Jean-Jacques Rousseau

Carta a Christophe de Beaumont e 
outros escritos sobre a religião e a moral


Organização e apresentação de
José Oscar de Almeida Marques
Dep. de Filosofia - IFCH - UNICAMP

APRESENTAÇÃO

   Os dois mais conhecidos textos de Rousseau que articulam o tema da religião a suas investigações sobre a política e a moralidade, são, respectivamente, o capítulo sobre a religião civil do Contrato social e a “Profissão de fé do Vigário da Sabóia”, no Livro IV do Emílio. Publicados ambos em 1762, esses trabalhos foram preparados por uma lenta maturação cujos inícios remontam à época da reforma moral e intelectual do autor associada à “iluminação de Vincennes”  e à redação do Discurso sobre as ciências e as artes, de 1750. 
   Desse período de maturação datam diversos escritos que têm não apenas um significado histórico para o estudioso da evolução do pensamento de Rousseau, mas apresentam grande interesse intrínseco pela profundidade e alcance da reflexão neles desenvolvida. 
   O objetivo desta coletânea é trazer ao leitor esses escritos e outros posteriores à redação do Emílio e do Contrato social, vinculados aos temas da religião e da moral, presentemente não disponíveis em tradução, e que merecem um lugar de destaque ao lado das obras mais canônicas do autor.

   Embora não estejam propriamente dedicadas aos temas centrais desta antologia, as Cartas a Malesherbes que abrem o volume permitem, por sua natureza autobiográfica, contextualizar e dar uma certa unidade aos textos que se seguem, pelo que funcionam como uma excelente introdução à coletânea. 
   Chrétien de Malesherbes foi uma curiosa figura que conseguiu conciliar (et pour cause) a função de diretor da Censura e o papel de poderoso protetor de Diderot, Rousseau e dos enciclopedistas, tendo uma  participação paradoxal tanto na publicação do Emílio como na posterior supressão desse livro. No Natal de 1761 Malesherbes havia escrito a Rousseau manifestando sua apreensão pela vida solitária escolhida pelo filósofo, que vivia recluso em Montmorency, nos arredores de Paris. Para Malesherbes, a solidão de Rousseau, ao somar-se a sua “melancolia lúgubre” e à “negra bile que o consumia”, aumentava prodigiosamente sua infelicidade. 
   Em quatro cartas redigidas no mês seguinte, Rousseau buscou expor as razões de seu apego pela solidão, e desmentir que sua vida fosse por isso miserável: de fato era exatamente a solidão que lhe permitia usufruir prazeres de ordinário desconhecidos pelas demais pessoas. Extremamente bem escritas, e com uma qualidade literária e poética que, na particularmente na Carta 3, antecipa os Devaneios do caminhante solitário, as Cartas a Malesherbes possuem uma importância que vai além do papel normalmente reconhecido de ensaio preparatório para as Confissões que Rousseau já começava a planejar e cuja redação iniciaria alguns anos depois.

   O mesmo ano em que Rousseau escreveu suas cartas a Chrétien de Malesherbes assistiu também o cataclismo que convulsionou sua vida e fê-lo abandonar a pacífica existência que levava em Montmorency. Em 9 de junho de 1762 o Parlamento de Paris condenou às chamas o recém-publicado Emílio, ou da educação, decretando ao mesmo tempo a prisão de seu autor. Avisado com antecedência por seus protetores, Rousseau conseguiu fugir nesse mesmo dia, cruzando, na estrada para La Barre, com os próprios oficiais de justiça enviados para aprisioná-lo; os quais, diplomaticamente, fizeram que não o reconheceram. 
   O acordo tácito que provavelmente havia sido estabelecido exigia apenas que Rousseau abandonasse a França, mas a escolha de um refúgio seguro mostrou-se uma tarefa espinhosa. As autoridades de Genebra, sua cidade natal, haviam igualmente queimado cerimonialmente não apenas o Emílio mas também o Contrato social, e decidido secretamente aprisionar o autor caso tivesse a temeridade de aparecer por lá. Sua estadia em Yverdon, em casa de amigos, foi rapidamente interrompida por uma decisão do senado de Berna expulsando-o de seus territórios. Foi no vizinho principado de Neuchâtel, então sob domínio de Frederico II da Prússia, que Rousseau encontrou, por fim, um asilo precário pelos próximos três anos. 
   Como a autoridade secular havia sido célere na condenação ao Emílio por motivos religiosos, a própria autoridade eclesiástica não poderia deixar por menos, e foi assim que, em agosto de 1762, Sua Graça Christophe de Beaumont, Arcebispo de Paris, deu a público seu Mandement  pelo qual se condenava e proibia a leitura e a posse "de um livro que tem como título: Emílio, ou da educação [...] como contendo uma doutrina abominável, própria a derrubar a lei natural e a destruir os fundamentos da religião cristã; estabelecendo máximas contrárias à moral evangélica; tendendo a perturbar a paz dos Estados, a revoltar os súditos contra a autoridade de seu soberano; contendo um grande número de proposições respectivamente falsas, escandalosas, plenas de ódio contra a Igreja e seus ministros, transgressoras do respeito devido à santa Escritura e à tradição da Igreja, errôneas, ímpias, blasfematórias e heréticas."
   Assim, instalado em uma casa rústica, cedida por amigos, na aldeia de Môtiers, e finalmente reunido a sua companheira Thérèse Levasseur, Rousseau foi forçado a retomar a pena, produzindo febrilmente, no curto espaço de dois meses, sua resposta a Beaumont. Como no caso de outras famosas cartas de sua lavra publicadas neste volume, como a Carta a Voltaire e as Cartas morais, Rousseau trabalhou tendo em vista uma publicação, e seu objetivo não era justificar-se privadamente perante a autoridade do Arcebispo ou fazê-lo mudar de opinião, mas apresentar uma defesa pública e desmoralizar, por meio de uma escrita penetrante e ferina, a retórica de seus perseguidores.
   As circunstâncias em que se encontrava, proscrito e perseguido em três Estados e forçado a aceitar a benemerência de Frederico II, por quem não tinha simpatia, são sem dúvida a fonte da amargura com que Rousseau contempla e descreve, na Carta a Beaumont, suas vicissitudes dos últimos meses. De autor famoso e requisitado, que pretendia encerrar sua carreira literária e viver de forma modesta mas confortável dos rendimentos de seus livros, Rousseau viu-se transformado em pária social e perseguido político apenas em função de suas idéias. Ou, dado que essas idéias, como ele reflete, já eram conhecidas desde a publicação da Nova Heloísa e haviam sido expressas por tantos outros autores sem despertar tamanha hostilidade, ele se põe igualmente a suspeitar de uma conspiração jansenista, que descreverá mais detalhadamente nas Confissões.
   Enquanto texto de ocasião e com objetivo nitidamente polêmico, a Carta a Beaumont não trata as questões religiosas com a profundidade e o detalhe que caracterizam o texto muito mais sistemático e refletido da “Profissão de fé do Vigário da Sabóia”, incluído no Livro IV do Emílio. Seu principal objetivo, além disso, não é justificar ou defender suas idéias (ele não poderia fazê-lo de forma mais convincente que o Vigário...). Não há propriamente debate filosófico com Beaumont, por quem Rousseau demonstra pouco respeito intelectual e cujos ensaios de interpretação do Emílio são tratados como algaravia de colegial relapso. O que o interessa é defender e redimir sua própria pessoa, seu caráter e sua sinceridade religiosa, que haviam sido, em sua opinião, atacadas por Beaumont de forma ainda mais perversa que suas teorias. É principalmente a dimensão ad hominem do ataque de Beaumont que ele se sente compelido a rebater.
   Para isso, entretanto, ele deve mobilizar suas obras — como iria fazer posteriormente em sua defesa de Jean Jacques nos Diálogos. O autor de livros tão edificantes não poderia ser, ele mesmo, uma má pessoa. E aqui reside o grande mérito do presente texto: ele é o primeiro dos muitos olhares retrospectivos que Rousseau lançaria sobre sua produção literária passada, o precursor dos grandes comentários filosóficos/autobiográficos característicos de sua fase tardia. O episódio de sua fuga de Montmorency, deixando para trás um mundo que lhe transmitia uma relativa segurança e no qual podia ter um certo controle sobre seus planos, constitui efetivamente uma cisão brutal entre duas fases de sua vida: cessam a partir daí as expectativas e só há lugar para a apologética, o depoimento, e a recherche du temps perdu.
   A leitura da Carta a Beaumont é, assim, preciosa por nos informar sobre a atitude de Rousseau em relação a seu próprio trabalho teórico, particularmente quanto a suas reflexões sobre a religião. Premido pelas novas circunstâncias a avaliar criticamente sua produção, a identificar o que nela haveria de importante e permanente, Rousseau faz, em várias passagens, uma exposição das linhas gerais e dos objetivos de seu projeto intelectual e moral que é de grande utilidade, se não mesmo indispensável, para o estudioso de seu pensamento. É, porém, a reflexão pessoal sobre sua própria religiosidade, posta em dúvida por Beaumont, que o leva a expressar-se em termos mais explícitos e ousados que em qualquer outra parte sobre candentes questões da doutrina cristã, como a criação, a revelação, os milagres e o pecado original, e a procurar uma conciliação entre sua fé religiosa e suas concepções mais mundanas sobre o papel da razão e dos sentimentos naturais na condução da vida individual e no projeto de recomposição de uma sociabilidade humana voltada para os valores públicos mais fundamentais.

   A Carta a Beaumont constitui o texto mais longo e mais substancial desta antologia, mas o mais famoso e polêmico deles é certamente a Carta a Voltaire sobre a Providência, datada de 18 de agosto de 1756. O grande terremoto de 1755 em Lisboa, à época uma das maiores e mais ricas cidades da Europa, havia causado  aproximadamente 15 mil mortes , e, especialmente por ter ocorrido no dia da festa de Todos os Santos, com o desmoronamento de igrejas apinhadas de fiéis, produzira um transtorno nas formas de conceber as relações entre Deus, a natureza e a providência. A indignação foi expressa exemplarmente por Voltaire, em seu Poema sobre o desastre de Lisboa, que pôs em questão a existência de uma Providência benfazeja. 
   O texto de Rousseau é uma resposta a essa acusação, e uma defesa de sua fé religiosa, com a mobilização dos clássicos argumentos que buscam, desde a Antigüidade, conciliar a onipotência de Deus com sua benevolência. De grande interesse e originalidade são, principalmente, as considerações de Rousseau sobre a responsabilidade das próprias instituições e práticas humanas na magnitude do desastre: “convinde, por exemplo, que a natureza não reuniu ali vinte mil casas de seis a sete andares, e que se os habitantes dessa grande cidade tivessem sido distribuídos mais igualmente, e vivessem de maneira mais modesta, o dano teria sido muito menor, e talvez nulo”. 

  As Cartas morais, ou Cartas a Sophie, constituem um trabalho de grande fôlego, escrito sob a forma de um “catecismo moral”, cujo modelo subjacente é o Discurso do método, de Descartes. Dirigidas nominalmente à Condessa Élisabeth-Sophie-Françoise d’Houdetot, por quem Rousseau experimentara uma intensa paixão (que alegou ter sido a única de sua vida), elas foram escritas no início de 1758, após o conturbado fim desse relacionamento, e nunca enviadas à destinatária. Partes dessas cartas foram posteriormente incorporadas ao texto da “Profissão de fé”, mas seria errôneo ver nelas apenas um esboço preliminar e dispensável daquele trabalho; de fato, elas adquirem uma importância própria pela originalidade da organização, exposição e desenvolvimento do material, e pelo cuidado e polimento que Rousseau – tendo desde o início uma publicação em vista – dedicou a seu preparo.

   Nada se sabe sobre o Sr. de Franquières, destinatário da carta que Rousseau escreveu no início de 1769, aparentemente em resposta a uma série de considerações em defesa do agnosticismo religioso. O estilo não é mais tão assertivo como nos escritos anteriores: é como se Rousseau, tendo já deixado atrás de si suas grandes obras filosóficas e ocupando-se então apenas com a conclusão de suas Confissões, não tivesse mais a disposição de embrenhar-se em extensos argumentos em defesa de sua fé. E nem lhe é preciso: à suposição de que um apelo à certeza proporcionada pelo “sentimento interno” constituiria uma base pouco filosófica, o Rousseau tardio pode calmamente objetar que esse sentimento é o único guia que nos permite escapar aos infindáveis sofismas da razão, e que a própria filosofia, em toda sua pompa, não está ela própria em condições de dispensá-lo.

   Reúnem-se ao final da coletânea alguns fragmentos e textos diversos ligados ao tema da religião. O fragmento Sobre Deus é o mais antigo e remonta provavelmente a 1735, sendo uma das primeiras reflexões do autor sobre a questão da liberdade e a justificação da possibilidade de se escolher o mal. As duas Preces são também escritos de juventude, datando da época da residência nas Charmettes, em 1738 ou 1739. Sem pretensão filosófica, elas são reveladoras do tipo da sensibilidade associada à experiência religiosa de Rousseau, e, particularmente na segunda, introduzem informalmente certos temas que terão grande importância em suas reflexões posteriores, como a ubiqüidade do olhar de Deus e seu desígnio benfazejo, embora inescrutável por nós. 
   Uma curiosidade é o Memorial dirigido a Monsenhor Boudet, que descreve a conversão da Sra. de Warens pelo Padre Bernex e conclui com o relato do suposto milagre operado por intercessão desse prelado quando do incêndio que ameaçou em 1729 a casa da Sra. de Warens, em que Rousseau vivia. Quando, muitos anos mais tarde, Rousseau negou, nas Cartas escritas da montanha (1764), a possibilidade de milagres , este testemunho foi localizado e publicado na íntegra por seus adversários para causar-lhe constrangimento. Nas Confissões Rousseau afirma ter escrito esse memorial apenas dois anos após o incêndio, alegando em sua defesa sua ingenuidade à época, mas, de fato, o relato data de 1742, ou seja, mais de 12 anos após o acontecimento.
   O texto mais místico e enigmático da coletânea é a Ficção ou peça alegórica sobre a revelação. De datação incerta, já foi dado como extremamente tardio, talvez mesmo o último escrito a sair da pena de Rousseau. Hoje se aceita mais a hipótese de que tenha sido composto logo após a instalação de Rousseau no Ermitage, em abril de 1756; e neste caso ele faz propriamente parte da série de escritos que prepararam a redação da “Profissão de fé”.  O texto recebeu um atento comentário de Starobinski no 4º capítulo de A transparência e o obstáculo, e se divide em duas partes, escritas respectivamente na forma literária do devaneio e do sonho: a primeira sendo uma revelação filosófica em que “o santuário da natureza” abre-se ao entendimento do protagonista; a segunda, uma aterradora visão do destino reservado ao sábio que pretende curar a cegueira dos homens. As figuras de Sócrates e Jesus são contrastadas nessa tarefa, e o texto parece incompleto porque o sacrifício de Cristo não se consuma; por outro lado, o contraste entre a morte do filósofo e a permanência da palavra de Cristo pode ter sido intencionalmente criado.

   Todas as traduções foram feitas a partir das Oeuvres complètes de Jean-Jacques Rousseau, Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 5 vols. 1969-1995. O texto das Cartas a Malesherbes foi estabelecido por Marcel Raymond e Bernard Gagnebin; os textos das demais obras de Rousseau foram estabelecidos por Henri Gouhier.