Volta

 

Sonhos de um monstro solitário: Jean-Jacques Rousseau e Frankenstein, de Mary Shelley

 

Cristina Maria Teixeira Martinho

Universidade Severino Sombra - RJ

 

 

Un homme abandonné seul sur la face de la terre, a la merci du genre humain, devoit être un animal feroce.

Jean-Jacques Rousseau

 

O maior paradoxo e o resultado mais surpreendente do romance de Mary Shelley é o fato de o monstro ser mais humano do que seu criador. Esse ser sem nome, que é tanto um Adão moderno, quanto seu criador é um Prometeu moderno, é mais admirável e mais digno de ódio do que aquele que o criou, mais digno de piedade e de medo, e sobretudo, mais capaz de propiciar ao leitor atento uma intensa percepção do significado do poder individual

 Harold Bloom

 

É tempo de nos perguntarmos como uma história pessoal,  dramática, tensa, cheia de fantasmas, pode se apoderar de acontecimentos e de idéias de uma  época na qual uma jovem, ainda quase adolescente, inventa, escreve e publica a obra mais transgressora, célebre, instigante e duradoura do século XIX.  Embora inicialmente um fracasso de crítica, o livro Frankenstein (1999) jamais deixou de ser publicado, sendo traduzido em diversas línguas, adaptado para teatro, tematizado em outros romances, chegando até o sucesso cinematográfico, no século XX. Surpreendente é o volume de conhecimento demonstrado pela autora inglesa, Mary Shelley, com referências a diversos campos de literatura, ciência, educação, poesia, política  e mitologia.

Mary Shelley tem uma vida pessoal bastante dramática. Isolada em sua infância, relegada pela família após sua fuga e envolvimento com o poeta Percy Bisshe, seu futuro marido, perde três filhos ainda bebês e aos vinte e quatro anos já está viúva. Encontra no discurso escrito uma forma objetiva de restaurar suas forças. As perdas pessoais constantes formam um tema bastante explorado nos enredos, no tom e nos símbolos que utiliza em suas obras. Este padrão de imolação e destruição afeta as relações humanas, pois todos os seus personagens ou se alienam destes relacionamentos ou tentam desesperadamente estabelecer elos de amizade. O resultado é a desilusão. A morte prevalece em todos os seus trabalhos ficcionais: a morte das crianças, da raça humana, o isolamento dos que estão morrendo ou o lamento dos vivos. Ela  publica seis romances, duas peças, dezessete historietas, dois dramas mitológicos, numerosas resenhas, livros de viagem – raramente mencionados em antologias. Registra todas as suas impressões do dia-a-dia, com uma visão essencialmente feminina, a falar de solidão, de problemas ocasionados por gestações difíceis, de doenças periódicas, da constante preocupação de uma mulher com a família.

Nestes quase duzentos anos, Frankenstein foi uma obra manipulada, modificada, parodiada, de acordo com diferentes interesses ideológicos. O nome Frankenstein, que pertence ao pesquisador, passou a ser o referente que designa a própria criatura, um erro que, na opinião de Harold Bloom (1986), deriva, na realidade, da leitura intuitivamente certa que se faz da obra. Na época de sua publicação, 1817,  suscitou o imediato interesse do público. A imagem do monstro, descarregando sua vingança sobre a humanidade, persegue e assombra leitores e, desde a primeira versão cinematográfica, feita em 1910, também os adeptos do cinema. Infelizmente, a imagem do terror monstruoso que o cinema tornou tão familiar é somente uma parte insignificante de uma obra provocadora que não recebeu, por parte da crítica, a devida apreciação.

Mary Shelley utiliza as idéias de Jean-Jacques Rousseau  para articular uma epistemologia filosófica que demonstra o fracasso da simpatia, da convivialidade, da tolerância em Frankenstein, dramatizando questionamentos sobre identidade, semelhança, diferença e  linguagem. É meu objetivo, neste trabalho, apresentar algumas idéias sobre a grande influência exercida pelo filósofo francês, tanto na vida pessoal, quanto na intelectual da autora inglesa. Os pensamentos e sentimentos do monstro, em Frankenstein, representam uma interpretação temática e encenam diálogos com e através de Rousseau. Mary Shelley reflete sobre as  idéias desenvolvidas no século XVIII e encena uma atuação ambivalente dos sentimentos morais e estéticos em voga.

Ao assumir que todo o mito elabora um plano psíquico atemporal, uma leitura menos profunda reduz a história de Victor Frankenstein a uma simples parábola sobre os eternos dilemas da condição humana: a maldição do mal inato e inerente ao homem e/ou a agonia da descoberta da autoconsciência. Mas não devemos entender que a obra de Mary Shelley, bem como a de outros escritores deste período, avaliem apenas a bondade inata do ser humano; apenas  deixam entender que o ser humano pode extrapolar os liames da sociedade, da civilização, da dominação política e da hipocrisia religiosa. O otimismo ou pessimismo que caracteriza os visionários e os marginalizados abre a possibilidade de uma refração ao mundo.

Reagindo aos dogmatismo do iluminismo, a Estética e o pensamento românticos são irracionalistas, marcado por contradições, entre as quais a reverência à glória pessoal e o culto da apatia. Vários estudos sobre a individualidade, arrolados por Paul Hoffman (2000), apontam para esta dissociação, sob a ótica da subjetividade. Temos assim o tema do duplo, a divisão e fragmentação do eu. Estes valores românticos perpassam na voz de Victor Frankenstein em numerosas ocasiões, como também na voz do monstro. Longas passagens declamatórias expõem temas como a injustiça da sociedade, a desigualdade da riqueza e a necessidade de mudanças no campo privado e no público que ele  reconhece seu semelhante como um ser sensível, pensante e igual a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fazem-no buscar meios para isso. Gestos e vozes encenam a expressão e a comunicação, e a linguagem nasce das diversas necessidades: a fome, a sede, o abrigo, a proteção, a defesa contra as intempéries, os animais e outros homens mais fortes. Esta realidade leva à criação de palavras, forma um vocabulário elementar e rudimentar, que, gradativamente mais complexo, transforma-se numa língua;  a linguagem nasce das emoções, particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medo, compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). As idéias de Rousseau, em seu “Ensaio sobre a origem das línguas”, são categóricas:

 

Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes… Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas.

[...]

Assim, a linguagem, nascendo das paixões, foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto, tornando-se prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das consoantes. Assim como a pintura nasceu antes da escrita, assim também os homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois exprimiram seus pensamentos. (1986, p. 260).

 

 

Neste ensaio, Rousseau explicita a origem da linguagem figurada ligada à corrente da simpatia e da compaixão. Argumentando sobre a relação entre elas, o filósofo salienta o papel da linguagem como parábola, citando a metáfora com seu duplo sentido.  A partir destas idéias, podemos ler a história do monstro de Mary Shelley. Vivendo isolado, escondido, e olhado sem o sentimento humano de amizade e pertença social, é considerado um monstro, uma criatura de outra espécie. Solitário entre a humanidade, buscando um refúgio contra a barbárie humana, ele chega a uma cabana onde mora uma família também exilada do convívio social: os de Lacey.   Neste lugar,  ele apreende noções sobre os relacionamentos familiares entre as conversas do pai cego De Lacey, a filha Agatha, o filho Felix e a noiva Saphie.

A jovem noiva de Felix é estrangeira e aprende a falar francês, a língua que eles utilizam. Todos vivem numa região de fala alemã, e tudo é passado para o leitor em inglês. Esta verdadeira Babel lingüística realça o problema da linguagem como instrumento de transmissão e de comunicação entre os seres humanos.. O monstro aprende a linguagem através dessa família; começa a falar e a pensar através das instruções que Félix e Agatha passam a Safie. Embora não participe fisicamente do grupo, pois vive num cubículo, de onde  consegue ver a família através de um orifício na parede, a criatura consegue decifrar o alfabeto e aprender a ler, meios pelos quais poderá tentar, futuramente, estabelecer relações com os membros da comunidade humana. Encontra alguns livros importantes em seu processo de educação. As vidas paralelas, de Plutarco, Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe, e O paraíso perdido, de John Milton. São obras que se referem ao nível público, privado e cósmico, apresentando três modos de agir, de amar e de encarar a vida. Com Goethe , a criatura aprende sobre o amor e o sofrimento; com Plutarco, sobre deveres e responsabilidades civis como representados nas nações antigas. Com Milton, a narrativa dos desígnios divinos relativos à criação do homem. Todas estas leituras questionam a noção de  identidade, e das três, a que mais lhe chama a atenção é O Paraíso Perdido, que o monstro interpreta como um emblema de sua situação.

Inicialmente, sente-se como um tipo de Adão, sem família, sem relações, sozinho no mundo. Depois, considera-se mais semelhante à figura de Satã, o ser marginalizado. Ao encontrar o diário de Victor Frankenstein, descobre o mistério de sua origem,  pois o cientista anota todos os passos de sua experiência: um processo científico de criação, não um mito de origem, mas um relato grotesco que explica sua identidade, constituída a partir de várias partes de cadáveres. Sua situação não padroniza a forma humana da representação; podemos melhor compreendê-la, quando Rousseau, argumentando que a primeira  linguagem é figurativa, explicita:

 

Um homem selvagem, encontrando outros, inicialmente ter-se-ia amedrontado. Seu terror tê-lo-ia levado a ver esses homens maiores e mais fortes do que ele próprio e a dar-lhes o nome de gigantes. Depois de muitas experiências, reconheceria que, não sendo esses pretensos gigantes nem maiores  nem mais fortes do que ele, à sua estatura não convinha a idéia que  a principio ligara à palavra gigante. Inventaria, pois, um outro nome comum a eles e a si próprio, como, por exemplo, o homem e deixaria o de gigante para o falso objeto que o impressionara durante sua ilusão. Aí está como a palavra figurada nasce, antes da própria, quando a paixão nos fascina os olhos e a primeira idéia que nos oferece não é a da verdade. [p. 267]

 

No Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau descreve o ato de ativar a piedade pelo transporte da imaginação e a identificação:

 

A piedade, ainda que natural ao coração  do homem, permaneceria eternamente inativa sem a imaginação que a põe em ação. Como nos deixamos emocionar pela piedade? — Transportando-nos  para fora de nós mesmos, identificando-nos com o sofredor.

 

Este ato de identificação que acompanha a imaginação e a reflexão é a pré-condição para o sentimento em relação ao outro.Como poderia sofrer vendo outro sofrer, se nem soubesse que ele sofre? Se ignoro o que existe de comum entre ele e mim? [... ].  A reflexão nasce das idéias comparadas.   (Ibidem, p. 273)

 

Sem este ato de comparação o homem está só em meio ao gênero humano; não sente mais do que a si próprio.  Não tem a habilidade de perceber semelhanças e de compreender que partilha o mundo com o seu semelhante. Aproxima-se do homem em seu estado primitivo

 

Aplicai essas idéias aos primeiros homens e  encontrareis os motivos de sua barbárie. Sempre vendo tão-só o que estava a sua volta, nem mesmo isso conheciam nem sequer conheciam a si próprios. Tinham a idéia de um pai, de um filho, de um irmão, porém não a de um homem. Sua  cabana continha todos os seus semelhantes; para ele, era a mesma coisa um estrangeiro, um animal, um monstro. Além de si mesmos e de sua família, todo o universo nada significava para eles. [Ibidem, p. 288]

 

Neste quadro apresentado por Rousseau,  podemos  ler a história do monstro de Mary Shelley. Encontramos diversos conflitos subjacentes entre a retórica do livro e os acontecimentos do enredo. Em seu entusiasmo pela ciência, e no desejo utópico de ajudar a humanidade, Victor julga-se um benfeitor. Não pensa em sua experiência como uma tarefa repulsiva. Mas, ao dar vida à criatura, sente asco e repulsa, que se desenvolvem à medida que a história prossegue. Considera que a má sorte que o acompanha, desde o momento em que a criatura passa a viver, é uma retribuição por suas atitudes contrárias à natureza. "Senti como se tivesse cometido algum crime", diz ele. Esta ambigüidade se estende ao monstro, que em alguns momentos se mostra possuidor de uma retórica eloqüente e, em outros, comete atrocidades, sugerindo um grau de ambivalência moral. Frankenstein tenta transcender-se naquela criatura, criando algo melhor e que fosse o seu reflexo. Mas encarar o nosso reflexo é difícil e perigoso, embora necessário. O jovem cientista não consegue ver a si mesmo refletido nos olhos baços e amarelos do monstro. Há um vínculo indissolúvel entre os dois; durante a maior parte do romance, a criatura procura pelo criador, visando uma aproximação ; mais tarde, após a morte da noiva do jovem médico,  é o criador que passa a perseguir a criatura. A criatura é feita para o encontro. Refletindo mais uma vez sobre as idéias de Hoffman, (2000), para o homem, o corpo é o limite através do qual o sujeito encontra o outro, dialoga, busca e sente o outro. Para o monstro, o corpo é um obstáculo, uma barreira negativa, que o impede de encontrar o outro e de ser encontrado e compreendido por ele.

Victor Frankenstein é da mesma cidade de Rousseau, uma coincidência que pode ser acidental. Vislumbramos ecos das idéias do filósofo, como a semelhança do monstro com o noble sauvage. O longo texto que fala da educação, tão discutido pela crítica, deve ser compreendido dentro do padrão da filosofia do sentimento. Mary Shelley inverte estas convenções: a educação da criatura tem um propósito. Ela é instintivamente benevolente no início, capaz de reconhecer o bem utilizando apenas seus sentidos e aprende a distinguir, sem grande esforço, a virtude do erro. Mas depois, estes princípios educacionais, embora o tornem mais humano, não o fazem virtuoso.

Toda a sensibilidade da criatura desaparece depois do episódio da fuga dos De Lacey, Felix retorna à cabana e, ao ver pela primeira vez  a criatura ao pé do pai, foge horrorizado. Pouco depois, a família abandona o local. A criatura permanece solitária, sem atinar com seu destino estranho. Chegando à beira de um riacho, observa seu rosto. Compreende sua diferença.  A exclusão do social a deixa, então, desobrigada às leis do ser humano. O nobre selvagem, de Rousseau, uma figura popular, com sensibilidade espontânea, facilmente corrompida pelo homem civilizado, é o padrão modificado pela autora. Ao demostrar ser o homem virtuoso maltratado pela civilização, ela reforça a crítica contra as instituições humanas. Sem negar a possibilidade de existir uma benevolência natural, Mary Shelley considera que a atração espontânea buscada pelo ser humano, como a bondade, é insuficiente se o homem não tiver o apoio da moralidade e das convenções .

Gigante, monstro, criatura demoníaca serão os termos que metaforizam o outro, o diferente. Usando termos e fórmulas cuja origem se encontra na Filosofia e na Estética, Mary Shelley  focaliza a epistemologia e questiona itens como identificação, semelhança, igualdade e diferença. Frankenstein é a história da negação da amizade; dramatiza a transgressão, o grotesco e os limites da natureza, nos reporta Margaret Homans (1989). Apesar da desfiguração do gigante, pode alguém reconhecer o homem no painel de sua humanidade? Como avaliar, neste quadro, a figura com características comuns aos homens? Como estabelecer as fronteiras entre o homem e  o monstro? Por que dar  uma forma grotesca ao ser feito conforme a sua imagem, se o jovem médico, obcecado com os segredos da humanidade, faz inúmeros estudos sobre a estrutura humana? São algumas questões instigantes analisadas no excelente estudo feito por Bárbara Johnson (1982) ao argumentar sobre  problemas de gênero, de maternidade ligadas à obra. E são, também, perguntas identificadas com as idéias sobre a linguagem figurada do filósofo francês.

Mas a humanidade não é benevolente para com a criatura; ninguém vislumbra a nobreza de sentimentos por  trás daquela aparência grotesca. As pessoas atacam-na, ferem-na, com pedras, paus e até tiros. O ser criado pelo cientista Victor Frankenstein é o primeiro de todos os alienígenas que aparecerão  posteriormente na ficção científica e que os terráqueos irão atacar, antes mesmo de estabelecer uma tentativa de comunicação. Também é o primeiro dos mutantes que “acabaram sobrepujando os povos da cultura dominante, mas são rejeitados porque são diferentes”, afiança Harold Bloom (1986, p. 13).

O desejo de criar a vida humana é um desejo transgressor. A punição por esta transgressão é metaforizada na criatura, que se mantém na ambivalência da semelhança e da alteridade. Sua situação é melhor resumida quando ela mesmo relata seus problemas de identidade: "Achava-me semelhante e, ao mesmo tempo, estranhamente diferente dos seres sobre quem eu lia e de cuja conversa eu era ouvinte." (F. p.124)  Ao perceber esta ambigüidade, o monstro compreende que sua presença atualiza uma ameaça para o sistema dos significantes humanos, para as figuras metafóricas diante do homem que não sabe decodificar e compreender esta semelhança.

 

Maldito criador! Por que você me fez um monstro tão horroroso que até mesmo você foge de mim repugnado? Deus, em sua piedade, fez o homem belo e atraente, segundo sua própria imagem, mas a minha forma é uma asquerosa contrafação da sua, mais horrível ainda quando comparada com a sua. (F. p.  126)

 

 

 Rousseau sugere que somente a simpatia, somente a percepção da semelhança revela o que um homem tem em comum com os outros homens, e  permite que um reconheça os outros como seu semelhante e não como monstros,  gigantes ou estranhos; somente reconhecendo o outro como seu semelhante pode o ser humano socializar-se e evitar o comportamento de um monstro. Jean Starobinski (1991) reforça esta tese e defende a postura de  Rousseau distante daquele individualismo que supõe uma antítese entre o ser particular e a coletividade,  estabelecendo o valor do humano enquanto indivíduo social e não apenas enquanto homem. Reivindica a consciência da dignidade do homem em geral e ilumina o valor universal da personalidade humana, cuja consciência moral não se traduz no sentimento particularista do amor-próprio, mas na universalidade do amor de si.

A natureza, o mundo externo, a índole humana e o “eu” são questões instigantes em Frankenstein. À medida que as personagens estão às voltas com estes problemas ontológicos, Mary Shelley apresenta respostas indiretas. A criatura insiste em dizer que a sua natureza é inocente e benevolente. Ao se ver face a face com Victor Frankenstein,  “Eu era benévolo, bom; a desgraça tornou-me um demônio”. (F.p.97) Ao final de sua narrativa autobiográfica, reforça: “Meus vícios são filhos de uma solidão forçada que eu abomino, e necessariamente minhas virtudes crescerão quando eu passar a viver em comunhão com um ser igual a mim”. (F. p.143)  Victor, por outro lado, sempre enfatiza o lado negativo da criatura, um  “Monstro odioso! Demônio! As torturas do inferno serão o castigo muito suave para os teus crimes. Desgraçado demônio!”. (F. p.96)

A questão da percepção é simbolicamente realçada quando a criatura descreve seus sentimentos ao se ver pela primeira vez:

 

Como eu ficava apavorado quando me via refletido num lago transparente! Primeiro, eu recuara, incapaz de acreditar que era realmente eu quem se refletia no espelho. Quando acabei convencendo-me de que era realmente aquele monstro, experimentei as mais amargas sensações de abatimento e mortificação. (F. p. 109)

 

Nesta passagem fica clara a sugestão de que a identidade é um processo ligado não somente ao ato de saber e reconhecer, mas ao de ver. Mesmo que a criatura não seja capaz de reconhecer, a visão o convence de sua monstruosidade. Todas as personagens — Victor Frankenstein, a criatura e o capitão Robert Walton —  interagem através de uma construção semiótica: lêem sua feição e interpretam a aparência com um sentido determinado. Victor constrói respostas arbitrariamente. Ao ver a forma gigantesca aproximar-se pela região de Mar de Glace, observa que “sua figura quase sobrenatural o tornava por demais horrível aos olhos humanos”. (F. p.96) A criatura resiste a essa leitura negativa. Victor novamente a rejeita, com mais violência, e diz: “Vai-te! Livra-me da visão de tua forma odiosa”. No mesmo instante ela responde: “Assim eu te livro, meu criador – disse ele colocando as mãos abomináveis sobre os meus olhos, o que eu repeli com violência”. (F. p.96)  Todos consideram-na demoníaca, cruel, perversa. Quando Félix, Agatha e Safie a vêem pela primeira vez, ficam atônitos:

 

Quem pode descrever o horror de que foram tomados quando me avistaram? Agatha desmaiou. Safie, incapaz de atender a amiga, correu para fora. Félix avançou e, com uma força sobrehumana, afastou-me do pai, a cujos joelhos eu me abraçava. Num transporte de fúria, ele me jogou ao chão e bateu-me violentamente com um pau. (F. p. 130)

 

Os olhos infantis de William Frankenstein também mostram repulsa e temor, quando a criatura o abraça: o menino gritando diz: “Solte-me! Monstro! Bicho feio! Você quer me comer e me matar. Você é um bicho. Solte-me ou chamarei meu pai”. (F. p.137) Somente duas personagens não interpretam a criatura como maligna. O velho cego De Lacey ouve seu eloqüente discurso enquanto a criatura está ajoelhada a seus pés, e compreende a verdade quando ela diz:

 

Minhas intenções são boas até aqui, minha vida tem sido inofensiva e, até certo ponto útil. Mas um preconceito fatal vela seus olhos e, onde eles deveriam ver um amigo bondoso e imbuído de bons sentimentos, vêem apenas um monstro detestável. (F. p.129)

 

A isto De Lacey responde:

 

“Sou cego e não posso vê-lo. Mas há qualquer coisa em suas palavras que me dizem que você está sendo sincero. Sou pobre, um exilado, mas terei um imenso prazer em poder ser útil de qualquer modo a uma criatura humana” (F. p. 129).

 

E Robert Walton, após ouvir o relato autobiográfico, não a rejeita. Confrontando a criatura pela primeira vez depois da morte de Victor Frankenstein, o capitão ouve seu relato e confessa. “Jamais contemplei coisa tão horrível quanto o seu rosto, tão hedionda e tão apavorante. Fechei os olhos involuntariamente e procurei lembrar-me do que deveria fazer em relação àquele assassino”. (F. p.208)

Ao saber que a criatura sente remorso, diz: “Meu primeiro impulso, que foi o de destruí-lo, em atenção ao pedido de meu amigo, na hora de morrer, foi sustado por um misto de curiosidade e compaixão”. (F. p. 208). Mas o capitão Walton não chega a emitir o seu julgamento. Depois que o monstro faz uma defesa vibrante de sua existência, ele nada diz. Nas últimas sentenças do manuscrito, ele perde de vista a criatura “nas trevas e nas distâncias da neve”.

A linguagem provou ser ineficaz para permitir a sua entrada na cadeia da existência, no processo histórico, deixando-o completamente consciente sobre sua origem única e maldita. A linguagem passa a compor uma metonímia de significantes entre o expressivo desejo de ser reconhecido e a necessidade de viver as relações que lhe são negadas. Sua eloqüência aparece logo nas primeiras palavras que ele troca com Victor, quando controla as antíteses e oxímoros que expressam o pathos de sua existência:

 

Lembra-te de que fui criado por ti; eu devia ser o teu Adão, porém sou mais o anjo caído, a quem tiraste a alegria, por crime algum cometido. Por toda a parte vejo reinar a alegria da qual estou excluído. Eu era benévolo, bom; a desgraça tornou-me um demônio. Faze-me feliz, e tornarei a ser virtuoso. (F., p. 97)

 

A criatura sabe muito bem que sua tragédia não estará explicada se a representação enfocar apenas o efeito do horror. "Como poderei sensibilizar-te?", pergunta a Victor. "Será que nenhuma súplica faz com que olhes com benevolência para a tua criatura, que implora tua bondade e compreensão?" (F. p.97) Ele coloca as mãos sobre os olhos de Victor a fim de atrair a atenção para a sua história, pois "assim eu te impeço de ver algo que abominas. E, no entanto, não podes ouvir-me e conceder tua compaixão. Pelas virtudes que uma vez possuí, exijo isso de ti. Escuta minha história". (F., p.98).

     Frankenstein pode ser considerado uma parábola sobre o fracasso das relações de cordialidade e amizade. Desde o início, as cartas de Walton para a irmã, Mme de Saville, estão cheias de afirmações sobre o sentido desta necessidade. Walton chega a dizer:

 

Eu desejo a companhia de um homem que partilhasse comigo, cujos olhos refletissem os meus olhos. Pode ser que você me considere romântico, minha querida irmã, mas sinto amargamente a necessidade de ter um amigo. (F. p.18)

 

Walton lastima não haver amizade entre aqueles que com ele convivem no navio e, quando Victor Frankenstein o aborda, sente afeição pelo desconhecido. Grande parte da narrativa mostra as declarações de sentimentos que sugerem o interesse da autora em enfocar o problema da amizade.

É a criatura, contudo, quem está mais ligada a este tema, descrevendo-se como feita para a vida e a comunidade. Seu comentário sobre as sensações, enquanto observa os De Lacey, parecem-se com uma citação de qualquer tratado de filosofia moral, tão numerosa no século XVIII:

 

Assim passei o inverno. As maneiras gentis e a beleza dos camponeses daquela casa granjearam a minha afeição. Eu me sentia deprimido quando eles estavam infelizes, e partilhava de sua alegria quando eram felizes. (F. p. 108)

 

Logo, ouve palavras ligadas à filosofia da época:

 

– Não se desespere. Não ter amigo é de fato uma infelicidade. Mas o coração dos homens, quando isento de egoísmo total, é pleno de amor e caridade. Confie, pois, em suas esperanças, que não lhe hão de decepcionar, se tais amigos forem bons e amáveis. (F. p. 105)

 

Victor  fabrica uma figura feminina, a futura companheira da criatura. Horrorizado diante do quadro que se esboça, causado pela combinação estranha entre semelhança e diferença, e resultante de uma leitura da figura como um monstro, ele destrói o monstro-mulher, impedindo a possibilidade de o monstro ter uma vida comum. A destruição desta nova criatura, a quem ele considera tão semelhante ao real, incorre diretamente no assassinato de Elizabeth, sua noiva,  na noite de seu casamento. Assim, Victor Frankenstein destrói, simultaneamente, a amizade, a solidariedade, a fraternidade e a união sexual construídas a partir das relações de semelhança entre os homens. Os padrões do real se invertem e protagonizam uma paródia de todas as idéias filosóficas da emoção e da percepção, que são elos necessários à vida em sociedade.

   Victor  Frankenstein, embora não tenha transgredido nenhuma lei social ou moral, violou valores sagrados que catalizam o objeto numinoso. A conquista da natureza foi conseguida com um alto custo.  O restante do texto configura o resultado deste ato inicial de sacrilégio, operando nos eixos da realidade. Victor sofre um colapso mental, perde um irmão, sente-se culpado pela morte de Justine. O capítulo X descreve o encontro entre o criador e a criatura, representando uma espécie de microcosmo do impulso numinoso da história. Na região de Montanvert, Victor resolve subir ao pico do grandioso Mont Blanc. A  cena que o cerca é magnífica e realça o aspecto sublime que, embora estéril, reforça o sentido do mysterium tremendum e relembra diversas passagens do filósofo francês:

 

O silêncio solene dessa gloriosa sala de recepção da imperial natureza era apenas quebrado pelo burburinho das ondas ou de algum grande fragmento, (...) estes cenários sublimes e magníficos proporcionam-me o maior consolo que eu era capaz de receber. Elevavam-me dos pensamentos mesquinhos e, embora não removessem minha dor, de algum modo tranqüilizavam-na. (F.p. 93)

 

Victor vivencia o sentimento de êxtase, diante de elementos sublimes, mas logo dissipa-se abruptamente quando ele percebe a forma gigantesca do monstro que caminha em sua direção. Esta visão produz uma sensação de estupor e marca o contraste entre o sagrado e o profano. A beleza das montanhas, sobrenaturais e sinistras, a esterilidade das árvores e das rochas, a qualidade insólita da geleira provocam as vibrações de harmonia e de contrastes do numinoso.

No encontro de Victor e de sua criatura, Mary Shelley intensifica o contraste entre as duas personalidades, mas deixa o leitor com um certo sentimento de simpatia parcial em relação ao monstro que, por sua vez descreve suas andanças e aventuras no mundo dos homens, projetando um sentido de humanidade, mas de uma espécie doentia e fatídica. Victor sente comoção no primeiro encontro, durante alguns momentos, mas depois sente ódio e horror. Perseguido por todos que o vêem, por causar medo e aversão, a criatura chega a odiar a humanidade; mas logo acrescenta que ainda é capaz de expressar sentimentos de bondade. “Eu era benévolo, bom; a desgraça tornou-me um demônio. Faz-me feliz, e tornarei a ser virtuoso”. (F. p.97)

Ser sem espécie, indivíduo radical, o monstro de Mary Shelley questiona as motivações de seu criador, não lhe concedendo nenhuma autoridade apriorística e, por fim, triunfa sobre sua vida. Mary Shelley estabelece seu próprio sistema epistemológico através da ironia das personagens masculinas. Usa os núcleos domésticos de Frankenstein e De Lacey como modelos,  uma vez que, nestes, o respeito filial independe de dogmas, mas advém de uma educação sentimental para a liberdade adequadamente equilibrada pelo bom cumprimento dos deveres paternos de proteção, bem-estar e afeição. A influência de Jean-Jacques Rousseau é patente principalmente quando ela ficcionaliza a civilização e seus descontentes, revoltando-se contra as amarras sociais, individuais e familiares, em termos realistas.  Frankenstein foge de uma poética ideológica, e ao apontar a derrota de uma sociedade empírica,  cria visionários e dissidentes incapazes de epifanicamente resgatar e redimir suas visões de mundo. No mesmo século marcado pelo ressurgir de ideologias e utopias em que o homem descobre-se com suas potencialidades, engajando-se em processos sociais, humanos e viabilizando diversos conhecimentos, Frankenstein ficcionaliza um imaginário que apresenta a inconsistência fundamental causada por tantas contradições advindas do individualismo e da subjetividade e de seus desdobramentos. Mary Shelley opera essa transição, ao instaurar no próprio homem – físico , moral, mental, o espaço a ser transgredido, um ícone da multiplicidade de referentes para a civilização.E, ao operar essa transição, agrega os princípios psicológicos das personagens.      Experiência dos extremos, a obra  representa uma consciência exacerbada por aspectos recalcados organizadores da representação mental do imaginário. Figurações escatológicas e apocalípticas servem de referente para uma identidade pessoal vinculada ao nível político, filosófico, científico e histórico. É uma obra que otimiza a dialética reveladora dos valores travestidos e mascarados da sociedade patriarcal no agenciamento do comportamento dos seres humanos.

 

 

Referências

 

BERMAN, Marshall. The surprising effects of Sympathy – Marivaux, Diderot, Racine and Mary Shelley. Chicago: University of Chicago Press, 1988.

 

BLOOM, Harold (ed).  Mary Wollstonecraft Shelley. New York: Chelsea House. 1986. Modern Critical View Series.

 

HAZARD, Paul.  O pensamento europeu no século XVIII (de Montesquieu a Lessing). Lisboa: Editorial Presença, 1989.

 

HOFFMAN, Paul. Corps & Coeur dans la pensée des Lumières.  Strasbourg: Presses Universitaires de Strasbourg, 2000.

 

JOHNSON, Barbara. “My monster / My self”.  Diacritics, 12, Summer 1982: 3-12.

 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Oeuvres Complètes. Paris: Gallimard, 1986.  

________. Ensaio Sobre a Origem das Línguas. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998.

_______. Emile e Sophie ou os Solitários. Florianópolis: Paraula. 1994.

 

SHELLEY, Mary W.  Frankenstein: Or, The Modern Prometheus. London: Oxford University Press, 2000.

 

_______ Frankenstein: O moderno Prometeu.  Porto Alegre, L &PM, 1999.

 

STAROBINSKI, J. Jean Jacques Rousseau: A Transparência e o Obstáculo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

 

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