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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 25 de abril de 2016 a 01 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 653Rosa despetalada
Tereza foi assassinada pelo ex-companheiro com dois tiros à queima-roupa. O crime foi no rancho onde morava o casal. Apanhado em flagrante por um homem que passava por perto, o criminoso não foi preso, mesmo que o delegado tenha comparecido à cena do crime. Ao contrário, ele pode desabafar e contar sua história: matou Tereza porque, embora tenha construído o local para ambos, ela recusou. Não quis a felicidade que ele oferecia e preferiu ir embora com outro. A cabocla Tereza deveria ter se portado de outra maneira. Mas foi assassinada, e esta história vem sendo cantada há pelo menos 75 anos. No auge do sucesso da música caipira ou sertaneja “de raiz”, entre as décadas de 1950 e 1970, a música foi uma das mais conhecidas e admiradas.
Nessa época, mulher de verdade (no universo que essas canções pretendem representar) não poderia nunca já ter sido beijada. Deveria ser uma companheira meiga e carinhosa e precisaria ter “o perfume da rosa”, como dizem outras canções do mesmo período. Assim se casaria, seria uma mãe zelosa, daquelas que deixam a mesa do café pronta. De outro modo, certamente ficaria para titia.
Mas a violência contra a mulher, ou mesmo uma representação hoje considerada por muitos como equivocada, não está presente só neste período clássico da música sertaneja. Outras correntes do mesmo estilo como o sertanejo romântico, entre as décadas de 1980 e 1990 e mais recentemente o chamado sertanejo “universitário”, também trazem algo de podre no reino do brejeiro, como percebeu Amanda Ágata Contieri quando começou a pensar em desenvolver uma dissertação de mestrado na área de Linguística Aplicada. “Eu parei para ouvir e me dei conta que tinha algo errado ali... O homem estava dizendo que batia na mulher, que a matou porque ela não quis ficar com ele, isso em grandes clássicos da música sertaneja. Essas músicas são uma forma de olhar para algo que todos falam. É uma questão social porque a música retrata algo que acontece na vida. Se a música faz sucesso é porque aquele discurso é aceito pelas pessoas”.
Não se trata de demonizar o estilo. Amanda faz questão de salientar que exemplos idênticos ocorrem em outras categorias de canções. A música sertaneja foi escolhida por ter picos de sucesso ao longo de muitos anos. A complexidade da cultura sertaneja, “que não se constitui como um universo uníssono, mas que, pelo contrário, compreende, no seu interior, visões de mundo bastante diferenciadas e, por vezes, contraditórias” não é ignorada. A dissertação “’As mais tocadas’: uma análise de representações da mulher em letras de canções sertanejas” faz então uma análise de 17 canções, escolhidas entre uma pré-seleção de 80 músicas. A autora dividiu o estudo em temas, levando em conta os diferentes períodos: o primeiro tema foi a mulher idealizada. Depois, o matrimônio, a maternidade, o corpo feminino e, por último, a violência contra a mulher. “Procurei verificar de que modo os compositores das letras das canções examinadas fazem uso estratégicos de recursos gramaticais e estilísticos da língua, como por exemplo, a adjetivação, a passivação, a nominalização e figuras de linguagem, para suscitar interpretações sobre o que constituiria a identidade da mulher brasileira”.
O objetivo principal da pesquisadora era verificar se essas representações se modificaram ao longo dos anos e de que forma isso ocorreu. Além disso, ela pretendia contribuir com a educação escolar, já que os resultados da pesquisa podem ser úteis para os professores de Língua Portuguesa que se interessam em abordar o gênero por uma perspectiva crítica. “A música sertaneja costuma ser rejeitada no espaço escolar e nos materiais didáticos. É quase sempre vista como simplória, como desprovida de sofisticação, em comparação com outros gêneros musicais. Mas não se pode ignorar o poder das representações de identidade veiculadas por suas letras. A música sertaneja é ouvida por uma significativa parcela das famílias brasileira”, aponta.
Idealizada e subalterna
A pesquisa revelou que, embora algumas mudanças no discurso de fato ocorreram, especialmente quando se trata da maternidade, do casamento à virgindade, a imagem construída da mulher nas canções analisadas ainda a colocam em posição inferior. A passividade é sua principal característica. Em Meu sonho de amor (1970), gravada pela dupla Lourenço e Lourival, o cancioneiro procura alguém “que tenha o perfume da rosa/ antes de tudo seja meiga e carinhosa/que sua boca ninguém tenha beijado”. A mulher não beija e sim, sua boca é beijada. Em contrapartida, o homem amou, amou, amou e muito mais haverá de amar: “Se eu encontrar alguém assim em meu caminho/ Entregarei de corpo e alma o meu carinho/ Terei então o grande amor por mim sonhado/ Esquecerei os desamores do passado.”
Para Amanda, os adjetivos usados na canção sugerem o desejo de que a pessoa a ser amada seja uma mulher sempre dócil em suas relações, disposta a agradar o outro, independentemente da natureza do modo de agir desse outro. A mulher ideal é aquela que não oferece resistência.
Em geral as músicas do período de 1950 a 1970 retratam a mulher idealizada, linda e limpa. “As músicas sempre citam o perfume, e a pureza da mulher, especialmente as mais antigas, quando a virgindade ainda era um tabu e a mulher era encorajada a limpar a casa como se ela própria fosse uma extensão dela – quanto mais limpa ela e a casa estivessem, melhor ela seria”.
Para o estilo sertanejo romântico, que veio depois, a mulher idealizada é tratada como um troféu, uma joia, é a mulher representada por substantivos. Segundo Amanda, os anos 80 e 90 foram um período de consolidação dos estudos feministas do Brasil e o olhar da sociedade sobre a produção cultural, inclusive, passou a ser cada vez mais crítico e contestador, o que explicaria a ausência da categoria violência nas canções do ciclo sertanejo romântico.
Na canção É o amor (1993), da dupla Zezé di Camargo e Luciano, Amanda chama a atenção para a quantidade de pronomes possessivos. A mulher é “meu doce mel/ meu pedacinho de céu/ minha doce amada/ minha alegria/ meu conto de fada/ minha fantasia”. Já o homem, proprietário, é o dono da ação, “um apaixonado de alma transparente/ louco alucinado meio inconsequente/ um caso complicado de se entender”. “As expressões indicam que os predicativos da mulher amada não são resultados de suas ações, mas são qualidades que ‘pertencem’ ao enunciador”.
Mesmo pretendendo exaltar a figura da mulher, ou homenagear a figura da mãe, os autores das letras acabam patinando na questão do gênero. A melódica Fogão de Lenha (1987), gravada por Chitãozinho e Xororó, em seu refrão, dispara uma série de imperativos: “Pegue a viola/ e a sanfona que eu tocava/ Deixe um bule de café em cima do fogão/ Fogão de lenha, e uma rede na varanda/ Arrume tudo mãe querida, que seu filho vai voltar”. Há aqui, acrescenta Amanda, o pressuposto de que cumprir essas ordens seria motivo de felicidade para essa mulher.
Da mesma forma, na canção Mãe Amorosa (1969), gravada por Vadico e Vidoco, “a representação da mãe é a de uma mulher abnegada, que se dedica somente aos filhos, uma figura quase que beatificada”. Amanda ressalta na dissertação que teve dificuldades de encontrar exemplares sobre esse tema nas músicas do estilo sertanejo “universitário”, ou seja, as mais recentes. O motivo, “possivelmente se deve ao fato de o público-alvo para o qual elas se voltam não ter ainda, em sua maioria, se casado e experimentado a maternidade, diferentemente do que ocorria na década de 1950”, afirma.
O corpo da mulher também é abordado na seleção da pesquisa. Com bastante liberdade já, o sertanejo “universitário” da dupla Fernando e Sorocaba apresenta a ex-namorada na música Minha ex (2013) como “gostosa”, “maravilhosa”, “delícia”. A letra diz que a ex mudou, colocou silicone e pintou o cabelo, “está pura malícia”, mas caracteriza como “charminho” a recusa da moça em manter algum tipo de relacionamento. Sinal vermelho para a letra: a recusa da mulher não está sendo levada em conta, o que também, na opinião da pesquisadora, se configura como um tipo de violência.
Aliás, o que Amanda considera mais impactante no trabalho é a representação da violência contra a mulher. A clássica Pagode em Brasília (1960) gravada por Tião Carreiro e Pardinho adverte a mulher namoradeira e a sogra encrenqueira. Na primeira, o homem “passa o couro e manda embora”, na segunda “dá de laço dobrado”. Como classificar, sobretudo a canção Bruto, Rústico e Sistemático (2009) de João Carreiro e Capataz? Na música o homem reclama que a mulher fez topless. “Quando vi me deu um stress/ Perdi minha paciência/ Por mim faltaram respeito/ Na muié eu dei um jeito/ Corretivo do meu modo/ No quarto deixei trancada/ Quinze dias aprisionada/ E com ela não incomodo”. No trabalho Amanda descreve que a canção soma milhões de visualizações no Youtube, contando com comentários de pessoas que defendem o “estilo de vida” retratado.
A pesquisadora reitera que a abordagem da representação da mulher na música sertaneja não pretende “acusar o compositor sertanejo e os apreciadores das canções de machismo ou de desconsiderar a beleza de muitas canções do gênero em questão, mas fazer das canções, gênero de grande alcance de público, objetos de análise e explicitar as relações de poder e demandas de mudança”.
Publicação
Dissertação: “As mais tocadas: Uma análise de representações da mulher em letras de canções sertanejas”
Autora: Amanda Ágata Contieri
Orientadora: Terezinha de Jesus Machado Maher
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)