Edição nº 647

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 29 de fevereiro de 2016 a 06 de março de 2016 – ANO 2016 – Nº 647

Mano em campo minado


A voz de Mano Brown pode ser ouvida nas letras das músicas que canta. Nas entrevistas que dá para a imprensa, e não são muitas, Mano Brown é equilibrista. Alguém que nunca fala de bate pronto porque conhece seu interlocutor: o campo minado da mídia. Prestigiado por seu protagonismo, e ao mesmo tempo estigmatizado pela imprensa, o artista, talvez sem perceber, acaba em suas aparições utilizando com maestria, quando julga necessário, recursos linguísticos que podem modular sua entrevista conforme um ângulo menos desfavorável. Um desses recursos, a metadiscursividade, foi pesquisado por Beatriz Ferreira Silva em sua dissertação de mestrado defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

A metadiscursividade se relaciona com uma maneira de formular frases fazendo referências ao próprio discurso, isto é, ao que foi e ao que será dito. Pode ser a retomada do próprio discurso ou da fala do outro ou mesmo avaliações e ressalvas sobre o que a pessoa irá dizer. “Mano Brown usa o metadiscurso para um movimento de negociação de perspectivas que vai envolver sua argumentação sobre os temas instaurados na entrevista”, reflete a pesquisadora. Alguns exemplos estão presentes em trechos de entrevistas nos quais o rapper diz: “tem uma coisa que eu sempre digo...”. Ou quando recapitula: “você fez uma pergunta...”, ou ainda quando precisa ponderar sobre a pergunta que lhe fizeram e sinaliza: “se eu te disser isso, pode parecer...”.

Os exemplos foram extraídos dos dois programas de TV utilizados para a análise, cujo objetivo final foi verificar como o metadiscurso pode surgir em diferentes contextos de entrevista: formal e informal. Foram escolhidas as participações de Brown no programa Roda Viva, na TV Cultura de São Paulo, em 2007, e a entrevista concedida ao programa (já extinto) Papo com Benja, da L!TV, canal online do jornal Lance, em 2011.

Beatriz utilizou como metodologia de pesquisa protocolos de transcrição que consideravam não apenas o que estava sendo dito, mas de que maneira estava sendo dito ou seja, aspectos verbais e não-verbais da linguagem. Tais protocolos também levam em conta o momento histórico e envolvem uma reconstrução contextual dos momentos de entrevista. “A pesquisa foi guiada também pelo intuito de desenvolver um diálogo entre os estudos da Linguística Textual e abordagens de base sociológica, sobretudo por meio da contribuição da obra de Pierre Bourdieu, cujos textos ajudam numa reflexão sobre o campo jornalístico e as entrevistas”, afirma a autora.

Diferentes

As diferenças entre as entrevistas ocorrem, primeiramente, quanto às características dos cenários dos programas. No Roda Viva, o rapper estava no centro de uma arena. Respondia questões formuladas à sua frente ou pelas costas. Precisava ser rápido para conseguir movimentar a cadeira a tempo de encontrar o dono da pergunta entre sete entrevistadores. Já no Papo com Benja, havia uma configuração diferente. Mano Brown também ocupava o centro da tela, porém sentava-se ao lado do apresentador do programa que, a todo o momento, fazia referências positivas sobre o convidado.

Essa configuração de cenário e espaço também interferiu no andamento da interação ao longo do programa. A entrevista ao Roda Viva, mais cerimoniosa, ganhou ainda mais um caráter solene. Isso porque Mano Brown pouco concede entrevistas e participou do programa em setembro de 2007, meses depois do confronto entre público e policiais no show de seu grupo musical, os Racionais MC’s, na programação da chamada Virada Cultural. “A participação dele se deu nesse ano em que a mídia tinha trabalhado a inserção dos Racionais MC’s de uma maneira muito polêmica”. 

No programa Papo com Benja, além do ambiente mais descontraído, Mano Brown é chamado para a entrevista muito por ser torcedor do Santos Futebol Clube. O programa foi gravado em 2011 quando o time tinha acabado de se classificar para a final do campeonato mundial de clubes. 

Beatriz explica que as interações em ambas as entrevistas são impactadas, também, pela diferença entre os apresentadores dos programas: Paulo Markun, no Roda Viva, com uma carreira bastante consolidada no campo jornalístico, e Benjamin Back, cuja formação profissional não se deu no jornalismo e que foi inserido no campo por meio do jornalismo esportivo.

Tópicos discursivos

Beatriz fez a transcrição dos programas identificando os tópicos de discussão, ou seja, “daquilo sobre o que se fala” em cada entrevista. “Levamos em conta que um dos programas, o Roda Viva, tem uma proposta de entrevista que é muito mais ligada a temas relacionados à atuação profissional do convidado. E no Papo com Benja o tema principal será sempre o esporte”.

A análise mostrou que o tema “futebol” dominou o programa Papo com Benja, mas que também apareceram outros subtemas como o racismo, o racismo no futebol e a música, incluindo o gosto musical do Mano Brown. Não houve nenhum tópico relacionado com a periferia, tema preferido no programa Roda Viva.

No programa da TV Cultura, a quantidade de diferentes tópicos foi maior, com quatro conjuntos de temáticas todos bastante ramificados: o próprio Mano Brown, a sociedade, a periferia e a música.

Beatriz pesquisou o uso do metadiscurso a depender dos tópicos discutidos. A isso ela chama de negociação, isto é, houve maior negociação conforme uma maior incidência do metadiscurso nos tópicos. “Quando sujeitos vão tratando de certos tópicos e não de outros, num contexto de legitimação, com esses de grande alcance midiático, as entrevistas legitimam esse sujeito, de algum modo, a se tornar alguém ‘autorizado’ a tratar de determinados tópicos”.

Em consonância com a hipótese de pesquisa, os resultados mostraram que em uma entrevista que envolve muitas “negociações”, como é o caso do Roda Viva, os expedientes metadiscursivos estarão muito presentes, sobretudo nas falas daqueles que estiverem numa posição de “defesa” nas interações face-a-face como as entrevistas.

Reflexão

A pesquisadora explica que os recursos metadiscursivos são unidades de análise que exibem a reflexão que os sujeitos fazem sobre a linguagem. É como se, para falar sobre determinado assunto, fosse necessário se distanciar sobre o dizer e pensar sobre ele. “No caso das entrevistas com Mano Brown a reflexividade se faz bastante necessária, pois trata-se de um sujeito que precisa se inserir nesses dois contextos do campo jornalístico (formal e informal) de modo bastante estratégico e cuidadoso”.

Mano Brown, afirma a pesquisadora, tem um protagonismo forte no campo de produção cultural da periferia que o habilitaria a falar por ela. Mas, de outra forma, o rapper é estigmatizado (até mesmo por parcela da pela própria periferia) quando “ascende simbolicamente, economicamente, e socialmente”. Como trata e denuncia temas da periferia, passa a ser visto como alguém que, por estar em outra posição social, não irá sofrer aquelas condições impostas a essa população que é retratada em suas letras. Sendo visto como uma figura representativa de um grupo social, passa a ter que lidar com representantes de outros campos (como o jornalístico), que veiculam uma representação da periferia muito diferente daquela que ele tem.

“Foi relevante a nossa conclusão de que o metadiscurso na fala de Mano Brown nessas entrevistas está muito mais ligado a certos tópicos que mobilizam as vivências da periferia, a representatividade e a estigmatização desse sujeito. Vimos que esses recursos de linguagem são muito usados para ações do rapper de contraposição e de resistência a certos ‘efeitos de real’ que o jornalismo e os entrevistadores acabam construindo sobre algumas questões”. “Efeitos de real” dizem respeito à discussão do sociólogo Pierre Bourdieu acerca dos mecanismos de funcionamento do campo jornalístico. São os registros e ideias que não coincidem com a realidade.

Ela afirma que muito dessa articulação e habilidade do rapper com a linguagem nas entrevistas se deve aos saberes incorporados por Mano Brown em sua trajetória no rap. “Estar exposto a situações de desigualdade social faz com que as pessoas incorporem certas disposições para agir de certo modo e não de outro”. No caso da periferia, o rap acaba se tornando o lugar de uma reflexão e de uma problematização social e cultural, acentua Beatriz.

De modo simplificado, Mano Brown não aceita ser manipulado. “Por isso é tão importante o uso de recursos de linguagem”. O rapper acaba por questionar os pressupostos das perguntas dos entrevistadores. Os exemplos mais contundentes estão relacionados aos tópicos sobre a periferia, especialmente no Roda Viva.

Outros tópicos marcados pelo uso de recursos metadiscursivos ocorrem nos momentos em que os entrevistadores cobram um papel de responsabilidade do rapper na resolução dos conflitos da periferia. O metadiscurso, nesses casos, compõe uma reação do rapper a essa cobrança. O uso do metadiscurso nesses tópicos evoca a resistência do rapper em relação a duas visões bastante específicas dos contextos de entrevista que são retratar a periferia pelo viés da violência e da criminalidade e colocar a responsabilidade em seus agentes na resolução desses conflitos.

Publicação

Dissertação: “Metadiscursividade em entrevistas: a inscrição de Mano Brown no campo jornalístico”
Autora: Beatriz Ferreira Silva
Orientadora: Anna Christina Bentes da Silva
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)