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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 18 de maio de 2015 a 24 de maio de 2015 – ANO 2015 – Nº 625Para que a história não se repita como farsa
Relatório da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni” sugere criação de linhas de pesquisa e produção de conteúdo sobre a ditadura militarA Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”, criada pela Reitoria da Unicamp para investigar eventuais arbítrios e violações de direitos humanos praticados contra docentes, alunos e funcionários da Universidade durante a ditadura militar, entregou o seu relatório final em solenidade no dia 1º de abril, trazendo uma advertência logo na introdução: “As faixas e cartazes erguidos nas recentes manifestações de rua em várias partes do país, por meio dos quais se reivindica intervenção militar, parecem evidenciar que ainda é precária a memória social sobre esse importante momento da história política brasileira”.
A professora Maria Lygia Quartim de Moraes, presidente da CVM, ressaltou na ocasião que “além de ser fundamental levantar os fatos, também era de nosso interesse – e daí a ‘Memória’ – a transmissão desses fatos às novas gerações”. Neste sentido, dentre as primeiras das oito recomendações contidas no relatório, estão a introdução na estrutura curricular “de conteúdos que contemplem a história política do país” e que incentivem o respeito “aos direitos humanos e à diversidade cultural”; e o incentivo à criação de linhas de pesquisa e produção de conteúdo referentes à ditadura militar.
Nesta entrevista concedida por e-mail, a professora Maria Lygia avalia a participação de jovens nas manifestações de rua, sem enxergar indicações de que sejam realmente eles os desejosos da volta dos militares ao poder. E diz confiar no “dom da empatia” dos jovens para que, melhor informados sobre os acontecimentos do período, possam se colocar no lugar daqueles que sofreram com a ditadura.
Jornal da Unicamp – Qual a sua opinião sobre a presença de parcela da juventude nas manifestações em que se ouve pedir a intervenção dos militares?
Maria Lygia Quartim de Moraes – As imagens e comentários sobre tais manifestações não me parecem indicar se são os jovens que querem a ditadura de volta. Por mais ignorante que um jovem seja, ele tem uma ideia de que a ditadura é o reino do proibir. Na verdade, o que vejo são ex-policiais, militares aposentados, a extrema direita dentro das Forças Armadas, enfim, todos aqueles que dominariam o poder na hipótese horrível de uma nova ditadura. Acho que os jovens estavam em massa nas manifestações de junho [de 2013] a favor de benefícios para a coletividade ou contra os gastos exorbitantes da Copa. Após a vitória da Dilma, o que vejo são os representantes das elites paulistas e da classe média que gostaria de ser rica e acha que o problema são as políticas sociais. De fato, não há como discordar do ex-presidente uruguaio José Mujica quando ele diz que a desgraça da América do Sul é a elite paulista!
A outra face do problema diz respeito às escolhas iniciais de Kátia Abreu e Joaquim Levy [para os Ministérios da Agricultura e da Fazenda], somada às execráveis figuras que dominam a Câmara Federal e o Senado, em maioria constituída pela bancada BBB (boi, bíblia e bala). Eu hoje sairei às ruas para defender as conquistas populares e o respeito às nossas instituições democráticas, que são insuficientes, mas melhores do que uma ditadura. E apesar de ter horror ao mercado financeiro e nunca ter comprado ações, comprei ações da Petrobrás em protesto pela tentativa de destruírem e sucatearem nossa maior empresa em benefício dos grupos petroleiros internacionais.
JU – O professor Alvaro Crósta, coordenador-geral da Unicamp, em sua fala na solenidade, atentou para uma possível falha das instituições de ensino na formação dos alunos. Concorda?
Maria Lygia Quartim de Moraes – Concordo porque foram os militares quem comandaram a chamada transição lenta e gradual, e o medo do terrorismo de Estado ficou de tal maneira incrustrado em nossa sociedade que se preferiu omitir a verdade a desagradar o alto comando do Exército. E esta é uma das consequências da impunidade dos torturadores e do silêncio até muito recentemente sobre a história da ditadura militar. Muitos jovens não têm a menor ideia do terror que foi viver sob uma ditadura militar! A censura a qualquer tipo de informação crítica é uma peça fundamental do processo de silenciamento da oposição, além do emprego direto da violência física. E foram essas crescentes restrições que levaram tantos jovens de minha geração a pegarem em armas para resistir à ditadura.
Na verdade, muitos da juventude de hoje – essa que tem a idade que minha geração tinha por ocasião do golpe – revela-se muito interessada nesse passado. Uma prova disso nós tivemos no processo de seleção de estagiários para trabalharem na Comissão. Achei que em um dia entrevistaria os 10 ou 15 que apareceram e, para nosso completo espanto, a inscrição chegou a 130. Então, começamos reunindo todos num anfiteatro e explicando o porquê da Comissão e das pesquisas que iriamos fazer, especialmente no AEL [Arquivo Edgard Leuenroth], onde estão guardados arquivos fundamentais. Foi bom ver como muitos estavam interessados pelo tema e se propuseram a ajudar mesmo que sem bolsa. Aí já começava o processo de transmissão e de compromisso dos alunos, de maneira que o golpe seja chamado de golpe e não de “revolução”; que o Estado assuma que foi terrorista nos anos da ditadura; e do significado e consequências de uma ditadura que realizou o que chamamos de modernização conservadora.
JU – O relatório recomenda a introdução de conteúdos sobre a história política do país na estrutura curricular dos cursos da universidade. Pode dar exemplos de como isso seria possível?
Maria Lygia Quartim de Moraes – Trata-se, na verdade, de transmitir às novas gerações o que aconteceu nas duas décadas de ditadura militar e terrorismo de Estado. A juventude, via de regra, ainda guarda o dom da empatia. A melhor maneira de despertar a empatia é conseguir que o ouvinte coloque-se no lugar daquele que dá seu testemunho. Eu começaria com os documentários e filmes da época. O documentário “15 filhos” (projetado pela primeira vez num evento que coordenei no IFCH sobre “A revolução possível: uma homenagem aos mortos e desaparecidos políticos”) é um bom começo. A Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) tem um site de sua Comissão da Verdade com excelentes depoimentos. Finalmente, em vários países do mundo a transmissão do drama dos campos de concentração utilizou o depoimento de pessoas que tinham vivido tal experiência. No Brasil, muita gente pode testemunhar.
O que quero dizer é que há uma infinidade de recursos e que não se trata exclusivamente de transmitir a história política do Brasil, mas principalmente de valorizar uma educação não fascista, acompanhando Foucault na sua proposta de uma vida não fascista. Isto é, que a tolerância, o respeito ao próximo, a abertura para o conhecimento e o altruísmo são valores que devem ser cultivados e transmitidos das mais diversas maneiras.
JU – Qual o balanço que faz do trabalho da CVM?
Maria Lygia Quartim de Moraes – Como se sabe, a atual Reitoria tem o mérito histórico de ter sido a primeira a propor uma Comissão da Verdade, em comparação com as dificuldades impostas aos meus colegas das duas outras universidades públicas paulistas. Em conversa com o professor Alvaro Crósta, quando do convite que recebi para presidir a comissão a ser criada, fiz duas exigências, por assim dizer: que Danielle Tega [sua doutoranda] participasse da comissão e que pudéssemos contratar alunos como estagiários, no propósito de reunir um grupo que se interessasse pelo tema e tivesse a capacidade de transmitir a seus colegas e próximos suas descobertas. Na verdade, fiz outra sugestão: que a comissão a ser formada levasse o nome do professor Octávio Ianni, de quem fui aluna e colega, vítima dos vários tipos de arbitrariedades cometidas pela ditadura contra os intelectuais de esquerda (cassado da USP, preso, etc.), que dedicou os seus últimos anos de vida à docência e orientação no IFCH, tendo recebido o título de Professor Emérito da Unicamp.
Há que se levar em conta que as atividades da Comissão foram intensas, abrangendo tanto a organização dos depoimentos (pois havia que definir os nomes a serem pesquisados, entrar em contato com aqueles e aquelas que se propunham a depor, organizar as pautas, compatibilizar horários com as disponibilidades para gravação), como as atividades de organização de eventos e, finalmente, as atividades de trocas com outras comissões reunidas hoje num coletivo de comissões universitárias.
Danielle Tega trabalhou como voluntária (e gastou muito do tempo em que poderia dedicar-se exclusivamente à escrita de sua tese) coordenando e dirigindo o dia a dia dos estagiários. Ela deve ter o maior arquivo de e-mail desse período! Além do mais, centralizou a comunicação com os responsáveis pelas gravações e foi da maior eficiência no contato com outros membros da Comissão. Razão pela qual, como sou uma pessoa que preza a verdade, o mínimo que eu poderia e posso fazer é agradecê-la por sua dedicação.
‘Testemunhos de atingidos transformam quem escuta’ “A realização de audiências públicas e os depoimentos colhidos de ex-estudantes e docentes da Unicamp foram fundamentais aos trabalhos da nossa Comissão. Primeiro, por abrir um espaço no qual os testemunhos das pessoas atingidas pudessem ser acolhidos pela comunidade acadêmica. Segundo, porque esse trabalho de acolhimento transforma também quem escuta, através do contato com as experiências que estão sendo transmitidas”, afirma Danielle Tega, que organizou todo o material colhido e redigiu o Relatório Final da Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”. A presença de Danielle na Comissão da CVM foi uma exigência da presidente Maria Lygia Quartim de Morais, que a orientou na tese de doutorado. A pesquisadora teve sua dissertação de mestrado pela Unesp (2009) publicada pela Editora Cultura Acadêmica, com o título “Mulheres em foco: construções cinematográficas brasileiras da participação política feminina”. Para a tese de doutorado defendida em março – “Tramas da memória: um estudo de testemunhos femininos sobre as ditaduras militares no Brasil e na Argentina” –, a autora realizou extenso levantamento de testemunhos de mulheres que militaram, foram sequestradas, tornaram-se presas políticas ou tiveram suas vidas atravessadas pelos horrores dos terrorismos de Estado do Brasil e da Argentina. A doutora em sociologia recorda que no início dos debates para a constituição da CVM da Unicamp, decidiu-se como imperativo que deveria ser uma Comissão da Verdade e “Memória”. “Nosso interesse não era apenas pesquisar documentos que poderiam trazer algo novo, mas, principalmente, realizar um trabalho de transmissão, repudiando a violência e o arbítrio instaurados com o do golpe de 1964. Também acredito que eventos e seminários sobre o tema, como o que realizamos na Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), proporcionam um relevante efeito pedagógico – alunos da pós-graduação participaram da sua organização e, no público, estavam estudantes do Colégio Técnico de Limeira (Cotil), da própria FCA e de escolas estaduais de Limeira.” Na opinião de Danielle Tega, o Relatório Final da CVM contém recomendações de medidas cabíveis no âmbito da Universidade, como a introdução de conteúdos sobre o período da ditadura militar na estrutura curricular. “É possível, por exemplo, destacar as experiências de homens e mulheres que lutaram contra esse regime terrorista, a participação empresarial nas engrenagens econômicas e repressivas, além de temas que incentivem o respeito aos direitos humanos e às diversidades culturais e sexuais. A criação de linhas de pesquisa e a produção de conteúdos sobre essas questões também são práticas de uma política universitária comprometida com os trabalhos de transmissão dessa memória.” A Comissão da Verdade e Memória “Octávio Ianni”, presidida por Maria Lygia Quartim de Moraes, tem como membros titulares os professores Wilson Cano (IE), Ângela Maria Carneiro (IFCH), Caio Navarro de Toledo (IFCH) e o advogado Eduardo Garcia de Lima. O professor Yaro Burian Júnior (FEEC) participou da CVM desde a criação até outubro de 2014. |
A Unicamp não foi uma ‘ilha’ em meio à ditadura, mas ‘quase’ Wilson Cano “A Comissão da Verdade e Memória foi boa para a Universidade por colocar tudo no papel. A Unicamp não foi nem poderia ter sido uma ilha (como corretamente disse o professor Caio Toledo), pois vivíamos uma ditadura que estava presente de forma direta ou indireta em todo o território brasileiro. Mas foi “quase uma ilha”, sim, porque tinha um homem chamado Zeferino Vaz à sua frente. Nos depoimentos colhidos pela CVM, não vamos encontrar casos internos de punições, reprimendas e ameaças. Mas houve demissões na Medicina Preventiva e de Rodolfo Caniato (a pedido do diretor da Faculdade de Educação, e não de Zeferino); o caso da intervenção por Paulo Maluf (fruto da ditadura); e o caso de Rogério Cerqueira Leite, que teve sua indicação para reitor rejeitada por imposição militar. Zeferino Vaz era um homem controvertido, de primeira hora do movimento de 31 de março, mas apostou na universidade que queria e trouxe economistas como eu, autodeclarados de esquerda, e também muitos cientistas perseguidos pela ditadura. Ele acreditava, realmente, que a ciência está acima de tudo (da política e da razão) e que tinha uma obra a fazer. Cada um de nós economistas deixou seu emprego para vir montar a área de humanidades, cujo piloto era a economia. Não poderíamos entrar em nenhuma outra universidade pública; na USP, jamais. Jamais teríamos montado um Instituto de Filosofia e Ciências Humanas ou um Instituto de Economia como aqui, com enorme grau de liberdade e acessibilidade crítica, expostas em nossas aulas, declarações e artigos. A Unicamp foi uma anomalia em relação ao resto da academia, mas não foi uma ilha porque aqui dentro também tinha gente da ditadura. As aulas de EPB (estudos de problemas brasileiros) eram dadas por oficiais aposentados do SNI ou gente da mesma qualidade e parceria; o chefe de Gabinete, [Arnaldo] Camargo, era delegado do DOPS e despachar com ele era bem desagradável – eram moedas de troca de Zeferino. O relatório da CVM talvez sirva de lição para quem se diz apolítico ou não prestou atenção nos horrores da ditadura – e de que aquilo aconteceu aqui. Principalmente agora, que assistimos panelaços e manifestações de rua pedindo – incrível! – o impeachment (que é golpe) e os militares de volta. O relatório é útil para as pessoas lerem e refletirem sobre o que se passou e o que podemos vir a passar de novo. Tínhamos um país altamente politizado entre o final dos 50 e início dos 60. Isso porque foi o primeiro momento da nossa história em que a maior parte da população era urbana. Era a década da industrialização, quando passou a se destacar um segmento de classe social importante, dos trabalhadores industriais – uma classe operária que tinha sua militância política. A intelectualidade também era outra, uma intelectualidade crítica, que não tinha medo, pois havia um grau de liberdade inacreditável no Brasil. Por isso, não havia medo de exercer a crítica e pleitear reformas absolutamente imprescindíveis para o país – tributária, financeira, urbana, agrária. Uma série de reformas que os militares fariam depois de 64, mas à maneira deles, o que resultou em problemas como o agravamento da distribuição de renda, rebaixamento do salário mínimo, nessa coisarada que sabemos. A ditadura fez muito mal para o país como um todo, mas em São Paulo, por ser uma cidade grande com universidades públicas grandes, a coisa pesou na academia – e principalmente, embora não exclusivamente, na USP. Não diria que houve uma lavagem cerebral, mas uma condução política diferente, de que se vivia uma situação de normalidade. Como os militares conseguiram isso? Cortando cabeças, sobretudo no Instituto de Física e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, onde estavam Florestan Fernandes e tantos outros que foram afastados, demitidos, aposentados. Passa o tempo e se tem a reabertura. Ocorre que em todos esses anos de formação tivemos outro fenômeno, que foi o desleixo da ditadura para com a saúde e a educação. Na educação, ela facilitou a privatização do ensino, desde o ensino básico e principalmente o superior, naturalmente com outra conotação política e que tem formado gente com baixa qualidade técnica. A formação ficou tão ruim e alienada da realidade que se tornou muito mais difícil ter um ensino crítico, não apenas em economia, mas em praticamente todas as áreas. Ao mesmo tempo, temos a questão do produtivismo na universidade, com a obrigação de escrever e publicar vários artigos por ano e se ganhar pontos para o curso. Toda a academia foi direcionada para esta produção massiva de textos, sendo raros aqueles que possuem valor crítico ou relevância média. Da mesma forma, não se faz uma análise crítica do conteúdo das aulas, que podem ser banais, sem que haja cobranças. A universidade está nesse impasse bastante perigoso. Vivemos a sociedade da irrelevância, da individualidade, do consumismo e o saber crítico foi por água abaixo, sem termos como torná-lo presente porque a sociedade já não conhece seu passado. Os alunos de hoje não conhecem os episódios da ditadura. Nesse sentido, acho importante que seja discutida a sugestão do relatório para que os cursos da Universidade promovam a discussão ou interlocução de matérias sobre o período da ditadura militar. Temos hoje uma vasta literatura, que pode ser acessada inclusive eletronicamente, a exemplo deste relatório da Comissão da Verdade e Memória, que ficará online. É um avanço, mas os alunos precisam ser conduzidos a isso, pois não o farão de moto próprio.” |
Sobre as manifestações em defesa da intervenção militar Caio Navarro de Toledo "Passados 30 anos do fim do regime militar e após a divulgação dos resultados das investigações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), foram chocantes algumas faixas exibidas nas ruas de 2015 que poderiam ser sintetizadas pelas palavras de ordem: Abaixo a democracia, ditadura militar já!Como explicá-las? Certamente, não obteremos respostas convincentes se indagarmos aos “órfãos da ditadura” quais as razões do pedido da volta dos militares. Por que a preferência pela ditadura em detrimento da democracia? Seria por que esta teria fracassado? Por ventura, no regime militar, a corrupção – inerente e congênita à ordem capitalista – teria sido extinta, a inflação inexistido, uma equilibrada distribuição de rendas teria ocorrido, a liberdade de expressão foi ampla e irrestrita, uma política externa soberana foi adotada pelos militares, enfim, a paz social reinou sobre todos os brasileiros? Ou as palavras de Garrastazu Médici sintetizariam os “saudosos 21 anos de regime militar”: “Sinto-me feliz todas as noites quando assisto o noticiário. Porque, no noticiário da Globo, o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz”?Como carecem de argumentos consistentes os depoimentos daqueles que, a rigor, “não sabem do que falam”, cabe então ao estudioso levantar hipóteses para explicar o motivo das insólitas faixas de “intervenção militar já” nas ruas de algumas cidades do país.Inicialmente, esclareça-se que esta demanda de grupúsculos de direita não tem ressonância junto a setores expressivos da chamada sociedade civil brasileira, nem chegam a sensibilizar o conjunto dos militares na ativa. Embora continuem afirmando que a “Revolução de 31 de março” permitiu amplas realizações econômicas e tecnológicas – o Brasil não se tornou o 8º PIB do mundo? –, parece que os altos escalões militares não se dispõem a protagonizar mais uma aventura golpista.Embora a saída golpista não tenha consistência política e não seja a bandeira de agentes políticos relevantes, isso não significa que devamos acreditar que a democracia política esteja consolidada no país. Certamente, não está. Se estivesse, tais bandeiras golpistas seriam rechaçadas pelas lideranças que têm convocado manifestações contra o governo Dilma Rousseff. Na medida em que, de bom grado, aceitam estes golpistas como aliados, é de se concluir que estas lideranças de direita não têm grande apreço pela democracia.É de se reconhecer também que ainda é precário, no interior da sociedade brasileira, o conhecimento sobre o golpe de 1964 e dos perversos efeitos da ditadura militar. A este respeito, dois dados estatísticos são esclarecedores: mais de 80% dos brasileiros nasceram após 1964, enquanto 40% nasceram após o fim da ditadura militar. Nas escolas de ensino médio, o pré-1964 e o regime militar são raramente examinados e debatidos. Apenas recentemente, o debate sobre o golpe de 1964 e a ditadura militar passaram a ter alguma relevância para a TV, rádio e mídia impressa. Mas, como surgiram, logo desapareceram dos noticiários. BATALHA PELA MEMÓRIA Reconhecendo a enorme contribuição do Relatório Final da CVM para elucidar a história política recente do país, algumas questões são impositivas: será o Relatório amplamente divulgado e debatido nas escolas, sindicatos, quartéis, entidades religiosas e culturais, sociedades de bairros etc.? Serão produzidos filmes e vídeos – divulgados de forma massiva – documentando as violações dos direitos humanos durante a ditadura? Serão construídos museus históricos e centros de documentação nos grandes centros urbanos sobre o período da ditadura a fim de permitir à maioria da população brasileira um melhor conhecimento de nossa história política recente?No plano da comunidade acadêmica da Unicamp, impõem-se também iniciativas de natureza pedagógica e simbólica. Orientada pelo Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, a CVM “Octávio Ianni” fez “Recomendações”, e destaco duas de caráter simbólico: a) é proposto que o Conselho Universitário (Consu) coloque novamente em discussão as moções de quatro unidades da Universidade que pedem a revogação do título de Doutor Honoris Causa concedido ao coronel Jarbas Gonçalves Passarinho. A expectativa dos setores democráticos da instituição é a de que essa homenagem – tal como recomenda o Relatório Final da CNV – seja anulada, pois nenhum mérito científico ou cultural, em 1973 ou hoje, ostenta o militar; pelo contrário, teve ele papel decisivo no obscurantismo cultural imposto pelo regime militar na medida em que – logo após o AI – contribuiu para a expulsão de docentes, pesquisadores, funcionários e estudantes das universidades brasileiras; b) outra recomendação de nossa Comissão da Verdade pede que se esclareça ao público – que tem acesso ao Painel da Praça das Bandeiras do campus – que o “Senhor Presidente da República” (marechal Humberto Castelo Branco), ali mencionado, era o chefe da ditadura militar existente no país e um dos principais responsáveis pelo golpe de Estado de 1964. Para satisfação dos setores democráticos, é importante informar que 218 docentes da Unicamp (na ativa e aposentados), em abril de 2015, solicitaram à Adunicamp que construa, próxima a este Painel, uma escultura – na forma de desagravo – que homenageie os membros da comunidade acadêmica que sofreram violências físicas e morais durante a ditadura militar.Por último, diria que a democracia política no Brasil – embora hoje não esteja potencialmente ameaçada – apenas se consolidará com a realização de profundas reformas sociais e econômicas. Enquanto essas transformações não significarem mudanças concretas e visíveis para a maioria da população brasileira, a democracia não deixará de ter características e dimensões formalistas. O formalismo da democracia política – uma ordenação institucional que não permite mudanças reais e substantivas no cotidiano dos trabalhadores e setores populares – poderá sempre implicar a indiferença ou apatia deles em relação à escolha do regime político. Como a história na ordem capitalista registra, “soluções” autoritárias e ditatoriais – que terão efeitos nefastos, notadamente para as grandes maiorias –, assim, sempre estarão à espreita no interior da cena política. Não desejamos que certas faixas erguidas no pré-1964 e algumas levantadas nas ruas em 2015 façam qualquer sentido para a grande maioria da população brasileira.” |