Edição nº 605

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 08 de setembro de 2014 a 12 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 605

Os riscos da ‘produção enxuta’ para a saúde dos trabalhadores

Segundo estudo da FCM, profissionais da metalurgia estão entre as categorias mais afetadas pelas mudanças organizacionais

No Brasil, os trabalhadores do setor metalúrgico pertencentes ao mercado de trabalho formal celetista se afastaram mais do trabalho para tratamento de saúde por doenças psíquicas que os profissionais da educação, ainda que estes também apresentem níveis elevados de adoecimentos. A constatação, que surpreendeu até mesmo a autora principal da pesquisa, a economista, socióloga e sanitarista Eunice Stenger, faz parte da tese de doutorado que ela defendeu junto ao Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, sob orientação do professor Heleno R. Corrêa Filho.

O estudo, que teve como recorte temporal o período de 2000 a 2011, deu origem a três artigos científicos. “O achado principal surpreendeu porque sempre esperamos mais adoecimentos psíquicos para trabalhadores de setores mais intelectuais. Entretanto, a pesquisa mostra maior prevalência de problemas psíquicos entre os trabalhadores da metalurgia, que tradicionalmente apresentavam mais problemas músculo- esqueléticos. A explicação para isso parece estar nas mudanças organizacionais que intensificaram o processo de trabalho e aumentaram o estresse no setor da metalurgia neste início de século”, analisa Eunice. A autora da tese destaca ainda que os professores, nos relatos da bibliografia médica internacional, compõem uma das categorias de trabalhadores que mais têm adoecimentos psíquicos.

Para desenvolver a tese, Eunice combinou dois métodos de trabalho. Inicialmente, ela fez um estudo de caso, que deu origem a um primeiro artigo qualitativo. Este abordou exclusivamente uma das fábricas de uma empresa multinacional de autopeças. Depois, a pesquisadora partiu para um estudo epidemiológico ecológico, comparando os dois grupos de trabalhadores, com foco nos afastamentos do trabalho por razões de saúde. Ambos os grupos foram estudados a partir das respectivas CNAEs [Classificação Nacional de Atividades Econômicas].

O primeiro método foi um estudo de caso qualitativo. Nele, a autora recorreu ao exame da documentação que compõe um processo judicial do Ministério Público do Trabalho (MPT) contra a empresa. Conforme Eunice, as condições de trabalho acusam riscos psicossociais aos trabalhadores, decorrentes da introdução de um novo modelo de gestão, conhecido como “Lean Production” e também como “Lean-Manufacturing” ou “Produção Enxuta”. No formato brasileiro, tal modelo organizacional expõe os trabalhadores a longas jornadas e a uma maior instabilidade no emprego. “Isso sem falar em outros fatores de pressão psicossocial, como a elevada rotatividade no emprego e a exposição a ruídos”, acrescenta a autora da tese.

Eunice observa que antes de realizar este estudo, ela havia feito outro, no final dos anos 90. Naquela oportunidade, ela entrevistou operários, gerentes e dirigentes sindicais. As informações obtidas foram posteriormente confrontadas com os adoecimentos relatados pelos peritos do MPT. “Essa metodologia criou oportunidade inédita de confrontar observação direta das causas dos adoecimentos com a visão de resultados posteriores sobre o trabalho e a saúde dos trabalhadores”, afirma a pesquisadora. O questionamento fundamental presente na investigação, diz, girou em torno do modelo organizacional que representa riscos psicossociais, gerador de adoecimentos, inclusive psíquicos.

Nos processos judiciais, relata Eunice, a empresa foi questionada pelo uso abusivo de longas jornadas e trabalho sem descanso semanal. Questões como o ritmo das atividades e o nível de ruído no local de trabalho também foram consideradas pelos peritos do MPT. A segunda abordagem metodológica empregada pela pesquisadora, que deu origem a outros dois artigos científicos, consistiu numa análise quantitativa, em âmbito nacional, das CNAES da metalurgia e do ensino. Para isso, ela recorreu aos dados da Guia de Recolhimento do FGTS e Informações à Previdência Social (GFIP), pertencente à Previdência Social, que pela primeira vez foi cedida para a academia.

Os dados nacionais de pagamentos de benefícios para Licenças para Tratamento de Saúde (LTS), de acordo com Eunice, foram utilizados para calcular a incidência anual de licença médica por grupos de doenças - definidos pela Classificação Internacional de Doenças (CID 10). Na pesquisa foram calculadas prevalências, o numerador corresponde aos trabalhadores doentes e o denominador a todos os trabalhadores formais registrados em cada categoria de atividade econômica, segundo a GFIP. Assim, os numeradores foram extraídos dos diagnósticos que motivaram as licenças, classificadas pela CID 10 no Sistema Único de Benefícios (SUB) do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Já os denominadores foram retirados do GFIP, cobrindo o período de 2000 a 2011.

Eunice enfatiza que nos artigos quantitativos foi apresentado um estudo ecológico descritivo que permitiu traçar as tendências das doenças mais prevalentes. “Precisa ficar claro que, conforme os dados apurados ao longo das investigações, as lesões externas é que foram a principal causa de afastamentos entre trabalhadores da metalurgia – variando de 125,4 a 221,6 afastamentos para cada 10.000 trabalhadores afastados com vínculo celetista”, informa a autora da tese. A segunda causa de afastamentos foram os distúrbios musculoesqueléticos, com 85,5 a 207,1 benefícios por 10.000 trabalhadores. Os transtornos mentais aparecem em terceiro lugar como causa de afastamentos por doenças entre metalúrgicos - foram de 19,8 a 58,8 casos para cada grupo de 10.000 trabalhadores. Entre os professores, a taxa foi de 11,5 a 38,9 afastamentos para cada grupo de 10.000 trabalhadores. 

O câncer apareceu como a única doença com incidência mais alta de LTS entre os trabalhadores da educação, o que é explicado pelo fato de a categoria contar com um elevado número de mulheres, nas quais o câncer de mama tem importante prevalência. A autora da tese conclui que a possibilidade de trabalhar com a GFIP trouxe mais luz para a linha de pesquisa em Saúde do Trabalhador. Ela lamenta, porém, não ter tido autorização para publicar os dados relativos aos adoecimentos psíquicos encontrados no estudo de caso. “É necessário quebrar o segredo estabelecido por empresas e órgãos de governo sobre as doenças e acidentes do trabalho sob a alegação de direitos comerciais e ameaças à individualidade. São argumentos que simplesmente não estão respaldados pela Constituição Brasileira”.

Na opinião da pesquisadora, é papel do governo e dos sindicatos permanecerem alertas, no sentido de exigir uma prevenção adequada para adoecimentos que exercem pressão sobre o sistema de Previdência Social. Eunice sublinha que sua pesquisa revitaliza o uso dos estudos ecológicos, que se mostram apropriados para a análise de agrupamentos de trabalhadores. “Além da experimentação biológica e a experimentação animal, a epidemiologia é a terceira e indispensável técnica de estudo sobre os grandes problemas de saúde pública, graças aos dados sobre as condições sanitárias (morbimortalidade) e à análise de riscos. Ela é o fundamento de evidência para a medicina”, sustenta. 

No caso dos estudos em Saúde do Trabalhador, acrescenta, a epidemiologia ganha à medida que os estudos ecológicos são diversificados. “É necessário quebrar o paradigma do nexo causal individual, que expressa a recusa de profissionais e pesquisadores em reconhecer que somente grupos coletivos de trabalhadores podem revelar frequências modificadas de adoecimentos e acidentes na forma de cálculos de risco epidemiológico sobre grupos humanos. Não faz sentido obrigar os trabalhadores solitários a ‘provar’ que estejam expostos ou doentes”, finaliza.

 

Publicação

Tese: “Adoecimentos em trabalhadores da metalurgia e trabalhadores do ensino: múltiplas abordagens qualitativas e ecológicas”
Autora: Eunice Stenger
Orientador: Heleno R. Corrêa Filho
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)

Comentários

Comentário: 

Prezada professora Eunice Stenger.
Sou coordenador do curso de Engenharia de Produção da Unicamp, e minha pesquisa tem foco exatamente na área de produção enxuta.
Li o que está descrito acima e discordo do que foi colocado sobre a questão da Produção Enxuta. Entendo que a professora não é da área e registrou as opiniões de trabalhadores e de empresas que dizem que implantaram a produção enxuta.
Mas apenas para que conste, o sistema de Produção Enxuta visa o aumento da produtividade e redução de custos por meio da melhoria do trabalho. Nenhuma melhoria deve ser implantada sem que haja uma análise ergonômica do posto de trabalho.
A questão de longas jornadas de trabalho, vai exatamente ao contrário dos princípios da Produção Enxuta, pois isso aumentaria os custos de produção. O objetivo é exatamente conseguir produzir dentro dos horários normais de trabalho.
O que ocorre, é que muitas empresas utilizam práticas de aumento de carga de trabalho, jornadas excessiva, etc. e dizem estar implantando técnicas de produção enxuta. Isso é exatamente o que não é Produção Enxuta.
Gostaria apenas de deixar registrado esse ponto, e coloco-me a disposição para quaisquer dúvidas, pois por ser um pesquisador nessa área discordo do que foi afirmado sobre essa filosofia de produção.
Atte.
Alessandro.

alessandro.silva@fca.unicamp.br

Comentário: 

Para mim a competitividade exacerbada empresarial utiliza erradamente métodos previstos pela "produção enxuta" como meio de ampliar os ganhos. O titulo do artigo induz infelizmente o leitor desavisado a condenar a "faca" e não o uso indevido feito pelo "agressor".

carobelopes@hotmail.com

Comentário: 

Cara Eunice: sou professor da Unicamp e entre minhas linhas de pesquisa encontra-se a produção enxuta, ou lean thinking. Não sei as fontes usadas em sua pesquisa sobre o assunto, mas a informação sobre a produção enxuta neste artigo do Jornal da Unicamp é totalmente incorreta. A produção enxuta é uma filosofia gerencial que nada tem a ver com aumento de jornada ou maior instabilidade no emprego. Fico à disposição caso queira mais informações e fontes sobre o assunto.

fpicchi@fec.unicamp.br