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I Jornada de Estudos J.-J. Rousseau. Departamento de
Filosofia da USP, 24 a 26 de março de 2010 Rousseau,
Rameau e o Ensaio sobre a origem das
línguas José Oscar de Almeida Marques
Estrutura da palestra:
Apresentação
geral Este trabalho faz parte de um projeto mais amplo de
investigação das relações entre música e política em Rousseau. Trata-se de uma temática ainda pouco tratada entre
nós, ao passo que o teatro e a literatura já contam com sólidas
contribuições, talvez pelas maiores dificuldades técnicas que uma discussão
sobre música apresenta. O ponto fulcral dessa investigação deve
necessariamente ser o Ensaio sobre a
origem das línguas, que é texto de Rousseau em que a relação entre música
e política encontra sua forma filosoficamente mais desenvolvida, constituindo
a base para qualquer reflexão subsequente. Esta palestra concentra-se no Ensaio e constitui um estágio preliminar dessa pesquisa, na
medida em não adentra as questões substantivas do texto, mas busca determinar
sua gênese e esboçar a articulação geral de suas linhas temáticas (música,
linguagem, história da sociedade humana). Em especial, busco estabelecer a
importância do debate Rousseau-Rameau tanto para essa gênese como para a
articulação de seus temas. Em uma palestra anterior, no IV Colóquio Rousseau
de Londrina, eu expus os eventos mais significativos da relação pessoal entre
Rousseau e Rameau, de modo a prover um contexto mais concreto para o debate
teórico entre eles. Fiz também uma apresentação rápida da contribuição de
Rameau à consolidação da harmonia como disciplina musical, procurando mostrar
a imensa importância de suas descobertas, que o tornam um dos maiores
teóricos da música de toda a história. Meu objetivo naquele momento era
deixar bem evidente a estatura do adversário com que Rousseau se defrontara
e, com isso, valorizar ainda mais a originalidade da concepção que o próprio
Rousseau desenvolveu sobre a música, e a revolução estética que ele operou
com essa nova concepção. Nesta palestra terei de referir-me a estes tópicos
de forma extremamente breve, apenas para permitir o prolongamento da
discussão. Assim, numa primeira parte, recapitulo brevemente os pontos principais
da interação entre ambos, fazendo uso de uma tabela cronológica. I Rameau
e Rousseau Rousseau (1712-1778) Jean-Philippe Rameau (1683-1764) 1) 1º
contato (não pessoal) – Rousseau estuda o Tratado de Harmonia por volta de 1735,
quando ainda morava com Mme de Warens em Chambery. Lê também com admiração as
tragédias de Voltaire. 2)
Projeto de reforma da notação musical Rousseau chegou a Paris em 1742, munido do Narcisse e de um projeto para uma nova
notação musical. Cartas de recomendação o conduziram a M. Boze, secretário da
Academia de Arqueologia que se
interessou pelo projeto e pôs Rousseau em contato com Réaumur, famoso
cientista, que arranjou para que o projeto fosse apresentado à Academia de
Ciências. Houve uma entrevista preliminar, com a presença de
d’Alembert, O que era o sistema de Rousseau? Consistia
basicamente na substituição das notas por números, e associação desses número
aos graus relativos da escala, e não a notas fixas. Trata-se de um método que
pode ser útil para que pessoas sem muita formação musical aprendam a cantar
uma linha melódica, mas seria muito difícil para um instrumentista que
tivesse que tocar muitas notas (acordes) simultaneamente. Essa foi uma
objeção que um pouco mais tarde o próprio Rameau levantou, e Rousseau julgou
que ela era pertinente, mas na verdade essa objeção já havia sido feita
também pela própria comissão, um fato que Rousseau não menciona. O que importa aqui é notar que até essa época
Rousseau parece ter mantido uma grande admiração por Rameau 3) Les
Muses galantes: Rousseau começa a
compor essa ópera-balé (nos moldes de L’Europe
Galante, de Campra (1698) e Les
Indes Galantes do próprio Rameau (1735)) em 1743, antes de sua viagem a
Veneza, e a completa em 1745. Rousseau havia sido apresentado a Alexandre de 4) Les
Fêtes de Ramire: Outro contato com
Rameau ocorreu por ocasião da revisão, em 1745, de uma ópera que Rameau havia
escrito sobre um texto de Voltaire ( 5) A
redação dos artigos da Encyclopédie: Rousseau foi encarregado por d’Alembert em
1748 de redigir os verbetes de música para a Enciclopédia. Aparentemente Rameau havia sido inicialmente
convidado por Diderot, mas recusara a comissão. Esta foi uma nova ocasião de
confronto com Rameau, pois Rousseau aproveitou a oportunidade para opor-se a
várias doutrinas musicais de Rameau (embora d’Alembert tenha suavizado
muitas passagens), Nessa época Rousseau ainda manifesta grande concordância
com Rameau em pontos teóricos fundamentais e ainda não tenha desenvolvido sua
teoria da relação da música com a linguagem que lhe permitiu afirmar a
superioridade da melodia sobre a harmonia. 6) A
querela dos Bufões (1752-53):
Trata-se de um episódio já relativamente bem conhecido e discutido, e não vou
me estender sobre ele. Em meio aos muitos panfletos superficiais produzidos
durante a polêmica, Rousseau veio a destacar-se com um texto de grande
alcance teórico e analítico: a Carta
sobre a Música Francesa, de 1753, que mudou a polêmica de uma disputa sobre
o gosto em um sério argumento sobre estética. Os philosophes haviam atacado a música francesa, mas pouparam
Rameau, a quem respeitavam (o livro de d’Alembert sobre o sistema de
Rameau foi escrito nesse mesmo ano). Rousseau foi mais consistente que eles
e, ao trazer a discussão para o nível filosófico, encontrou um terreno em que
podia enfrentar Rameau com superioridade, pois no terreno puramente musical
Rameau era um adversário formidável para um músico relativamente inexperiente
como Rousseau. Na Carta, Rousseau
solapou as bases do sistema de Rameau (exposto na Démonstration de 1750) sem precisar mencionar seu nome nenhuma
vez. 7) A
resposta de Rameau à Carta: Em 1754 Rameau publicou as Observations sur notre instinct pour la musique, em que defende a
prioridade da harmonia e responde à análise crítica que Rousseau fizera do
monólogo de Armide. Nos anos
seguintes Rameau prosseguiu criticando fortemente os verbetes da Enciclopédia, e, embora o vol. VI
dessa obra contenha, no Avertissement,
uma resposta a Rameau (provavelmente escrita por d’Alembert), o próprio
Rousseau, já seguro de sua reputação, jamais dignou-se a dar a Rameau uma
resposta pública. 8) A
resposta de Rousseau a Rameau: No
entanto Rousseau dedicou-se seriamente à redação de uma cuidadosa réplica às
críticas de Rameau, embora não a tenha publicado. Trata-se do Principe de la melodie et origine des
langues, obra seminal da qual provieram a seguir o Exame des deux principes avancés par M. Rameau e o próprio Ensaio sobre a origem das línguas. CRONOLOGIA ESQUEMÁTICA RAMEAU – ROUSSEAU
II A Gênese do Ensaio sobre a Origem das Línguas Publicado em 1781 em Paris, por Peyrou. Data de redação incerta. Ligação óbvia entre o 2º Discurso e a parte central do Ensaio, particularmente o capítulo IX. Estrutura do Ensaio: ·
Origem da
linguagem: caps. I – VII ·
Diferenciação
das línguas: caps. VIII-XI ·
Tópicos
musicais: caps. XII-XIX ·
- cap. XX:
línguas e governo A discussão
sobre a gênese e cronologia da obra já dura mais de um século e
desenvolveu-se em três etapas: (Remeter-se, para os detalhes, à Catherine
Kintzler, Starobinsky e Derrida) 1ª ETAPA
– final do séc. XIX até c. 1960 O debate sobre se o Ensaio era posterior ou anterior ao 2º Discurso apoiava-se em aparentes inconsistências entre os dois
textos, que podem, contudo, ser interpretadas de dois modos, com Espinas
(1895) defendendo que é posterior e Lanson (1900) que é anterior. O debate
pareceu definir-se quando Pierre Masson (re)descobriu em 1913 o Projeto de
Prefácio que Rousseau havia preparado por volta de 1763, visando a publicação
do Ensaio juntamente com dois
outros textos. A parte relevante desse prefácio é: ... O
segundo texto [o Ensaio] era inicialmente
apenas um fragmento do discurso sobre a desigualdade que eu retirei dali por
ser muito longo e fora de lugar. Retomei-o por ocasião dos Erros do Sr.
Rameau sobre a música, título que, com exceção de duas palavras que retirei
[“na Enciclopédia”], está
perfeitamente adequado à obra que o porta. No entanto, contido pelo ridículo
de dissertar sobre as línguas quando se sabe apenas uma, e, além disso, pouco satisfeito com esse texto, tinha
decidido suprimi-lo como indigno da atenção do público. Mas um ilustre
magistrado [Malesherbes] que cutiva e protege as letras teve dele uma opinião
mais favorável que a minha. É com prazer, então, como se pode imaginar, que
eu submeto meu julgamento ao dele, e arrisco, em favor dos dois outros
escritos, fazer passar este aqui, que talvez não ousaria apresentar
isoladamente. Também é interessante neste contexto consultar a
carta a Malesherbes de 25 de setembro de 1761, em que Rousseau fizera a
consulta, na qual se explicita mais uma vez a relação com os ataques de Rameau: Madame
de Luxembourg aceitou encarregar-se de vos remeter este pequeno escrito [o Ensaio] de que vos falei e que me
prometestes ler não apenas como magistrado mas como homem de letras que se
digna a interessar-se pelo autor e dispõe-se a dar-lhe seu conselho. Não
penso que este borrão possa suportar uma publicação em separado, mas talvez
possa passar no cômputo geral graças aos demais, embora desejasse de que
fosse publicado à parte por causa desse Rameau que continua a fustigar-me
vilmente e que quer a honra de uma resposta direta que seguramente não lhe
darei. Decidi, senhor, e vosso julgamento será minha lei em qualquer
situação. (Note-se que, apesar do capítulo final, crítico à
monarquia, Malesherbes deu sua
aprovação. Sobre isso, ver também as Confissões.) Com base nesse material estabeleceu-se a tese de
que o Ensaio surgiu originalmente
como uma parte do 2º Discurso, que,
em 1761, esse fragmento havia sido aumentado para fazer uma resposta a Rameau
e, enfim, em 1763, foi revisto tornando-se o texto que hoje conhecemos. 2ª ETAPA
– a partir de 1960, até 1974 Ressurge nesta etapa a tese da anterioridade do Ensaio, baseada em inconsistências
entre a concepção de pitié no Ensaio e no 2º Discurso (pitié
natural, pré-reflexiva, no Discurso,
e precisando ser “despertada” no Ensaio.), defendida especialmente por Starobinski (ver nota 2, p.
154, na edição das OC do 2º
Discurso e também por Goldschmidt (não consultei). Ela é extensamente
discutida por Derrida (De la
Grammatologie, p. 245-268), que acaba seguindo a posição de Masson, e o
mesmo ocorre com Derathé, numa nota em Rousseau
e a ciência política de seu tempo (p. 146, n.3): O Ensaio sobre a origem das línguas é
uma obra póstuma, publicada pela primeira vez por Du Peyrou em sua edição das
Obras completas de Rousseau
(Genebra 1780-82). Quanto à data de composição desse escrito, há uma escolha
entre duas hipóteses: 1749 ou 1754. Adotam a primeira hipótese os que admitem
que o Ensaio se liga aos textos
sobre música destinados à Enciclopédia (Vaughan, Pol. Writ., I, 10, nota 2 e Hendel, J.-J. Rousseau Moralist p. 66-67). Adotam a segunda hipótese os
que supõem, como Masson (Questions de
chronologie rousseauiste), que o Ensaio
foi originalmente composto como uma nota a ser introduzida como apêndice ao Discurso sobre a desigualdade. O texto
que citamos [“pretende-se que os homens inventaram a fala para exprimir
suas necessidades; essa opinião me parece insustentável. O efeito natural das
primeiras necessidades foi separar os homens, não reuni-los... Esses tempos
de barbárie foram o século de ouro, não porque os homens estavam unidos, mas
porque estavam separados ... Por toda a parte reinava o estado de guerra, e
toda a terra estava em paz.” OC v 380, 396], que trata das mesmas
questões que o Segundo Discurso e
no mesmo espírito [questionável], parece-nos confirmar a hipótese de Masson,
a qual, além disso, se apóia no testemunho de Rousseau. 3ª ETAPA
– a partir de 1974 Em 1974 descobriu-se na biblioteca de Neuchatel o
manuscrito “Princípio da melodia” (publicado no mesmo ano
simultaneamente por Marie-Elizabeth Duchez e por Robert Wokler, texto ao qual
não tive acesso.). Ele contém o material que mais tarde se tornou o Exame dos dois princípios e uma longa
parte central intitulada “Origem da Melodia” que se aproxima
bastante dos capítulos XVIII e XIX do Ensaio
sobre a origem das línguas. Esse manuscrito foi identificado por Charles
Porset ao “fragmento” do 2º
Discurso ao qual Rousseau fez referência em seu projeto de prefácio.
Assim a hipótese mais verossímil se torna agora a seguinte: Rousseau elaborou
um texto sobre a linguagem para o 2º Discurso, que ele retirou e depois
aproveitou como parte de sua resposta a Rameau. A parte central desse texto
tornou-se o embrião do Ensaio, que
pode ser datado portanto entre 1756 e 1761 ou até mesmo entre 1758 e 1761,
pela semelhança com algumas passagens da primeira versão do Contrato social (as discrepâncias com
o Discurso se resolvem, assim,
datando o Ensaio posteriormente). O diagrama a seguir apresenta essa complexa
situação: III A unidade e a importância do Ensaio A apresentação da gênese do texto não revela por si
só qual é a razão de suas diferentes temáticas estarem interligadas. Para
compreender isso será necessário entender por que era crucial para Rousseau
refutar as concepções de Rameau sobre a música para erigir seu próprio
sistema. Só posso aqui dar um esboço dessa razão. Rameau havia estabelecido seus dois princípios: 1) A
harmonia (simultaneidade) é o fundamento da melodia 2) A
harmonia tem seu fundamento na própria natureza No Traité
d’Harmonie (1722) Rameau já afirmara que a melodia é derivada da
harmonia: Divide-se ordinariamente a música em harmonia e
melodia, embora esta não seja senão uma parte da primeira, e baste conhecer
harmonia para estar perfeitamente instruído sobre todas as propriedades da
música, como se mostrará à frente (p. 1) No entanto, embora o Tratado de Harmonia já contenha as mais importantes contribuições
práticas de Rameau à harmonia (como a noção de baixo fundamental e das
inversões dos acordes), faltava ainda uma base que justificasse teoricamente
essas inovações. Foi só em obras posteriores que Rameau estabeleceu
esses princípios teóricos, cuja base principal é o fenômeno físico da
ressonância dos corpos, especialmente em sua Demonstração do Princípio da Harmonia (1750). Rameau considerou
essa descoberta um ponto de ruptura com a teoria dos antigos, que, para ele,
não conheciam o fundamento da harmonia e, consequentemente, embora tenham
feito prodígios na composição de melodias, fizeram-no às cegas, guiados
secretamente pela natureza. O princípio do corps
sonore consiste em que um objeto físico, como uma corda de instrumento ou
uma coluna de ar, vibra de diversas maneiras simultaneamente, produzindo os sons correspondentes a esses
diversos comprimentos de suas partes. Como resultado, a audição de um som
sempre envolve esses outros componentes (sons harmônicos). Esses primeiros
harmônicos serão a oitava, a dupla quinta, a dupla oitava e a tripla terça.
(Rameau para aqui, dizendo que os demais são inaudíveis). Por isso, há agora
uma resposta para a pergunta de por que certos sons soam consonantes –
isso resulta da própria natureza física e nossa percepção de uma consonância
decorre de que apreendemos uma relação que não é puramente numérica, mas diz
respeito à própria natureza das coisas (modelo físico-materialista) A ciência da música, portanto, consiste em
reproduzir essas relações entre sons que correspondem a relações que se
encontram na própria natureza física. Ao elaborar uma harmonia agradável, ou
uma melodia coerente estamos reproduzindo as regras que a própria natureza
estabeleceu para a ressonância dos corpos físicos. Uma melodia irá soar bem e
ser esteticamente agradável quando ela se basear nas proporções derivadas da
harmonia. E a harmonia, por sua vez, reproduz as relações que estão fundadas
na própria constituição dos corpos materiais. Para Rameau a música imita a
natureza porque reflete suas leis necessárias e universais. Rameau está
perfeitamente dentro do quadro da estética clássica, no sentido de que o
teatro e a pintura, p. ex., não reproduzem a concretude dos acontecimentos e
a contingência do mundo, mas vão atrás do que deve necessariamente ocorrer. Sobre isto, é relevante a afirmação de Aristóteles
(Poética IX) “Não é ofício do
poeta narrar o que aconteceu, mas sim representar o que é possível segundo a
verossimilhança e a necessidade ... Por isso a poesia é algo mais filosófico
e mais sério que a história, pois refere-se principalmente ao universal e
esta ao particular.” Para Rameau, assim, a arte musical consiste em combinar
os sons segundo os princípios universais que a própria natureza determina
para essas combinações, e com isso obtém o agrado do ouvinte, assim como o
teatro clássico apresenta os caracteres e as ações segundo os princípios
gerais que regem a conduta e as paixões humanas. Em ambos os casos intervêm a
convenção e o artifício, mas longe de afastar-se da natureza, são esses
instrumentos que permitem depurar os fatos e alcançar a natureza mais
profunda daquilo que se pretende representar (imitar) Para Rousseau, por sua vez, a natureza não é mais a
natureza física, material, com suas leis imutáveis, e que precisa de um
esforço de abstração para ser atingida por trás do véu das aparências. Essa
concepção tem de ser derrubada para que uma outra forma de entender a
natureza da música possa estabelecer-se. Para Rousseau, a natureza é o que é
dado imediatamente à nossa
experiência e, principalmente, a carga emotiva e passional que acompanha essa
experiência. E o que imita plenamente essa natureza é a voz humana, com suas
inflexões e acentos que reproduzem o movimento das paixões. Uma passagem do Ensaio ilustra isso com perfeição, no
conhecido episódio das reuniões à beira das fontes: Sob os
velhos carvalhos centenários uma ardente juventude esquecia gradualmente sua
ferocidade; familiarizavam-se pouco a pouco uns com os outros e, ao
esforçarem-se por fazer-se entender, aprenderam a explicar-se. Lá se fizeram
as primeiras festas, os pés fremiam de alegria, o gesto solícito não mais
bastava, a voz o acompanha com acentos apaixonados, o prazer e o desejo
mesclados faziam-se sentir ao mesmo tempo. Esse foi, então, o verdadeiro
berço dos povos, e do puro cristal das fontes surgiram os primeiros fogos do
amor. É a comunhão das paixões que funda as primeiras
sociedades humanas, e esse processo se realiza essencialmente pela
imediaticidade da voz que põe as almas em contato direto. Essa passagem
aponta para o desenvolvimento necessário da exposição do Ensaio: e das etapas que deve percorrer: 1) A sonoridade
da voz deve ocupar o lugar do mundo físico dos gestos (oposição
audível-visível) 2) O
essencial na voz é o elemento vocálico, e não a articulação consonantal, pois
é esse que veicula o acento. 3) A
vocalização deve estar imediatamente ligada à melodização, o canto precede a
fala. Daí surge a distinção entre as línguas do sul, melódicas, afetivas , e
as do norte, que não mais transmitem as inflexões e perdem tanto a melodia
como a própria vocalização. Por fim, a dicotomia sul-norte irá revelar suas
consequências políticas no capítulo final do Ensaio. Conclusão Ao conceber a música, como a mais próxima forma da
linguagem original voltada para a comunicação das paixões, Rousseau pôde
articular coerentemente sua teoria sobre a música com sua teoria da linguagem
enquanto comunicação de paixões e a capacidade de estabelecer uma comunidade
de seres humanos unificados por esse compartilhamento das paixões. Se a
música tem sua origem nos acentos expressivos da voz humana que servem para
comunicar as paixões, segue-se imediatamente a prioridade da melodia sobre a
harmonia, que adquire um papel meramente auxiliar no reforço da linha
melódica expressiva, e não deve intrometer-se em seu caminho nem ser notada
por si mesma. Outra consequência é que, se a música está diretamente
conectada ao campo ético-passional, ou espiritual, então as considerações que
Rameau extrai da base física da harmonia não podem fornecer as bases da
compreensão musical e, aos olhos de Rousseau, constituem um equívoco por
tentar explicar a música em termos físicos. Essa é a razão pelo qual o debate
com Rameau constitui o pano de fundo sobre o qual se desenrola toda a epopéia
do Ensaio sobre a origem das línguas. |
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