XI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF 
Salvador, 18 a 22 de Outubro de 2004

Rousseau e a possibilidade de uma autobiografia filosófica

José Oscar de Almeida Marques
Departamento de Filosofia
Universidade Estadual de Campinas

RESUMO: Rousseau propôs que suas Confissões constituiriam um instrumento incomparável para o estudo do "coração humano", mas essa pretensão parece incorrer na clássica crítica de Aristóteles (Poética, 9) às narrativas ditas “históricas”, que, ao tratarem a fatos contingentes e perspectivas particulares, não seriam capazes de alcançar o nível universal característico da filosofia e, mesmo, da poesia. Particularmente problemática é a afirmação de Rousseau de que a utilidade das Confissões deriva da absoluta veracidade com que nelas se desvenda um ser humano intus et in cute. De fato, modernos tratamentos do gênero autobiográfico (Pascal, Howarth, May) negam que um autor esteja em posição privilegiada para apreender e comunicar verdades, ainda que meramente de cunho subjetivo e pessoal, sobre sua vida. Dificuldades como essas fizeram com que por muito tempo se recusasse às Confissões um lugar à altura dos textos mais canônicos do autor, cujo valor filosófico não se punha em dúvida. Mas as supostas deficiências das Confissões em termos de universalidade e veracidade decorrem, todas elas, da suposição de que há, afinal, uma realidade extralingüística que serve de referente ao texto — suposição que foi celebremente negada por Derrida em sua Gramatologia, em uma investigação especificamente assentada nas obras de Rousseau. Se é assim, então não há razões para menosprezar as Confissões, mas esse resgate só se obtém porque o mesmo diagnóstico serve para privar as obras ditas “filosóficas” de qualquer estatuto privilegiado medido pelo seu campo de referência. Com base na crítica de Paul de Man à leitura de Rousseau por Derrida, pretendo mostrar neste trabalho que Rousseau estava bem consciente das peculiaridades de seu projeto e ofereceu indicações, particularmente em seu Ensaio sobre a origem das línguas, de como as Confissões poderiam ser entendidas de modo a (i) transcender a prosaica obrigação de representar fidedignamente uma série de acontecimentos particulares, e (ii) preservar um núcleo de referencialidade capaz de sustentar um tipo de verdade e universalidade apesar dos, ou antes, graças aos elementos e técnicas ficcionais empregados em sua preparação. Entender como o relato das Confissões pode alcançar um estatuto filosófico permite, por fim, iluminar o significado de outros textos reconhecidamente “filosóficos” de Rousseau que empregam extensamente a forma da (pseudo) narrativa histórica ou pessoal, como o Segundo Discurso e o Emílio.

 

(Um trabalho baseado nesta comunicação foi publicado em MARQUES, J.O.A. Reflexos de Rousseau. São Paulo: Humanitas, 2007. p. 153-172)