I Jornada de Estudos J.-J. Rousseau. Departamento de Filosofia da USP, 24 a 26 de março de 2010

 

 

Rousseau, Rameau e o Ensaio sobre a origem das línguas

José Oscar de Almeida Marques
Departamento de Filosofia - UNICAMP
jmarques@unicamp.br


RESUMO: O período e as condições em que foi escrito o Ensaio sobre a origem das línguas constituem ainda hoje matéria de controvérsia. O parentesco com o Segundo Discurso é facilmente perceptível em vista do Cap. IX, que trata da formação das primeiras sociedades, mas se há aí derivação ou uma elaboração independente não é fácil decidir, e a presença das discussões musicais praticamente ausentes do Discurso torna ainda mais difícil caracterizar a posição da obra no percurso do pensamento do autor. A descoberta em 1974 de um manuscrito de Rousseau intitulado “Princípio da melodia ou resposta aos erros sobre a música” permitiu, porém, relacionar firmemente a produção do Ensaio às polêmicas musicais entre Rousseau e Rameau que remontavam à época da Querela dos Bufões e à Carta sobre a música francesa. Pretendo nesta apresentação retraçar brevemente essas conexões e lançar com isso uma luz sobre esse texto genial em que pela primeira vez as reflexões de Rousseau sobre a sociedade, a linguagem e a música encontraram uma expressão unificada.

 

 

Estrutura da palestra:

  • Apresentação geral
  • I Rameau e Rousseau
  • II A Gênese do Ensaio sobre a Origem das Línguas
  • III A unidade e a importância do Ensaio

 


Apresentação geral

Este trabalho faz parte de um projeto mais amplo de investigação das relações entre música e política em Rousseau.

Trata-se de uma temática ainda pouco tratada entre nós, ao passo que o teatro e a literatura já contam com sólidas contribuições, talvez pelas maiores dificuldades técnicas que uma discussão sobre música apresenta.

O ponto fulcral dessa investigação deve necessariamente ser o Ensaio sobre a origem das línguas, que é texto de Rousseau em que a relação entre música e política encontra sua forma filosoficamente mais desenvolvida, constituindo a base para qualquer reflexão subsequente.

Esta palestra concentra-se no Ensaio e constitui um estágio preliminar dessa pesquisa, na medida em não adentra as questões substantivas do texto, mas busca determinar sua gênese e esboçar a articulação geral de suas linhas temáticas (música, linguagem, história da sociedade humana). Em especial, busco estabelecer a importância do debate Rousseau-Rameau tanto para essa gênese como para a articulação de seus temas.

Em uma palestra anterior, no IV Colóquio Rousseau de Londrina, eu expus os eventos mais significativos da relação pessoal entre Rousseau e Rameau, de modo a prover um contexto mais concreto para o debate teórico entre eles. Fiz também uma apresentação rápida da contribuição de Rameau à consolidação da harmonia como disciplina musical, procurando mostrar a imensa importância de suas descobertas, que o tornam um dos maiores teóricos da música de toda a história. Meu objetivo naquele momento era deixar bem evidente a estatura do adversário com que Rousseau se defrontara e, com isso, valorizar ainda mais a originalidade da concepção que o próprio Rousseau desenvolveu sobre a música, e a revolução estética que ele operou com essa nova concepção.

Nesta palestra terei de referir-me a estes tópicos de forma extremamente breve, apenas para permitir o prolongamento da discussão. Assim, numa primeira parte, recapitulo brevemente os pontos principais da interação entre ambos, fazendo uso de uma tabela cronológica.

 


I Rameau e Rousseau

 

Rousseau (1712-1778)

Jean-Philippe Rameau (1683-1764)

1) 1º contato (não pessoal)  – Rousseau estuda o Tratado de Harmonia por volta de 1735, quando ainda morava com Mme de Warens em Chambery. Lê também com admiração as tragédias de Voltaire.

2) Projeto de reforma da notação musical

Rousseau chegou a Paris em 1742, munido do Narcisse e de um projeto para uma nova notação musical. Cartas de recomendação o conduziram a M. Boze, secretário da Academia de  Arqueologia que se interessou pelo projeto e pôs Rousseau em contato com Réaumur, famoso cientista, que arranjou para que o projeto fosse apresentado à Academia de Ciências. Houve uma entrevista preliminar, com a presença de d’Alembert, em que Rousseau parece ter se saído bem, mas uma comissão designada para examinar o projeto recomendou sua rejeição. Rousseau ficou muito descontente e acusou mais tarde, muito injustamente, os membros da comissão de não terem conhecimento musical.

O que era o sistema de Rousseau? Consistia basicamente na substituição das notas por números, e associação desses número aos graus relativos da escala, e não a notas fixas. Trata-se de um método que pode ser útil para que pessoas sem muita formação musical aprendam a cantar uma linha melódica, mas seria muito difícil para um instrumentista que tivesse que tocar muitas notas (acordes) simultaneamente. Essa foi uma objeção que um pouco mais tarde o próprio Rameau levantou, e Rousseau julgou que ela era pertinente, mas na verdade essa objeção já havia sido feita também pela própria comissão, um fato que Rousseau não menciona.

O que importa aqui é notar que até essa época Rousseau parece ter mantido uma grande admiração por Rameau

3) Les Muses galantes: Rousseau começa a compor essa ópera-balé (nos moldes de L’Europe Galante, de Campra (1698) e Les Indes Galantes do próprio Rameau (1735)) em 1743, antes de sua viagem a Veneza, e a completa em 1745. Rousseau havia sido apresentado a Alexandre de La Poplinière, um rico patrono das artes, que era também patrono de Rameau, e aqui começaram os problemas. Foi sugerido que Rameau examinasse a partitura, mas ele se recusou dizendo que ler a música cansaria muito. Alguma passagens foram extraídas por Rousseau e apresentadas por alguns músicos e cantores contratados para a ocasião. Rameau mostrou-se extremamente desconfortável e rude durante a execução (o que Rousseau atribuiu a ciúmes diante de um recém chegado concorrente), alegando todo o tempo que a música de uma autodidata da província não poderia ser nada boa, e seu julgamento foi que a obra tinha partes excelentes e partes péssimas, com a implicação de que Rousseau havia plagiado as boas passagens. A partir de então, Rameau torna-se um inimigo. Uma outra apresentação da obra na casa de M. de Bonneval foi bem recebida, mas Rousseau jamais conseguiu uma apresentação em Versalhes ou na Opéra.

4) Les Fêtes de Ramire: Outro contato com Rameau ocorreu por ocasião da revisão, em 1745, de uma ópera que Rameau havia escrito sobre um texto de Voltaire (La Princesse de Navarre), com um novo título e adaptação do texto original (Les Fêtes de Ramire). Nem Voltaire nem Rameau quiseram fazer essa revisão e o serviço foi oferecido a Rousseau (rever tanto texto quanto música). Essa ocasião marca o primeiro contato de Rousseau com Voltaire, que iria tornar-se seu outro grande inimigo, mas nessa ocasião o contato foi muito amigável. Várias mudanças foram feitas à revelia de Rousseau, e não é claro, hoje, qual foi a real contribuição de Rousseau. O nome de Rousseau não apareceu nos créditos e ele não ganhou nenhuma remuneração pelo trabalho. Voltaire e Rameau, seus heróis de épocas passadas, revelam-se figura decepcionantes.

5) A redação dos artigos da Encyclopédie: Rousseau foi encarregado por d’Alembert em 1748 de redigir os verbetes de música para a Enciclopédia. Aparentemente Rameau havia sido inicialmente convidado por Diderot, mas recusara a comissão. Esta foi uma nova ocasião de confronto com Rameau, pois Rousseau aproveitou a oportunidade para opor-se a várias doutrinas musicais de Rameau (embora d’Alembert tenha suavizado muitas passagens), Nessa época Rousseau ainda manifesta grande concordância com Rameau em pontos teóricos fundamentais e ainda não tenha desenvolvido sua teoria da relação da música com a linguagem que lhe permitiu afirmar a superioridade da melodia sobre a harmonia.

6) A querela dos Bufões (1752-53): Trata-se de um episódio já relativamente bem conhecido e discutido, e não vou me estender sobre ele. Em meio aos muitos panfletos superficiais produzidos durante a polêmica, Rousseau veio a destacar-se com um texto de grande alcance teórico e analítico: a Carta sobre a Música Francesa, de 1753, que mudou a polêmica de uma disputa sobre o gosto em um sério argumento sobre estética. Os philosophes haviam atacado a música francesa, mas pouparam Rameau, a quem respeitavam (o livro de d’Alembert sobre o sistema de Rameau foi escrito nesse mesmo ano). Rousseau foi mais consistente que eles e, ao trazer a discussão para o nível filosófico, encontrou um terreno em que podia enfrentar Rameau com superioridade, pois no terreno puramente musical Rameau era um adversário formidável para um músico relativamente inexperiente como Rousseau. Na Carta, Rousseau solapou as bases do sistema de Rameau (exposto na Démonstration de 1750) sem precisar mencionar seu nome nenhuma vez.

7) A resposta de Rameau à Carta: Em 1754 Rameau publicou as Observations sur notre instinct pour la musique, em que defende a prioridade da harmonia e responde à análise crítica que Rousseau fizera do monólogo de Armide. Nos anos seguintes Rameau prosseguiu criticando fortemente os verbetes da Enciclopédia, e, embora o vol. VI dessa obra contenha, no Avertissement, uma resposta a Rameau (provavelmente escrita por d’Alembert), o próprio Rousseau, já seguro de sua reputação, jamais dignou-se a dar a Rameau uma resposta pública.

8) A resposta de Rousseau a Rameau: No entanto Rousseau dedicou-se seriamente à redação de uma cuidadosa réplica às críticas de Rameau, embora não a tenha publicado. Trata-se do Principe de la melodie et origine des langues, obra seminal da qual provieram a seguir o Exame des deux principes avancés par M. Rameau e o próprio Ensaio sobre a origem das línguas.

 


CRONOLOGIA ESQUEMÁTICA RAMEAU – ROUSSEAU

RAMEAU

1722:  Publica o Traité d’Harmonie

1726: Publica o Nouveau Système de Musique théorique, após ter conhecimento das descobertas de Sauvet (1701) sobre o corps sonore

 

1733: Começa compor suas óperas e balés

 

 

1737: Publica La Génération Harmonique

 

 

 

 

1745: La princesse de Navarre (Rameau/Voltaire)

 

 

 

1750: Publica a Démonstration du principe de l’harmonie

 

1752: d’Alembert publica Elements de musique

 

1753 : Réponse à Euler

 

1754: Publica Observations sur notre instinct pour la musique (resposta à Carta sobre a música francesa, defesa de Lully)

 

1755: Publica Erreurs sur la musique dans l’Encyclopédie

 

 

1756: Publica Suite des Erreurs sur la musique dans l’Encyclopédie

1756: Vol. VI da Enciclopédia contém uma resposta a Rameau.

 

1757: Publica Resposta aos Editores da Enciclopédia

1760: Publica Carta a d’Alembert sobre suas opiniões em música

1762: Origem das ciências

1762: d’Alembert publica nova edição dos Elements, com uma crítica a Rameau.

 

 

ROUSSEAU

 

 

 

 

1730: Primeiros ensaios de composição

 

1735: Estuda o Traité de Rameau em Chambéry.

 

1742: Apresenta o projeto de reforma da notação musical à Academia de Ciências

1743: Publica a Dissertação sobre a música moderna

 

1743-1745:  Ópera-balé Les Muses galantes

1745: Adapta a ópera Les Fêtes de Ramire

1748-50:  Redige os verbetes de música para a Enciclopédia de Diderot e d’Alembert

1750: Publica o Discurso sobre as ciências e as artes

1752: Participa da “Querela dos Bufões”

1752: Compõe Le Devin du Village

1753: Publica a Carta sobre a música francesa (visa a Démonstration, de Rameau)

1753-54: Redige o Segundo Discurso.

 

1755: Publica o Segundo Discurso.

 

1755: Redige o manuscrito Principe de la melodie et origine des langues

1755 Redige Examen des deux principes avancés par M. Rameau

 

1756-61 Redige o Ensaio sobre a origem das línguas

 

 

 

 

 

 

1763: Projeto de Prefácio para uma coletânea (Imitação teatral, Ensaio e Levita)

1765: Carta a Peyrou, propondo um grupo de textos para o vol. 6 de suas obras (Carta sobre a música francesa,  Exame dos dois princípios, Ensaio)

 

 


II A Gênese do Ensaio sobre a Origem das Línguas

 

Publicado em 1781 em Paris, por Peyrou.

Data de redação incerta.

Ligação óbvia entre o 2º Discurso e a parte central do Ensaio, particularmente o capítulo IX.

Estrutura do Ensaio:

·         Origem da linguagem: caps. I – VII

·         Diferenciação das línguas: caps. VIII-XI

·         Tópicos musicais: caps. XII-XIX

·         - cap. XX: línguas e governo

 A discussão sobre a gênese e cronologia da obra já dura mais de um século e desenvolveu-se em três etapas: (Remeter-se, para os detalhes, à Catherine Kintzler, Starobinsky e Derrida)

 

1ª ETAPA – final do séc. XIX até c. 1960

O debate sobre se o Ensaio era posterior ou anterior ao 2º Discurso apoiava-se em aparentes inconsistências entre os dois textos, que podem, contudo, ser interpretadas de dois modos, com Espinas (1895) defendendo que é posterior e Lanson (1900) que é anterior. O debate pareceu definir-se quando Pierre Masson (re)descobriu em 1913 o Projeto de Prefácio que Rousseau havia preparado por volta de 1763, visando a publicação do Ensaio juntamente com dois outros textos. A parte relevante desse prefácio é:

... O segundo texto [o Ensaio] era inicialmente apenas um fragmento do discurso sobre a desigualdade que eu retirei dali por ser muito longo e fora de lugar. Retomei-o por ocasião dos Erros do Sr. Rameau sobre a música, título que, com exceção de duas palavras que retirei [“na Enciclopédia”], está perfeitamente adequado à obra que o porta. No entanto, contido pelo ridículo de dissertar sobre as línguas quando se sabe apenas uma, e, além disso,  pouco satisfeito com esse texto, tinha decidido suprimi-lo como indigno da atenção do público. Mas um ilustre magistrado [Malesherbes] que cutiva e protege as letras teve dele uma opinião mais favorável que a minha. É com prazer, então, como se pode imaginar, que eu submeto meu julgamento ao dele, e arrisco, em favor dos dois outros escritos, fazer passar este aqui, que talvez não ousaria apresentar isoladamente.

Também é interessante neste contexto consultar a carta a Malesherbes de 25 de setembro de 1761, em que Rousseau fizera a consulta, na qual se explicita mais uma vez a relação com os ataques de Rameau:

Madame de Luxembourg aceitou encarregar-se de vos remeter este pequeno escrito [o Ensaio] de que vos falei e que me prometestes ler não apenas como magistrado mas como homem de letras que se digna a interessar-se pelo autor e dispõe-se a dar-lhe seu conselho. Não penso que este borrão possa suportar uma publicação em separado, mas talvez possa passar no cômputo geral graças aos demais, embora desejasse de que fosse publicado à parte por causa desse Rameau que continua a fustigar-me vilmente e que quer a honra de uma resposta direta que seguramente não lhe darei. Decidi, senhor, e vosso julgamento será minha lei em qualquer situação.

(Note-se que, apesar do capítulo final, crítico à monarquia,  Malesherbes deu sua aprovação. Sobre isso, ver também as Confissões.)

Com base nesse material estabeleceu-se a tese de que o Ensaio surgiu originalmente como uma parte do 2º Discurso, que, em 1761, esse fragmento havia sido aumentado para fazer uma resposta a Rameau e, enfim, em 1763, foi revisto tornando-se o texto que hoje conhecemos.

 

2ª ETAPA – a partir de 1960, até 1974

Ressurge nesta etapa a tese da anterioridade do Ensaio, baseada em inconsistências entre a concepção de pitié no Ensaio e no 2º Discurso (pitié natural, pré-reflexiva, no Discurso, e precisando ser “despertada” no Ensaio.), defendida especialmente por Starobinski (ver nota 2, p. 154, na edição das OC do 2º Discurso e também por Goldschmidt (não consultei). Ela é extensamente discutida por Derrida (De la Grammatologie, p. 245-268), que acaba seguindo a posição de Masson, e o mesmo ocorre com Derathé, numa nota em Rousseau e a ciência política de seu tempo (p. 146, n.3):

O Ensaio sobre a origem das línguas é uma obra póstuma, publicada pela primeira vez por Du Peyrou em sua edição das Obras completas de Rousseau (Genebra 1780-82). Quanto à data de composição desse escrito, há uma escolha entre duas hipóteses: 1749 ou 1754. Adotam a primeira hipótese os que admitem que o Ensaio se liga aos textos sobre música destinados à Enciclopédia (Vaughan, Pol. Writ., I, 10, nota 2 e Hendel, J.-J. Rousseau Moralist p. 66-67). Adotam a segunda hipótese os que supõem, como Masson (Questions de chronologie rousseauiste), que o Ensaio foi originalmente composto como uma nota a ser introduzida como apêndice ao Discurso sobre a desigualdade. O texto que citamos [“pretende-se que os homens inventaram a fala para exprimir suas necessidades; essa opinião me parece insustentável. O efeito natural das primeiras necessidades foi separar os homens, não reuni-los... Esses tempos de barbárie foram o século de ouro, não porque os homens estavam unidos, mas porque estavam separados ... Por toda a parte reinava o estado de guerra, e toda a terra estava em paz.” OC v 380, 396], que trata das mesmas questões que o Segundo Discurso e no mesmo espírito [questionável], parece-nos confirmar a hipótese de Masson, a qual, além disso, se apóia no testemunho de Rousseau.

 

3ª ETAPA – a partir de 1974

Em 1974 descobriu-se na biblioteca de Neuchatel o manuscrito “Princípio da melodia” (publicado no mesmo ano simultaneamente por Marie-Elizabeth Duchez e por Robert Wokler, texto ao qual não tive acesso.). Ele contém o material que mais tarde se tornou o Exame dos dois princípios e uma longa parte central intitulada “Origem da Melodia” que se aproxima bastante dos capítulos XVIII e XIX do Ensaio sobre a origem das línguas. Esse manuscrito foi identificado por Charles Porset ao “fragmento” do 2º Discurso ao qual Rousseau fez referência em seu projeto de prefácio. Assim a hipótese mais verossímil se torna agora a seguinte: Rousseau elaborou um texto sobre a linguagem para o 2º Discurso, que ele retirou e depois aproveitou como parte de sua resposta a Rameau. A parte central desse texto tornou-se o embrião do Ensaio, que pode ser datado portanto entre 1756 e 1761 ou até mesmo entre 1758 e 1761, pela semelhança com algumas passagens da primeira versão do Contrato social (as discrepâncias com o Discurso se resolvem, assim, datando o Ensaio posteriormente).

 

O diagrama a seguir apresenta essa complexa situação:

III A unidade e a importância do Ensaio

A apresentação da gênese do texto não revela por si só qual é a razão de suas diferentes temáticas estarem interligadas. Para compreender isso será necessário entender por que era crucial para Rousseau refutar as concepções de Rameau sobre a música para erigir seu próprio sistema. Só posso aqui dar um esboço dessa razão.

Rameau havia estabelecido seus dois princípios:

1) A harmonia (simultaneidade) é o fundamento da melodia

2) A harmonia tem seu fundamento na própria natureza

No Traité d’Harmonie (1722) Rameau já afirmara que a melodia é derivada da harmonia:

Divide-se ordinariamente a música em harmonia e melodia, embora esta não seja senão uma parte da primeira, e baste conhecer harmonia para estar perfeitamente instruído sobre todas as propriedades da música, como se mostrará à frente (p. 1)

No entanto, embora o Tratado de Harmonia já contenha as mais importantes contribuições práticas de Rameau à harmonia (como a noção de baixo fundamental e das inversões dos acordes), faltava ainda uma base que justificasse teoricamente essas inovações.

Foi só em obras posteriores que Rameau estabeleceu esses princípios teóricos, cuja base principal é o fenômeno físico da ressonância dos corpos, especialmente em sua Demonstração do Princípio da Harmonia (1750). Rameau considerou essa descoberta um ponto de ruptura com a teoria dos antigos, que, para ele, não conheciam o fundamento da harmonia e, consequentemente, embora tenham feito prodígios na composição de melodias, fizeram-no às cegas, guiados secretamente pela natureza.

O princípio do corps sonore consiste em que um objeto físico, como uma corda de instrumento ou uma coluna de ar, vibra de diversas maneiras simultaneamente, produzindo os sons correspondentes a esses diversos comprimentos de suas partes. Como resultado, a audição de um som sempre envolve esses outros componentes (sons harmônicos). Esses primeiros harmônicos serão a oitava, a dupla quinta, a dupla oitava e a tripla terça. (Rameau para aqui, dizendo que os demais são inaudíveis). Por isso, há agora uma resposta para a pergunta de por que certos sons soam consonantes – isso resulta da própria natureza física e nossa percepção de uma consonância decorre de que apreendemos uma relação que não é puramente numérica, mas diz respeito à própria natureza das coisas (modelo físico-materialista)

A ciência da música, portanto, consiste em reproduzir essas relações entre sons que correspondem a relações que se encontram na própria natureza física. Ao elaborar uma harmonia agradável, ou uma melodia coerente estamos reproduzindo as regras que a própria natureza estabeleceu para a ressonância dos corpos físicos. Uma melodia irá soar bem e ser esteticamente agradável quando ela se basear nas proporções derivadas da harmonia. E a harmonia, por sua vez, reproduz as relações que estão fundadas na própria constituição dos corpos materiais. Para Rameau a música imita a natureza porque reflete suas leis necessárias e universais. Rameau está perfeitamente dentro do quadro da estética clássica, no sentido de que o teatro e a pintura, p. ex., não reproduzem a concretude dos acontecimentos e a contingência do mundo, mas vão atrás do que deve necessariamente ocorrer.

Sobre isto, é relevante a afirmação de Aristóteles (Poética IX) “Não é ofício do poeta narrar o que aconteceu, mas sim representar o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade ... Por isso a poesia é algo mais filosófico e mais sério que a história, pois refere-se principalmente ao universal e esta ao particular.”

Para Rameau, assim, a arte musical consiste em combinar os sons segundo os princípios universais que a própria natureza determina para essas combinações, e com isso obtém o agrado do ouvinte, assim como o teatro clássico apresenta os caracteres e as ações segundo os princípios gerais que regem a conduta e as paixões humanas. Em ambos os casos intervêm a convenção e o artifício, mas longe de afastar-se da natureza, são esses instrumentos que permitem depurar os fatos e alcançar a natureza mais profunda daquilo que se pretende representar (imitar)

Para Rousseau, por sua vez, a natureza não é mais a natureza física, material, com suas leis imutáveis, e que precisa de um esforço de abstração para ser atingida por trás do véu das aparências. Essa concepção tem de ser derrubada para que uma outra forma de entender a natureza da música possa estabelecer-se. Para Rousseau, a natureza é o que é dado imediatamente à nossa experiência e, principalmente, a carga emotiva e passional que acompanha essa experiência. E o que imita plenamente essa natureza é a voz humana, com suas inflexões e acentos que reproduzem o movimento das paixões. Uma passagem do Ensaio ilustra isso com perfeição, no conhecido episódio das reuniões à beira das fontes:

Sob os velhos carvalhos centenários uma ardente juventude esquecia gradualmente sua ferocidade; familiarizavam-se pouco a pouco uns com os outros e, ao esforçarem-se por fazer-se entender, aprenderam a explicar-se. Lá se fizeram as primeiras festas, os pés fremiam de alegria, o gesto solícito não mais bastava, a voz o acompanha com acentos apaixonados, o prazer e o desejo mesclados faziam-se sentir ao mesmo tempo. Esse foi, então, o verdadeiro berço dos povos, e do puro cristal das fontes surgiram os primeiros fogos do amor.

É a comunhão das paixões que funda as primeiras sociedades humanas, e esse processo se realiza essencialmente pela imediaticidade da voz que põe as almas em contato direto. Essa passagem aponta para o desenvolvimento necessário da exposição do Ensaio: e das etapas que deve percorrer:

1) A sonoridade da voz deve ocupar o lugar do mundo físico dos gestos (oposição audível-visível)

2) O essencial na voz é o elemento vocálico, e não a articulação consonantal, pois é esse que veicula o acento.

3) A vocalização deve estar imediatamente ligada à melodização, o canto precede a fala. Daí surge a distinção entre as línguas do sul, melódicas, afetivas , e as do norte, que não mais transmitem as inflexões e perdem tanto a melodia como a própria vocalização.

Por fim, a dicotomia sul-norte irá revelar suas consequências políticas no capítulo final do Ensaio.

 

Conclusão

Ao conceber a música, como a mais próxima forma da linguagem original voltada para a comunicação das paixões, Rousseau pôde articular coerentemente sua teoria sobre a música com sua teoria da linguagem enquanto comunicação de paixões e a capacidade de estabelecer uma comunidade de seres humanos unificados por esse compartilhamento das paixões. Se a música tem sua origem nos acentos expressivos da voz humana que servem para comunicar as paixões, segue-se imediatamente a prioridade da melodia sobre a harmonia, que adquire um papel meramente auxiliar no reforço da linha melódica expressiva, e não deve intrometer-se em seu caminho nem ser notada por si mesma. Outra consequência é que, se a música está diretamente conectada ao campo ético-passional, ou espiritual, então as considerações que Rameau extrai da base física da harmonia não podem fornecer as bases da compreensão musical e, aos olhos de Rousseau, constituem um equívoco por tentar explicar a música em termos físicos. Essa é a razão pelo qual o debate com Rameau constitui o pano de fundo sobre o qual se desenrola toda a epopéia do Ensaio sobre a origem das línguas.