Edição nº 592

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 31 de março de 2014 a 06 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 592

Os civis vestiram a farda?



Recentemente, tanto o meio acadêmico quanto a imprensa têm utilizado a expressão “golpe civil-militar” para designar o episódio que instaurou a ditadura no Brasil a partir de 1964. O objetivo é esclarecer que a iniciativa foi protagonizada pelos integrantes das Forças Armadas, mas contou com o apoio de diversos segmentos da sociedade, sendo que vários civis ocuparam cargos de destaque nos governos que se sucederam ao longo do período de exceção. A terminologia é contestada pelo professor Armando Boito Jr, do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Segundo ele, o esforço de esclarecimento é positivo, mas a solução encontrada é equivocada. “Se quisermos destacar o fato de que não foram apenas os militares os responsáveis pelo que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1988, devemos dizer que a ditadura militar brasileira foi a ditadura da grande burguesia e do imperialismo. Ditadura civil-militar? Penso que isso tem muito de modismo acadêmico”, provoca. Na entrevista que segue, Boito fornece mais detalhes sobre esta sua análise.

Jornal da Unicamp – Recentemente, tem circulado no meio acadêmico e na imprensa a expressão “ditadura civil-militar” para caracterizar o regime vigente no período 1964-1985. Fala-se também em golpe civil-militar. O senhor concorda com essa terminologia?

Armando Boito Jr.
- Eu não concordo com essa terminologia.  Ela foi inicialmente utilizada pelas forças que executaram o golpe de Estado de 1964. Os documentos do governo Castello Branco falavam em “Revolução civil-militar”. O objetivo era legitimar a ditadura militar, ocultando que era o Alto Comando das Forças Armadas que tinha assumido o controle do Estado brasileiro. Portanto, essa denominação tem uma tradição de direita, conservadora. Mais recentemente, tal terminologia foi retomada por intelectuais progressistas. A intenção, agora, é outra. Querem denunciar que a ditadura foi apoiada por civis, e que não se tratou de um regime imposto pelas Forças Armadas contra a vontade da sociedade no seu conjunto. A intenção é crítica, progressista, mas a solução encontrada é equivocada e não atinge o objetivo pretendido.

JU – Por que não atinge?
Boito - Tal denominação comete pelo menos dois erros. O golpe de 1964 foi um golpe militar. É verdade que tivemos a participação importante de civis no movimento golpista e nos governos militares. Por exemplo, o Ministério da Fazenda, que era um órgão de grande importância, sempre foi ocupado por civis. Porém, o fundamental é o seguinte: o golpe foi organizado e executado pela cúpula das Forças Armadas e, durante todo o período da ditadura militar, sempre foi o Alto Comando das Forças Armadas que designou o chefe do Executivo Federal – o “presidente”. As Forças Armadas passaram a tutelar o conjunto das instituições do Estado brasileiro. Sim, houve apoio “civil” ao golpe. Os grandes empresários e o imperialismo financiaram a propaganda contra o governo João Goulart e parte da classe média manifestou-se na “Marcha da família com Deus pela liberdade”.

Observe-se de passagem, contudo, que na então capital da República, essa marcha ocorreu apenas após o golpe de Estado. Essas manifestações foram a base social do golpe, não a sua direção. Não foi um partido político que derrubou o presidente João Goulart. Não foi a UDN que chegou ao poder. Essa é uma situação muito diferente daquela que verificamos nas ditaduras fascistas nas quais é um partido político organizado que assume o poder governamental e implanta a ditadura, como ocorreu na Alemanha e na Itália. É uma situação diferente também, e por outras razões, daquela que conhecemos com a ditadura do Estado Novo no Brasil. Em 1964, foi o general Mourão Filho que desceu de Minas Gerais com suas tropas, recebeu adesões de outras regiões militares e o presidente Goulart foi deposto.

Ademais, o termo civil é vago, genérico, não tem, no caso, nenhum valor conceitual. O apoio ao golpe na sociedade não reuniu, ao contrário do que pode sugerir o termo “ditadura civil-militar”, o conjunto dos “civis” e nem a maioria deles. A maioria dos “civis” era contra o golpe, foi vítima dele. Quando escrevemos ditadura militar, estamos nos referindo à instituição militar. Essa instituição funcionou, sim, no seu conjunto, sob comando unificado em defesa da ditadura. As dissidências, que ressurgiam periodicamente, eram eliminadas. Já quando escrevemos civil, estamos nos referindo ao conjunto da sociedade, e esta estava profundamente dividida diante do golpe. A maioria da classe operária, dos camponeses, parte da classe média e uma parte minoritária da burguesia sustentava, criticamente ou não, o governo Goulart e se posicionava contra o golpe de Estado. Uma vez vitorioso o golpe, passaram a fazer oposição à ditadura.

JU - Se uma parte da sociedade, ainda que minoritária, apoiou o golpe e apoiava ou participava da ditadura, não é estranho usar apenas o adjetivo militar para qualificar o regime?
Boito - Não, não é. Para compreender isso de maneira mais aprofundada temos de trabalhar com a distinção conceitual entre forma de Estado e bloco no poder. Vejamos a questão da forma de Estado. Ditadura militar é a denominação para a forma de Estado e para o regime político – a ditadura é uma forma de Estado e o fato de ela ser militar indica o essencial do regime político então vigente – que foram instalados no Brasil em 1964. Essa forma de Estado caracterizou-se, como já indiquei, pelo controle do Alto Comando das Forças Armadas sobre o Estado brasileiro. O Executivo federal era o centro do poder de Estado e ele foi militarizado. Eram os militares que indicavam o “presidente” de turno. O congresso apenas referendava. A eleição indireta não tinha competitividade nenhuma. Quando a denominada “eleição indireta”, que não era eleição coisa nenhuma, deixou de ser meramente homologatória da decisão do Alto Comando das Forças Armadas, o que ocorreu por ocasião da eleição indireta de Tancredo Neves em 1984, esse fato evidenciou que a ditadura militar encontrava-se em crise.

Além de controlar o Executivo Federal, as Forças Armadas estenderam seu controle às mais diversas instituições do Estado. As Forças Armadas agiam à revelia do Congresso: fecharam-no mais de uma vez, cassavam deputados eleitos, suprimiam e criavam partidos políticos etc. Controlavam, também, os governos estaduais: depuseram vários governadores eleitos, nomearam interventores militares em diversos Estados etc. A Constituição da ditadura, elaborada e aprovada em 1967, foi produzida sob a tutela das Forças Armadas. O Congresso Nacional, que se encontrava fechado pelos militares, foi chamado às pressas apenas para homologar a Constituição. O Judiciário estava sob controle militar. Guiava-se pela Constituição outorgada pelos militares. Os juízes de tribunais superiores que incomodassem os militares eram destituídos. As grandes empresas estatais eram, no mais das vezes, presididas por militares e tinham muitos militares nas suas diretorias e conselhos; os militares controlavam também a polícia política e as instituições que exerciam a censura sobre os meios de comunicação. Esse papel das Forças Armadas transcende a importância que, normalmente, as Forças Armadas adquirem em toda e qualquer ditadura. Como a ditadura é instaurada em momentos de crise que exigem, para a manutenção da ordem capitalista, maior atividade dos aparelhos repressivos, as Forças Armadas ganham, normalmente, importância em regimes ditatoriais. Mas no Brasil de 1964-1988, bem como nos demais países do Cone Sul à mesma época, o papel das Forças Armadas foi muito além dessa situação comum a todas as ditaduras. Naquela época, os movimentos populares e democráticos entoavam o coro “Vai acabar, vai acabar, a ditadura militar”. Estavam corretos: no conceito, na métrica e na rima.

JU – Os militares detiveram de fato o poder nesse período?
Boito - Não exatamente. Os militares controlavam o processo de tomada de decisões, como ocorre em toda ditadura militar. Porém, o conteúdo dessas decisões beneficiava alguns setores sociais em detrimento de outros. Aqui tocamos na questão da função social dessa forma de Estado que foi a ditadura militar. Devemos utilizar o conceito de bloco no poder ao qual me referi acima. Esse conceito refere-se, não à organização institucional do Estado, não às regras explícitas ou implícitas do jogo político e tampouco aos agentes – os militares, neste caso – que tomam as decisões fundamentais. O bloco no poder designa a relação das diferentes classes sociais e setores sociais com o conteúdo das medidas de política econômica, de política social e de política externa do Estado. Tal conceito designa, em resumo, as classes e frações que detêm o poder, isto é, as classes e frações de classe cujos interesses são priorizados pela política de Estado. No que tange ao bloco no poder, a ditadura militar não representou, de modo algum, o “poder dos militares”. As Forças Armadas agiram como representantes, fundamentalmente, dos interesses da grande burguesia e do imperialismo.

É certo que os militares lograram obter algumas vantagens – melhoria salarial, mais autoridade em diferentes esferas sociais. Contudo, não foram eles os que mais ganharam com a ditadura militar. Quem mais ganhou foram as grandes empresas nacionais e internacionais, principalmente estas últimas. O governo João Goulart era um governo apoiado no movimento popular e que contemplava também a média empresa nacional, procurando impor limites ao capital estrangeiro. O fluxo de capitais para o exterior era regulamentado, o mercado interno era priorizado, havia barreiras de diversos tipos. Quem mais lucrou com a derrubada desse governo e com o milagre econômico da ditadura militar foram as grandes empresas, principalmente as estrangeiras, que cresceram em ritmo acelerado.

JU – Essa distinção entre forma de Estado e bloco de poder é, então, fundamental para compreender a característica do regime?
Boito - A distinção conceitual entre forma de Estado e bloco no poder é fundamental. No que se refere à forma de Estado, temos uma ditadura militar; no que respeita ao bloco no poder, temos o poder da grande burguesia. É certo que os burgueses são “civis”, mas o problema é que eles usufruíam do poder de Estado em detrimento da grande maioria da população que também era composta de “civis”. Logo, o termo civil só introduz confusão. Se quisermos destacar o fato de que não foram apenas os militares os responsáveis pelo que aconteceu no Brasil entre 1964 e 1988, devemos dizer que a ditadura militar brasileira foi a ditadura da grande burguesia e do imperialismo. Ditadura civil-militar? Penso que isso tem muito de modismo acadêmico.