, da civilização, da dominação
política e da hipocrisia religiosa. O otimismo ou pessimismo que
caracteriza os visionários e os marginalizados abre a possibilidade de uma
refração ao mundo.
Reagindo
aos dogmatismo do iluminismo, a Estética e o pensamento românticos são
irracionalistas, marcado por contradições, entre as quais a reverência à
glória pessoal e o culto da apatia. Vários estudos sobre a individualidade,
arrolados por Paul Hoffman (2000), apontam para esta dissociação, sob a
ótica da subjetividade. Temos assim o tema do duplo, a divisão e
fragmentação do eu. Estes valores românticos perpassam na voz de Victor
Frankenstein em numerosas ocasiões, como também na voz do monstro. Longas
passagens declamatórias expõem temas como a injustiça da sociedade, a
desigualdade da riqueza e a necessidade de mudanças no campo privado e no
público que ele reconhece seu semelhante como um ser sensível,
pensante e igual a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar-lhe
seus sentimentos e pensamentos fazem-no buscar meios para isso. Gestos e
vozes encenam a expressão e a comunicação, e a linguagem nasce das diversas
necessidades: a fome, a sede, o abrigo, a proteção, a defesa contra as
intempéries, os animais e outros homens mais fortes. Esta realidade leva à
criação de palavras, forma um vocabulário elementar e rudimentar, que,
gradativamente mais complexo, transforma-se numa língua; a linguagem
nasce das emoções, particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do
choro (dor, medo, compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). As
idéias de Rousseau, em seu “Ensaio sobre a origem das línguas”, são
categóricas:
Não é a fome
ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros
homens lhes arrancaram as primeiras vozes… Eis por que as primeiras línguas
foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas.
[...]
Assim, a linguagem, nascendo das
paixões, foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e
canto, tornando-se prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das
consoantes. Assim como a pintura nasceu antes da escrita, assim também os
homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus
pensamentos. (1986, p. 260).
Neste
ensaio, Rousseau explicita a origem da linguagem figurada ligada à corrente
da simpatia e da compaixão. Argumentando sobre a relação entre elas, o
filósofo salienta o papel da linguagem como parábola, citando a metáfora
com seu duplo sentido. A partir destas idéias, podemos ler a história
do monstro de Mary Shelley. Vivendo isolado, escondido, e olhado sem o
sentimento humano de amizade e pertença social, é considerado um monstro,
uma criatura de outra espécie. Solitário entre a humanidade, buscando um
refúgio contra a barbárie humana, ele chega a uma cabana onde mora uma
família também exilada do convívio social: os de Lacey. Neste
lugar, ele apreende noções sobre os relacionamentos familiares entre
as conversas do pai cego De Lacey, a filha Agatha, o filho Felix e a noiva
Saphie.
A jovem noiva de Felix é estrangeira e
aprende a falar francês, a língua que eles utilizam. Todos vivem numa
região de fala alemã, e tudo é passado para o leitor em inglês. Esta
verdadeira Babel lingüística realça o problema da linguagem como
instrumento de transmissão e de comunicação entre os seres humanos.. O
monstro aprende a linguagem através dessa família; começa a falar e a
pensar através das instruções que Félix e Agatha passam a Safie. Embora não
participe fisicamente do grupo, pois vive num cubículo, de onde
consegue ver a família através de um orifício na parede, a criatura
consegue decifrar o alfabeto e aprender a ler, meios pelos quais poderá
tentar, futuramente, estabelecer relações com os membros da comunidade
humana. Encontra alguns livros importantes em seu processo de educação.
As vidas paralelas, de Plutarco, Os sofrimentos do jovem Werther,
de Goethe, e O paraíso perdido, de John Milton. São obras que se
referem ao nível público, privado e cósmico, apresentando três modos de
agir, de amar e de encarar a vida. Com Goethe , a criatura aprende sobre o
amor e o sofrimento; com Plutarco, sobre deveres e responsabilidades civis
como representados nas nações antigas. Com Milton, a narrativa dos
desígnios divinos relativos à criação do homem. Todas estas leituras
questionam a noção de identidade, e das três, a que mais lhe chama a
atenção é O Paraíso Perdido, que o monstro interpreta como um emblema
de sua situação.
Inicialmente, sente-se como um tipo de
Adão, sem família, sem relações, sozinho no mundo. Depois, considera-se
mais semelhante à figura de Satã, o ser marginalizado. Ao encontrar o
diário de Victor Frankenstein, descobre o mistério de sua origem,
pois o cientista anota todos os passos de sua experiência: um processo
científico de criação, não um mito de origem, mas um relato grotesco que
explica sua identidade, constituída a partir de várias partes de cadáveres.
Sua situação não padroniza a forma humana da representação; podemos melhor
compreendê-la, quando Rousseau, argumentando que a primeira linguagem
é figurativa, explicita:
Um homem
selvagem, encontrando outros, inicialmente ter-se-ia amedrontado. Seu
terror tê-lo-ia levado a ver esses homens maiores e mais fortes do que ele
próprio e a dar-lhes o nome de gigantes. Depois de muitas experiências,
reconheceria que, não sendo esses pretensos gigantes nem maiores nem
mais fortes do que ele, à sua estatura não convinha a idéia que a
principio ligara à palavra gigante. Inventaria, pois, um outro nome comum a
eles e a si próprio, como, por exemplo, o homem e deixaria o de gigante
para o falso objeto que o impressionara durante sua ilusão. Aí está como a
palavra figurada nasce, antes da própria, quando a paixão nos fascina os
olhos e a primeira idéia que nos oferece não é a da verdade. [p. 267]
No
Ensaio sobre a origem das línguas,
Rousseau descreve o ato de ativar a piedade pelo transporte da imaginação e
a identificação:
A piedade,
ainda que natural ao coração do homem, permaneceria eternamente
inativa sem a imaginação que a põe em ação. Como nos deixamos emocionar
pela piedade? — Transportando-nos para fora de nós mesmos,
identificando-nos com o sofredor.
Este ato de
identificação que acompanha a imaginação e a reflexão é a pré-condição para
o sentimento em relação ao outro.Como poderia sofrer vendo outro sofrer, se
nem soubesse que ele sofre? Se ignoro o que existe de comum entre ele e
mim? [... ]. A reflexão nasce das idéias comparadas.
(Ibidem, p. 273)
Sem este ato de comparação o homem está só
em meio ao gênero humano; não sente mais do que a si próprio. Não tem
a habilidade de perceber semelhanças e de compreender que partilha o mundo
com o seu semelhante. Aproxima-se do homem em seu estado primitivo
Aplicai
essas idéias aos primeiros homens e encontrareis os motivos de sua
barbárie. Sempre vendo tão-só o que estava a sua volta, nem mesmo isso
conheciam nem sequer conheciam a si próprios. Tinham a idéia de um pai, de
um filho, de um irmão, porém não a de um homem. Sua cabana continha
todos os seus semelhantes; para ele, era a mesma coisa um estrangeiro, um
animal, um monstro. Além de si mesmos e de sua família, todo o universo
nada significava para eles. [Ibidem, p. 288]
Neste quadro apresentado por
Rousseau, podemos ler a história do monstro de Mary Shelley.
Encontramos diversos conflitos subjacentes entre a retórica do livro e os
acontecimentos do enredo. Em seu entusiasmo pela ciência, e no desejo utópico
de ajudar a humanidade, Victor julga-se um benfeitor. Não pensa em sua
experiência como uma tarefa repulsiva. Mas, ao dar vida à criatura, sente
asco e repulsa, que se desenvolvem à medida que a história prossegue.
Considera que a má sorte que o acompanha, desde o momento em que a criatura
passa a viver, é uma retribuição por suas atitudes contrárias à natureza.
"Senti como se tivesse cometido algum crime", diz ele. Esta
ambigüidade se estende ao monstro, que em alguns momentos se mostra possuidor
de uma retórica eloqüente e, em outros, comete atrocidades, sugerindo um
grau de ambivalência moral. Frankenstein tenta transcender-se naquela
criatura, criando algo melhor e que fosse o seu reflexo. Mas encarar o
nosso reflexo é difícil e perigoso, embora necessário. O jovem cientista
não consegue ver a si mesmo refletido nos olhos baços e amarelos do
monstro. Há um vínculo indissolúvel entre os dois; durante a maior parte do
romance, a criatura procura pelo criador, visando uma aproximação ; mais
tarde, após a morte da noiva do jovem médico, é o criador que passa a
perseguir a criatura. A criatura é feita para o encontro. Refletindo mais
uma vez sobre as idéias de Hoffman, (2000), para o homem, o corpo é o
limite através do qual o sujeito encontra o outro, dialoga, busca e sente o
outro. Para o monstro, o corpo é um obstáculo, uma barreira negativa, que o
impede de encontrar o outro e de ser encontrado e compreendido por ele.
Victor Frankenstein é da mesma cidade de
Rousseau, uma coincidência que pode ser acidental. Vislumbramos ecos das
idéias do filósofo, como a semelhança do monstro com o noble sauvage.
O longo texto que fala da educação, tão discutido pela crítica, deve ser
compreendido dentro do padrão da filosofia do sentimento. Mary Shelley
inverte estas convenções: a educação da criatura tem um propósito. Ela é
instintivamente benevolente no início, capaz de reconhecer o bem utilizando
apenas seus sentidos e aprende a distinguir, sem grande esforço, a virtude
do erro. Mas depois, estes princípios educacionais, embora o tornem mais
humano, não o fazem virtuoso.
Toda a sensibilidade da criatura
desaparece depois do episódio da fuga dos De Lacey, Felix retorna à cabana
e, ao ver pela primeira vez a criatura ao pé do pai, foge
horrorizado. Pouco depois, a família abandona o local. A criatura permanece
solitária, sem atinar com seu destino estranho. Chegando à beira de um
riacho, observa seu rosto. Compreende sua diferença. A exclusão do
social a deixa, então, desobrigada às leis do ser humano. O nobre selvagem,
de Rousseau, uma figura popular, com sensibilidade espontânea,
facilmente corrompida pelo homem civilizado, é o padrão modificado pela
autora. Ao demostrar ser o homem virtuoso maltratado pela civilização, ela
reforça a crítica contra as instituições humanas. Sem negar a possibilidade
de existir uma benevolência natural, Mary Shelley considera que a atração
espontânea buscada pelo ser humano, como a bondade, é insuficiente se o
homem não tiver o apoio da moralidade e das convenções .
Gigante, monstro, criatura demoníaca serão
os termos que metaforizam o outro, o diferente. Usando termos e fórmulas
cuja origem se encontra na Filosofia e na Estética, Mary Shelley
focaliza a epistemologia e questiona itens como identificação, semelhança,
igualdade e diferença. Frankenstein é a história da negação da
amizade; dramatiza a transgressão, o grotesco e os limites da natureza, nos
reporta Margaret Homans (1989). Apesar da desfiguração do gigante, pode
alguém reconhecer o homem no painel de sua humanidade? Como avaliar, neste
quadro, a figura com características comuns aos homens? Como estabelecer as
fronteiras entre o homem e o monstro? Por que dar uma forma
grotesca ao ser feito conforme a sua imagem, se o jovem médico, obcecado
com os segredos da humanidade, faz inúmeros estudos sobre a estrutura
humana? São algumas questões instigantes analisadas no excelente estudo
feito por Bárbara Johnson (1982) ao argumentar sobre problemas de
gênero, de maternidade ligadas à obra. E são, também, perguntas identificadas
com as idéias sobre a linguagem figurada do filósofo francês.
Mas a humanidade não é benevolente para
com a criatura; ninguém vislumbra a nobreza de sentimentos por trás
daquela aparência grotesca. As pessoas atacam-na, ferem-na, com pedras,
paus e até tiros. O ser criado pelo cientista Victor Frankenstein é o
primeiro de todos os alienígenas que aparecerão posteriormente na
ficção científica e que os terráqueos irão atacar, antes mesmo de
estabelecer uma tentativa de comunicação. Também é o primeiro dos mutantes
que “acabaram sobrepujando os povos da cultura dominante, mas são
rejeitados porque são diferentes”, afiança Harold Bloom (1986, p. 13).
O desejo de criar a vida humana é um
desejo transgressor. A punição por esta transgressão é metaforizada na criatura,
que se mantém na ambivalência da semelhança e da alteridade. Sua situação é
melhor resumida quando ela mesmo relata seus problemas de identidade:
"Achava-me semelhante e, ao mesmo tempo, estranhamente diferente dos
seres sobre quem eu lia e de cuja conversa eu era ouvinte." (F.
p.124) Ao perceber esta ambigüidade, o monstro compreende que sua
presença atualiza uma ameaça para o sistema dos significantes humanos, para
as figuras metafóricas diante do homem que não sabe decodificar e compreender
esta semelhança.
Maldito
criador! Por que você me fez um monstro tão horroroso que até mesmo você
foge de mim repugnado? Deus, em sua piedade, fez o homem belo e atraente,
segundo sua própria imagem, mas a minha forma é uma asquerosa contrafação
da sua, mais horrível ainda quando comparada com a sua. (F. p. 126)
Rousseau sugere que somente a
simpatia, somente a percepção da semelhança revela o que um homem tem em
comum com os outros homens, e permite que um reconheça os outros como
seu semelhante e não como monstros, gigantes ou estranhos; somente
reconhecendo o outro como seu semelhante pode o ser humano socializar-se e
evitar o comportamento de um monstro. Jean Starobinski (1991) reforça esta
tese e defende a postura de Rousseau distante daquele individualismo
que supõe uma antítese entre o ser particular e a coletividade,
estabelecendo o valor do humano enquanto indivíduo social e não apenas
enquanto homem. Reivindica a consciência da dignidade do homem em geral e
ilumina o valor universal da personalidade humana, cuja consciência moral
não se traduz no sentimento particularista do amor-próprio, mas na
universalidade do amor de si.
A natureza, o mundo externo, a índole
humana e o “eu” são questões instigantes em Frankenstein. À medida
que as personagens estão às voltas com estes problemas ontológicos, Mary
Shelley apresenta respostas indiretas. A criatura insiste em dizer que a
sua natureza é inocente e benevolente. Ao se ver face a face com Victor
Frankenstein, “Eu era benévolo, bom; a desgraça tornou-me um
demônio”. (F.p.97) Ao final de sua narrativa autobiográfica, reforça: “Meus
vícios são filhos de uma solidão forçada que eu abomino, e necessariamente
minhas virtudes crescerão quando eu passar a viver em comunhão com um ser
igual a mim”. (F. p.143) Victor, por outro lado, sempre enfatiza o
lado negativo da criatura, um “Monstro odioso! Demônio! As torturas
do inferno serão o castigo muito suave para os teus crimes. Desgraçado
demônio!”. (F. p.96)
A questão da percepção é simbolicamente
realçada quando a criatura descreve seus sentimentos ao se ver pela
primeira vez:
Como eu
ficava apavorado quando me via refletido num lago transparente! Primeiro,
eu recuara, incapaz de acreditar que era realmente eu quem se refletia no espelho.
Quando acabei convencendo-me de que era realmente aquele monstro,
experimentei as mais amargas sensações de abatimento e mortificação. (F. p.
109)
Nesta passagem fica clara a sugestão de
que a identidade é um processo ligado não somente ao ato de saber e
reconhecer, mas ao de ver. Mesmo que a criatura não seja capaz de
reconhecer, a visão o convence de sua monstruosidade. Todas as personagens
— Victor Frankenstein, a criatura e o capitão Robert Walton —
interagem através de uma construção semiótica: lêem sua feição e
interpretam a aparência com um sentido determinado. Victor constrói
respostas arbitrariamente. Ao ver a forma gigantesca aproximar-se pela
região de Mar de Glace, observa que “sua figura quase sobrenatural o
tornava por demais horrível aos olhos humanos”. (F. p.96) A criatura
resiste a essa leitura negativa. Victor novamente a rejeita, com mais
violência, e diz: “Vai-te! Livra-me da visão de tua forma odiosa”. No mesmo
instante ela responde: “Assim eu te livro, meu criador – disse ele
colocando as mãos abomináveis sobre os meus olhos, o que eu repeli com
violência”. (F. p.96) Todos consideram-na demoníaca, cruel, perversa.
Quando Félix, Agatha e Safie a vêem pela primeira vez, ficam atônitos:
Quem pode
descrever o horror de que foram tomados quando me avistaram? Agatha
desmaiou. Safie, incapaz de atender a amiga, correu para fora. Félix
avançou e, com uma força sobrehumana, afastou-me do pai, a cujos joelhos eu
me abraçava. Num transporte de fúria, ele me jogou ao chão e bateu-me violentamente
com um pau. (F. p. 130)
Os olhos infantis de William Frankenstein
também mostram repulsa e temor, quando a criatura o abraça: o menino
gritando diz: “Solte-me! Monstro! Bicho feio! Você quer me comer e me
matar. Você é um bicho. Solte-me ou chamarei meu pai”. (F. p.137) Somente
duas personagens não interpretam a criatura como maligna. O velho cego De
Lacey ouve seu eloqüente discurso enquanto a criatura está ajoelhada a seus
pés, e compreende a verdade quando ela diz:
Minhas
intenções são boas até aqui, minha vida tem sido inofensiva e, até certo
ponto útil. Mas um preconceito fatal vela seus olhos e, onde eles deveriam
ver um amigo bondoso e imbuído de bons sentimentos, vêem apenas um monstro
detestável. (F. p.129)
A isto De Lacey responde:
“Sou cego
e não posso vê-lo. Mas há qualquer coisa em suas palavras que me dizem que
você está sendo sincero. Sou pobre, um exilado, mas terei um imenso prazer
em poder ser útil de qualquer modo a uma criatura humana” (F. p. 129).
E Robert Walton, após ouvir o
relato autobiográfico, não a rejeita. Confrontando a criatura pela primeira
vez depois da morte de Victor Frankenstein, o capitão ouve seu relato e
confessa. “Jamais contemplei coisa tão horrível quanto o seu rosto, tão
hedionda e tão apavorante. Fechei os olhos involuntariamente e procurei
lembrar-me do que deveria fazer em relação àquele assassino”. (F. p.208)
Ao saber que a criatura sente remorso,
diz: “Meu primeiro impulso, que foi o de destruí-lo, em atenção ao pedido
de meu amigo, na hora de morrer, foi sustado por um misto de curiosidade e
compaixão”. (F. p. 208). Mas o capitão Walton não chega a emitir o seu
julgamento. Depois que o monstro faz uma defesa vibrante de sua existência,
ele nada diz. Nas últimas sentenças do manuscrito, ele perde de vista a
criatura “nas trevas e nas distâncias da neve”.
A linguagem provou ser ineficaz para
permitir a sua entrada na cadeia da existência, no processo histórico,
deixando-o completamente consciente sobre sua origem única e maldita. A
linguagem passa a compor uma metonímia de significantes entre o expressivo
desejo de ser reconhecido e a necessidade de viver as relações que lhe são
negadas. Sua eloqüência aparece logo nas primeiras palavras que ele troca
com Victor, quando controla as antíteses e oxímoros que expressam o pathos
de sua existência:
Lembra-te
de que fui criado por ti; eu devia ser o teu Adão, porém sou mais o anjo
caído, a quem tiraste a alegria, por crime algum cometido. Por toda a parte
vejo reinar a alegria da qual estou excluído. Eu era benévolo, bom; a
desgraça tornou-me um demônio. Faze-me feliz, e tornarei a ser virtuoso.
(F., p. 97)
A criatura sabe muito bem que sua tragédia
não estará explicada se a representação enfocar apenas o efeito do horror.
"Como poderei sensibilizar-te?", pergunta a Victor. "Será
que nenhuma súplica faz com que olhes com benevolência para a tua criatura,
que implora tua bondade e compreensão?" (F. p.97) Ele coloca as mãos
sobre os olhos de Victor a fim de atrair a atenção para a sua história,
pois "assim eu te impeço de ver algo que abominas. E, no entanto, não
podes ouvir-me e conceder tua compaixão. Pelas virtudes que uma vez possuí,
exijo isso de ti. Escuta minha história". (F., p.98).
Frankenstein
pode ser considerado uma parábola sobre o fracasso das relações de
cordialidade e amizade. Desde o início, as cartas de Walton para a irmã,
Mme de Saville, estão cheias de afirmações sobre o sentido desta
necessidade. Walton chega a dizer:
Eu desejo
a companhia de um homem que partilhasse comigo, cujos olhos refletissem os
meus olhos. Pode ser que você me considere romântico, minha querida irmã,
mas sinto amargamente a necessidade de ter um amigo. (F. p.18)
Walton lastima não haver amizade entre
aqueles que com ele convivem no navio e, quando Victor Frankenstein o
aborda, sente afeição pelo desconhecido. Grande parte da narrativa mostra
as declarações de sentimentos que sugerem o interesse da autora em enfocar
o problema da amizade.
É a criatura, contudo, quem está mais ligada
a este tema, descrevendo-se como feita para a vida e a comunidade. Seu
comentário sobre as sensações, enquanto observa os De Lacey, parecem-se com
uma citação de qualquer tratado de filosofia moral, tão numerosa no século
XVIII:
Assim
passei o inverno. As maneiras gentis e a beleza dos camponeses daquela casa
granjearam a minha afeição. Eu me sentia deprimido quando eles estavam
infelizes, e partilhava de sua alegria quando eram felizes. (F. p. 108)
Logo, ouve palavras ligadas à filosofia da
época:
– Não se
desespere. Não ter amigo é de fato uma infelicidade. Mas o coração dos
homens, quando isento de egoísmo total, é pleno de amor e caridade. Confie,
pois, em suas esperanças, que não lhe hão de decepcionar, se tais amigos
forem bons e amáveis. (F. p. 105)
Victor fabrica uma figura feminina,
a futura companheira da criatura. Horrorizado diante do quadro que se
esboça, causado pela combinação estranha entre semelhança e diferença, e resultante
de uma leitura da figura como um monstro, ele destrói o monstro-mulher,
impedindo a possibilidade de o monstro ter uma vida comum. A destruição
desta nova criatura, a quem ele considera tão semelhante ao real, incorre
diretamente no assassinato de Elizabeth, sua noiva, na noite de seu
casamento. Assim, Victor Frankenstein destrói, simultaneamente, a amizade,
a solidariedade, a fraternidade e a união sexual construídas a partir das
relações de semelhança entre os homens. Os padrões do real se invertem e
protagonizam uma paródia de todas as idéias filosóficas da emoção e da
percepção, que são elos necessários à vida em sociedade.
Victor Frankenstein, embora não tenha
transgredido nenhuma lei social ou moral, violou valores sagrados que
catalizam o objeto numinoso. A conquista da natureza foi conseguida com um
alto custo. O restante do texto configura o resultado deste ato
inicial de sacrilégio, operando nos eixos da realidade. Victor sofre um
colapso mental, perde um irmão, sente-se culpado pela morte de Justine. O
capítulo X descreve o encontro entre o criador e a criatura, representando
uma espécie de microcosmo do impulso numinoso da história. Na região de
Montanvert, Victor resolve subir ao pico do grandioso Mont Blanc. A
cena que o cerca é magnífica e realça o aspecto sublime que, embora
estéril, reforça o sentido do mysterium tremendum e relembra
diversas passagens do filósofo francês:
O silêncio
solene dessa gloriosa sala de recepção da imperial natureza era apenas
quebrado pelo burburinho das ondas ou de algum grande fragmento, (...)
estes cenários sublimes e magníficos proporcionam-me o maior consolo que eu
era capaz de receber. Elevavam-me dos pensamentos mesquinhos e, embora não
removessem minha dor, de algum modo tranqüilizavam-na. (F.p. 93)
Victor vivencia o sentimento de
êxtase, diante de elementos sublimes, mas logo dissipa-se abruptamente
quando ele percebe a forma gigantesca do monstro que caminha em sua
direção. Esta visão produz uma sensação de estupor e marca o contraste entre
o sagrado e o profano. A beleza das montanhas, sobrenaturais e sinistras, a
esterilidade das árvores e das rochas, a qualidade insólita da geleira
provocam as vibrações de harmonia e de contrastes do numinoso.
No encontro de Victor e de sua criatura,
Mary Shelley intensifica o contraste entre as duas personalidades, mas
deixa o leitor com um certo sentimento de simpatia parcial em relação ao
monstro que, por sua vez descreve suas andanças e aventuras no mundo dos
homens, projetando um sentido de humanidade, mas de uma espécie doentia e
fatídica. Victor sente comoção no primeiro encontro, durante alguns
momentos, mas depois sente ódio e horror. Perseguido por todos que o vêem,
por causar medo e aversão, a criatura chega a odiar a humanidade; mas logo acrescenta
que ainda é capaz de expressar sentimentos de bondade. “Eu era benévolo,
bom; a desgraça tornou-me um demônio. Faz-me feliz, e tornarei a ser
virtuoso”. (F. p.97)
Ser sem espécie, indivíduo radical, o
monstro de Mary Shelley questiona as motivações de seu criador, não lhe
concedendo nenhuma autoridade apriorística e, por fim, triunfa sobre sua
vida. Mary Shelley estabelece seu próprio sistema epistemológico através da
ironia das personagens masculinas. Usa os núcleos domésticos de
Frankenstein e De Lacey como modelos, uma vez que, nestes, o respeito
filial independe de dogmas, mas advém de uma educação sentimental para a
liberdade adequadamente equilibrada pelo bom cumprimento dos deveres
paternos de proteção, bem-estar e afeição. A influência de Jean-Jacques
Rousseau é patente principalmente quando ela ficcionaliza a civilização e
seus descontentes, revoltando-se contra as amarras sociais, individuais e
familiares, em termos realistas. Frankenstein foge de uma
poética ideológica, e ao apontar a derrota de uma sociedade empírica,
cria visionários e dissidentes incapazes de epifanicamente resgatar e
redimir suas visões de mundo. No mesmo século marcado pelo ressurgir de
ideologias e utopias em que o homem descobre-se com suas potencialidades,
engajando-se em processos sociais, humanos e viabilizando diversos
conhecimentos, Frankenstein ficcionaliza um imaginário que apresenta
a inconsistência fundamental causada por tantas contradições advindas do
individualismo e da subjetividade e de seus desdobramentos. Mary Shelley
opera essa transição, ao instaurar no próprio homem – físico , moral,
mental, o espaço a ser transgredido, um ícone da multiplicidade de
referentes para a civilização.E, ao operar essa transição, agrega os
princípios psicológicos das personagens. Experiência
dos extremos, a obra representa uma consciência exacerbada por
aspectos recalcados organizadores da representação mental do imaginário.
Figurações escatológicas e apocalípticas servem de referente para uma
identidade pessoal vinculada ao nível político, filosófico, científico e
histórico. É uma obra que otimiza a dialética reveladora dos valores
travestidos e mascarados da sociedade patriarcal no agenciamento do
comportamento dos seres humanos.
Referências
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Sympathy – Marivaux, Diderot, Racine and Mary Shelley. Chicago:
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SHELLEY, Mary W. Frankenstein: Or,
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STAROBINSKI, J. Jean
Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo. São Paulo:
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