X Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF,
São Paulo, 30 de setembro a 3 de outubro de 2002

Sessões de comunicações do GT "Rousseau e os limites da Aufklärung"
Dia 30.09.2002
Sala 8.

Coordenação: José Oscar de A. Marques (DF-UNICAMP)
 
 

Profa. Dra. Maria Valderez de Colletes Negreiros
Faculdade de Ciências e Letras - UNESP - Campus de Araraquara
E-mail:  mvcn@fclar.unesp.br

A IMAGEM LITERÁRIA E O QUADRO PITORESCO DA FICÇÃO

A obra Le Temple de Gnide de Montesquieu é mencionada na “Quarta Caminhada” dos Devaneios do Caminhante Solitário. Ela representa um exemplo literário que ilustra uma certa distinção do papel utilitário da ficção e a idéia da mentira. A crítica de Rousseau visa mostrar os aspectos mais ficcionais dela. Em contrapartida Montesquieu reconhece nessa obra os “ofícios do tradutor” que é revelar a maneira poética e literária de um discurso romanesco que coloca como temas: o divertimento, os adornos e a veracidade do manuscrito grego ou sua invenção. A partir da idéia de ficção analisaremos de que maneira as diferenças interpretativas intercalam-se para exprimir o pensamento na trajetória da reflexão como criação da obra

Prof. Arlei de Espíndola
Professor de Filosofia da Unioeste/PR, Doutorando na Unicamp

A INFLUÊNCIA DE SÊNECA E DE LUCRÉCIO NA FORMAÇÃO DA 
FILOSOFIA MORAL DE ROUSSEAU

Rousseau, seguindo uma tendência própria de sua época, manteve uma relação estreita com as filosofias desenvolvidas na antigüidade, especialmente com as filosofias helenísticas. Disso resultou que os escritos desta tradição de pensamento terminaram exercendo grande influência na formação de suas idéias. Pretendemos no presente momento, considerando os limites que temos com uma comunicação, realizar um exercício preliminar de aproximação dos dois primeiros Discursos de Rousseau com o Da natureza das coisas de Lucrécio e com alguns textos de Sêneca, sobretudo  as Cartas a Lucílio. Sêneca, mais ainda do que Lucrécio, é considerado por certos intérpretes renomados como uma fonte bibliográfica importante do pensador genebrino, e o esquadrinhamento dos textos parece confirmar essa tese.

Ana Maria Portich
Doutoranda em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP)
e-mail: aportich@usp.br

O HOMEM DE BEM, SEGUNDO QUINTILIANO, COMO PARADIGMA 
PARA A ATUAÇÃO DO COMEDIANTE NO SÉCULO XVIII

Não se encontra no século XVIII uma reflexão sobre a arte do ator isolada da adequação aos gêneros dramáticos. Não obstante, os tratados setecentistas sobre representação vinculam a divisão dos gêneros à recepção da obra, reatualizando a poética e a retórica aristotélicas, integradas à diatribe helenística na versão de Horácio, e ao esquema que a retórica grega recomenda para as obras elementares de ensino. Quintiliano segue este esquema para instruir o orador, que será não apenas eloqüente mas um homem de bem, apto a participar da vida pública, de modo que suas realizações e sua participação em eventos cívicos sejam testemunhadas por concidadãos.

Depende da audiência comprovar se o orador sente ou não aquilo que diz; para fazer efeito, as provas afetivas que emprega no discurso estão pois condicionadas a fatores alheios à composição da obra. De sua conexão com a prática, decorre que a virtude do orador seja definida por ações realizadas e por demonstrações de afeto, as quais constituem o ‘caráter’ do orador, o seu ethos.

A ética aristotélica articulada por Quintiliano está na origem das discussões sobre as maneiras de iludir o espectador, levadas a cabo durante o século XVIII sob a indagação: o ator experimenta ou não os sentimentos que deve suscitar no público?

Segundo a Instituição Oratória, os atores não preenchem requisitos básicos para serem homens de bem; apesar disso, a partir do século XVI os argumentos de Quintiliano em prol da honestidade do orador são reinterpretados e assumidos por comediantes que almejam participar do cerimonial de corte e furtar-se às sanções da Contra-Reforma. Para dar provas de total adequação à hierarquia instituída, empenham-se em enunciar as regras que orientam seu desempenho e assim afirmar sua proficiência em decoro cortês.

Nesse sentido também se lêem as teorias de filósofos como Rousseau, explicitadas em sua Carta a d’Alembert, e Diderot, autor do Paradoxo sobre o Comediante

Ao tomar como parâmetro a noção aristotélica de virtude e a cláusula do homem de bem exposta por Quintiliano, a arte do ator elaborada no século XVIII condiciona o efeito teatral aos parâmetros da vida pública; na medida em que estes se articulam, as qualidades necessárias para um bom desempenho do ator sofrem mudanças de perspectiva, com base na continuidade entre retórica e poética.


Prof. Dr. José Oscar de Almeida Marques
Departamento de Filosofia - IFCH/UNICAMP
E-mail: jmarques@unicamp.br

AS CONFISSÕES NO CONTEXTO DAS OBRAS POLÍTICAS
DE J. J. ROUSSEAU 

No Preâmbulo original das Confissões Rousseau afirmou que, por seu conteúdo, a obra seria sempre “um livro precioso para os filósofos” e um instrumento único “para o estudo do coração humano”. O coração, em Rousseau, é uma metáfora para os sentimentos e faculdades da alma humana, e o que as Confissões contêm é o relato interior do desenvolvimento da imaginação de Jean-Jacques e sua imersão nas paixões que compõem o núcleo da vida do homem civilizado.

Rousseau pretende que as Confissões sejam um importante livro para os filósofos, ao lado dos Discursos, do Emílio, do Contrato social. Mas como relacionar essas obras? Se o Segundo Discurso conta a história do progressivo afastamento de nossa espécie de seu estado natural, as Confissões acompanham essa desnaturalização na história de um indivíduo. Numa dimensão paralela e em boa medida abstrata, o Contrato social procura as formas pelas quais, pelo artifício, os males decorrentes desse afastamento da natureza poderiam ser minimizados na vida em sociedade, e o Emílio desenvolve o projeto análogo de uma desnaturalização controlada que permita preservar a sanidade de um indivíduo em uma sociedade corrompida.

Essa oposição reflete-se também na perspectiva que assumimos enquanto leitores dessas obras. No Emílio e no Contrato social estamos ao lado dos que agem e controlam; privamos da companhia dos oniscientes e todo-poderosos legislador e preceptor; vemos o fundo do coração dos povos e do pupilo, acompanhamos sua moldagem e condução. No Segundo Discurso, ao contrário, somos lançados em meio aos que sofrem o embate de forças ininteligíveis cujas conseqüências não são conhecidas nem controláveis. “Homem, de onde quer que venhas, eis aqui tua história” – com esse brado retórico Rousseau assegura-se de nossa identificação com a humanidade sofredora e decaída.

As Confissões estão obviamente neste último caso. Se no Emílio conhecemos Jean-Jacques o preceptor, conheceremos agora Jean-Jacques petit, perplexo, descaminhado, perseguido; o talento do narrador produz nossa identificação com esse personagem e tece, por meio dele, sua fábula moral. Mas se o destino da espécie estava irremediavelmente selado no Segundo Discurso, a vida individual pode alcançar uma redenção, e as Confissões fornecem vislumbres de várias possibilidades dessa redenção. Se Emílio consegue preservar sua integridade psíquica diante de todas as armadilhas da sociedade, tal se deve não a seus méritos pessoais mas à árdua dedicação do preceptor. A redenção de Jean-Jacques, entretanto, é resultado de seu próprio mérito, contra todas as expectativas em contrário. Ele alcança, assim, a aura de uma vida exemplar.

Para além de sua importância literária, as Confissões de Rousseau, lidas em conjunto com seus outros grandes textos canônicos, iluminam-se e revelam profundidades teóricas insuspeitadas. Mas não se reconhece tão bem que sua leitura permite organizar e unificar toda a doutrina desenvolvida parcialmente em cada um daqueles textos. As Confissões não apenas completam o conjunto das obras filosóficas de Rousseau, mas constituem, talvez, a maior de todas elas.

Profa. Dra. Wilma Patricia Marzari Dinardo Maas
Departmento de Letras Modernas
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus de Araraquara
E-Mail: pmaas@uol.com.br

AS CONFISSÕES DE ROUSSEAU. ESTETIZAÇÃO DA EXISTÊNCIA

A autobiografia moderna  opõe a noção de responsabilidade pessoal à idéia  de vocação divina estabelecida pelo luteranismo. Obras como Les Confessions, de Rousseau, The Prelude, de Wordsworth  e Dichtung und Wahrheit, de Goethe, veiculam a experiência  do indivíduo que se debruça sobre a história, ao mesmo tempo  em que  se mostram como um texto no qual os dados da experiência pessoal são arranjados de modo a constituir uma versão biográfica, mediada pela construção estética e pela memória individual.

A distinção   tradicional  entre a autobiografia e o romance da experiência  subjetiva, entre o relato da própria experiência e a construção estética é o reconhecimento da distinção entre verdade e poesia, entre o evento histórico a sua projeção idealizada. Essa distinção. ingênua, não se sustenta quando se considera o processo constitutivo da autobiografia. Segundo Jürgen Jacobs, trata-se de um “confrontamento hermenêutico com o conteúdo vivido”. O sentido da história de uma vida, o princípio sob o qual os fatos são representados  em sua organização, não se deixa compreender como dado empírico, mas somente como resultado  desse confrontamento. Há, portanto, um espaço intermediário entre o conteúdo histórico vivido e sua representação na autobiografia. Autores como Goethe e Rousseau, que escreveram suas memórias pessoais a partir de um ponto no tempo já distante dos sucessos narrados, utilizaram necessariamente uma técnica de  reconstituição dos fatos que se assemelha aos processos narrativos ficcionais, uma vez que  recorrem  a uma estetização subjetiva dos acontecimentos. Situada em um ponto definido temporal e espacialmente em relação à trajetória do narrador/autor, a autobiografia permite-se trazer em si mesma o saber prévio de sua conclusão. Ou seja, há um percurso de auto-referência que organiza os fatos a partir de uma perspectiva futura e conhecida do narrador/autor. A autobiografia moderna aproxima-se assim do romanesco, uma vez que a organização dos fatos se dá a partir de uma perspectiva determinada A necessidade do preenchimento de lacunas históricas  e mesmo o largo tempo decorrido  entre os fatos e sua narração demandam uma técnica de escrita mista entre o  documental, o poético e o retórico.  O ato que deflagra a escrita tem, portanto, caráter intencional, arbitrário, refletindo-se por toda a narrativa que o sucede.

Nas Confissões de Rousseau o distanciamento temporal permitiu que o narrador elaborasse esteticamente o relato de sua trajetória. Ainda que se trate da persona histórica de Jean-Jacques Rousseau,  de suas memórias e de dados, na maioria das vezes, historicamente comprováveis, nota-se a presença de um sujeito narrativo construído de acordo com a retórica particular da ficção. É esse sujeito narrador que imprime ordem, cronologia e causalidade ao conteúdo relatado, permitindo que se leia uma história, uma trajetória progressivamente desenvolvida e aperfeiçoada.  O objetivo desta comunicação é o de identificar, no texto de Rousseau, as marcas imprimidas por esse agente organizador da memória autobiográfica, nos lapsos em que ele se descola do narrador histórico.

Profa. Dra. Carlota Boto 
Faculdade de Educação da USP
e-mail: reisboto@usp.br

O DESENCANTAMENTO DA INFÂNCIA: ROUSSEAU, O EMÍLIO E 
A MODERNA FILOSOFIA DO EDUCAR

O Emílio de Rousseau tem por pressuposição a idéia de que não se conhecia a criança a ser educada. Com o fito de ultrapassar a percepção de criança que partia da referência do homem adulto e que via as crianças pelo que lhes faltava, o propósito rousseauniano é o de buscar conhecer ‘o que a criança é antes de ser homem’. Tratava-se, essencialmente, de descobrir as especificidades da criança nas suas distintas idades de vida; mais do que compor um método sobre regras e parâmetros de como bem educá-la. Na história das idéias pedagógicas, o Emílio será apontado pela posteridade como o grande relato da idéia de criança moderna. A originalidade analítica de Rousseau do Emílio reside, pois, na busca de deslindamento da alma infantil. Rousseau alerta os contemporâneos para a necessidade de o adulto reviver sua infância no ato da educação: colocar-se no lugar da criança; procurando pensar como ela pensa e sentir – como se fossem dele – as suas demandas e as suas dificuldades. Delineava-se, pelo emblema do Emílio, um determinado modo de ver e, principalmente, de periodizar os primeiros anos de vida, que acompanhariam, de alguma maneira, posteriores estudos do desenvolvimento humano. Com Rousseau, o Emílio torna-se quase um pacto social de âmbito pedagógico. Muitas de suas suposições tornar-se-ão slogans, ou verdades presumidas do discurso pedagógico posterior. Revisitar o Emílio é, por tal razão, um requisito imprescindível para reconstituir a atmosfera mental precursora do modo de conceber a criança que nos é contemporâneo. O repertório da pedagogia confunde-se, nos dois últimos séculos, com o desenvolvimento – seja pela afirmação, seja pela negação – da referência do pensamento rousseauniano.

Para dirigir seu discípulo, o preceptor do Emílio atenta para a estrita observação das diferentes etapas da vida humana: no ponto de partida, o que chamara de primeira infância (0-7); a seguir, a puerilidade (7-12), que, distinta daquela, mantinha ainda algo de infância dentro de si; logo depois, haveria um pequeno período – entre 12 e 13 anos – em que a infância pueril ainda não escapara por completo, embora esse terceiro estágio estivesse já bem próximo da adolescência. Não encontrando termo apropriado para designar tal fase, Rousseau remarca que ela constitui, no indivíduo, o único período da vida humana em que o progresso das forças superaria o das necessidades. Tal classificação das idades não poderá ser bem compreendida em Rousseau sem a permanência de alguma imprecisão, de alguma confluência, de alguma ambigüidade. Ele – que, anteriormente, dissera que a idade pueril não se confunde com a infância – caracterizará esse estágio como o ‘terceiro estado da infância’. Consolidava-se, ali, um dado imaginário sobre o olhar adulto para a condição infantil; dirigido pela construção dada às idades do Emílio: em suas etapas de vida e nas pistas para pensar a educação. O objetivo deste trabalho é o de reconstituir alguns aspectos concernentes à visão de infância expressa no Emílio.

Profª Drª Karin Volobuef
Faculdade de Ciências e Letras - Departamento Letras Modernas
Universidade Estadual Paulista (UNESP)
E-mail: volobuef@fclar.unesp.br; volobuef@uol.com.br 

NOVALIS SOB O SIGNO DE ROUSSEAU 

Novalis é conhecido como leitor direto de Kant e, em especial, de Fichte. Contudo, percebemos que seu ponto de partida é, a grosso modo, a idéia rousseauniana da felicidade plena em contato com a Natureza. Nessa linha estão diversos textos (por exemplo, Heinrich von Ofterdingen e Die Lehrlinge zu Sais) imbuídos da Sehnsucht por um passado de harmonia e paz entre os homens. Ao contrário de Rousseau, porém, Novalis não vê um homem vivendo isolado e sem consciência de si mesmo, mas acredita em um contato primordial com a Natureza aliado à plenitude espiritual e artística. Arte, religião e amor, portanto, são elementos essenciais para o aperfeiçoamento do indivíduo e alicerçam a esperança pelo retorno à Era Dourada.

Profa. Dra. Leila de Aguiar Costa
Pós-doutoranda no Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas/Bolsista FAPESP
E-mail: leilaguiar2@aol.com

(DES)COBRINDO O EU : 
JOGOS ESPECULARES NO NARCISSE OU L’AMANT DE LUI-MÊME 
DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Em Narcisse ou l’Amant de lui-même, comédia de Rousseau encenada em 1752, lemos o diálogo seguinte:

VALÈRE, considérant le portrait: Mon coeur n’y résiste pas [...] Quoi, ne pourrai-je découvrir d’où vient ce portrait? Le mystère et la difficulté irritent mon empressement. Car je te l’avoue, j’en suis très réellement épris.

FRONTIN, à part: La chose est impayable! Le voilà amoureux de lui-même.

A passagem é paradigmática do viés temático a nortear  toda a peça: em um sentido geral, ela consideraria a representação do eu como uma representação em representação, isto é, pela força do simulacro; em um sentido mais preciso, operaria uma tal representação pela idéia do eu como imagem do eu captada -- e no caso de Narcisse obnubilada -- pelo seu próprio olhar.

Aceitando esse motivo, trabalhado textualmente e cenograficamente por essa dupla articulação, é objetivo dessa comunicação verificar os modos pelos quais Rousseau instancia uma dialética da imagem e do olhar, procurando reconhecer as armadilhas construídas pelo estilema “retrato” (portrait) e pelos jogos de travestimento que conduzem o leitor/espectador -- assim como Valère, protagonista da comédia -- nos caminhos do (auto)conhecimento, do re-conhecimento, da semelhança e da dessemelhança.