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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 17 de junho de 2016 a 26 de junho de 2016 – ANO 2016 – Nº 660Trabalho etnográfico detalha relações
de troca em reserva extrativista no Acre
Antropólogo chegou a morar seis meses emcomunidade amazônica para desenvolver tese
Uma economia peculiar vigente em uma comunidade amazônica, marcada por características morais, racionais e também por relações de afeto, é o tema de tese de doutorado defendida na Unicamp pelo antropólogo Roberto Sanches Rezende. O trabalho etnográfico na Reserva Extrativista do Alto Juruá, situada no extremo oeste do Acre, tem foco inédito nas relações de troca, mais especificamente nas relações de “ajuda”, como são chamadas localmente, e que abarcam uma diversidade de trocas econômicas, desde trocas de dias de trabalho até doações de bens. Intitulada “Camponeses da bacia do rio Tejo: economia, política e afeto na Amazônia”, a tese foi orientada pelo professor Mauro William Barbosa de Almeida e defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
Para sua pesquisa de campo, Roberto Rezende morou seis meses com uma família da comunidade Iraçu, localizada na foz do rio Tejo, um afluente do alto Juruá. O autor já guardava na bagagem muitas informações sobre a bacia do Tejo, para onde viajou sete vezes desde 2006. “O professor Mauro Almeida é meu orientador desde a iniciação científica e, já no primeiro ano da graduação, convidou alunos para um projeto de transcrição de cadernos produzidos por seringueiros da região: eram cerca de 900 diários temáticos sobre atividades cotidianas como de trabalho, caça, pesca e agricultura. Por se tratar da primeira reserva extrativista criada no Brasil, havia preocupação com o monitoramento da qualidade de vida e da biodiversidade, e os diários serviam para avaliar as condições ambientais e também sociais, como a dieta alimentar da população.”
O autor da tese conta que seu orientador iniciou pesquisas na região antes da demarcação da Reserva, tendo assessorado o movimento dos seringueiros para que a criação se concretizasse em 1990. “Patrões que se diziam proprietários das terras arrendavam os seringais e controlavam a comercialização tanto da borracha como de mercadorias. O movimento dos seringueiros dos anos 1980 foi contra esta relação com os patrões: no Juruá, não queriam ser mais obrigados, por exemplo, a pagar pelo uso das estradas de seringa (33 quilos de borracha por ano como ‘renda’); em outra frente, em Xapuri (região de Chico Mentes), lutavam contra as ocupações de madeireiros e fazendeiros. Este movimento em todo o Acre resultou na criação das primeiras reservas extrativistas, sendo a primeira delas a do Alto Juruá, onde atualmente moram cerca de cinco mil pessoas.”
A partir dos anos 90, porém, a produção da borracha começou a ser gradualmente abandonada, levando Rezende a analisar, em seu mestrado, o processo de concentração populacional em localidades às margens do Tejo, particularmente na comunidade Restauração. “Antes as pessoas viviam espalhadas pela floresta, em pequenas colocações de três ou quatro casas, extraindo o látex das seringueiras naturalmente dispersas (não eram plantadas). Com a queda do preço pago pela borracha iniciou-se uma transição para atividades agropastoris. As pessoas começaram a ir para a beira do rio a fim de facilitar o escoamento dessa produção. Ao mesmo tempo, a prefeitura municipal instalava escolas e postos de saúde em localidades à beira do rio, o que incentivava ainda mais as pessoas a se concentrar nas margens. Formaram-se comunidades de até uma centena de casas.”
O pesquisador explica que sua dissertação tratou deste movimento e de como as transformações econômicas estavam ligadas a mudanças políticas e sociais importantes: “A Reserva Extrativista do Alto Juruá representa hoje cerca de 65% do território de Marechal Thaumaturgo, um município criado depois da reserva e que a engloba. Há muito interesse e ingerência da prefeitura, além de certa ausência dos órgãos federais responsáveis pela reserva – antes era o Ibama, agora o ICMBio [Instituto Chico Mendes para a Conservação da Biodiversidade]. O município possui um total de 14 mil habitantes e os cinco mil da reserva representam porcentagem importante de votos. Após a crise da borracha, muitas pessoas procuraram empregos oferecidos pela prefeitura nas escolas e postos de saúde que ela criava. Era mais uma alternativa econômica”.
Foco inédito
Tendo acompanhado o final desta transição, Roberto Rezende focou seu doutorado nas relações econômicas, mais especificamente nas relações de troca: “Até onde sei, não existe um estudo específico e detalhado sobre essas relações de ajuda na Amazônia. Teses sobre populações amazônicas abordam esse aspecto, mas não como tema central. Além das pesquisas de campo, foram fontes importantes as teses e dissertações orientadas pelo professor Mauro Almeida desde os anos 90, sobre as condições de vida dos habitantes do Alto Juruá.”
Nos capítulos iniciais, Rezende oferece um panorama do comportamento econômico dos camponeses amazônicos e da história da região, com ênfase na transição do modelo de ocupação territorial baseado em colocações para o modelo de comunidades, acompanhada pela transição do extrativismo para as atividades agropastoris. “Ao longo dos anos 2000, a borracha desapareceu de Marechal Thaumaturgo dando lugar à farinha de mandioca como produção principal, e ao milho, como base da dieta animal (gado, caprinos e aves). A farinha e a carne compõem a base alimentar da população. Tivemos assim a substituição de uma economia para exportação (de borracha) por uma economia local, no máximo regional.”
O pesquisador afirma que, neste período de transição, programas de distribuição de renda como o Bolsa Família tiveram grande impacto junto às famílias de seringueiros. “Todos já eram agricultores de subsistência, mantendo o seu roçado e comprando no mercado apenas itens como sal, óleo, sabão e munição para caça. Com a crise da borracha, começaram a produzir mais arroz, feijão e farinha para vender. Eles dizem que as coisas só melhoraram com os primeiros programas sociais, ainda no governo FHC, e que o Bolsa Família foi essencial para a economia doméstica. Passando os anos, o município foi crescendo e dando emprego para muitas pessoas, o que gerou um mercado local: quem não plantava arroz, comprava do vizinho, as famílias tinham mais dinheiro para comprar roupas, calçados, alimentos industrializados, TVs, motores.”
De acordo com Roberto Rezende, entre os moradores tradicionais da reserva extrativista, a vida material é bastante parecida. “Obviamente, algumas pessoas possuem mais bens domésticos que outras. Um dos aspectos que pode diferenciá-las é o momento do ciclo de desenvolvimento familiar: um pai com muitos filhos precisa trabalhar muito para alimentá-los, mas quando os filhos crescem, ele conta com vários trabalhadores para ajudar no sustento da casa. Também conta o gosto individual: há quem goste de ter uma casa grande, um sofá confortável, enquanto outro prefere usar seu tempo para caçar e comer carne fresca de queixada, veado ou paca. Depende da perspectiva que a pessoa tem de uma vida boa.”
Códigos peculiares norteiam o cotidiano
De agosto de 2013 a fevereiro de 2014, Roberto Rezende morou na casa de Hilarino Lima Nogueira, sua esposa Iza e as filhas Roseli (14 anos), Rosimar (10), Roseane (8) e Rosângela (1). O período foi planejado para que pudesse acompanhar as principais fases do ciclo agrícola na bacia do rio Tejo, desde o preparo dos terrenos para plantio até a colheita. “É justamente nesse período que as casas dos ribeirinhos se envolvem em um número maior de trocas, recorrendo a trabalhadores externos para os picos de demanda de trabalho nos roçados. Boa parte desses trabalhadores externos vem de casas vizinhas, que pertencem a um mesmo grupo de casas. Faço uma etnografia da comunidade Iraçu, que tem o nome do seu líder, senhor Iraçu. Ao redor de sua casa moram os cinco filhos, conformando o grupo de casas principal, ao qual se somam outros grupos de casas aparentadas formando a comunidade. Meu anfitrião, Hilarino, é um dos filhos do senhor Iraçu.”
O pesquisador observa que a conformação de um grupo de casas, com a liderança de uma casa mais velha e as mais novas associadas, é um padrão no rio Tejo, mas que não representa um patriarcado. “Cada casa tem sua autonomia produtiva e de consumo. O grupo de casas funciona principalmente para o ordenamento territorial: onde abrir o roçado, as áreas de caça e de pesca. Cabe às casas fazer o planejamento do trabalho dos seus membros e das trocas em que se envolvem”.
Quanto às trocas entre as casas do grupo, o pesquisador constatou que suas observações em campo não batiam com trabalhos de outros pesquisadores sobre trocas no interior de comunidades amazônicas. “Em outras regiões a relação de troca chamada de ajuda é definida como uma relação entre parentes, desinteressada e natural, limitando-se ao espaço da comunidade. Ou seja, quem é parente se ajuda. Isso não serve para o caso do Tejo. Mesmo entre irmãos, não se trata de uma relação de troca generalizada, toda troca é contada: a pessoa sabe com quem está endividada, quem está em dívida com ela e o tipo de dívida. Se o irmão e mais três pessoas o ajudaram a abrir o roçado, ele vai se dividir para ajudá-los em alguma atividade posteriormente, retribuindo a ajuda originalmente prestada.”
Ajuda e consideração
A partir dessa constatação, Rezende procurou entender qual o sentido da “ajuda” para os moradores da reserva extrativista, interpretando que a peculiaridade desta relação não estava nas características do que era trocado, ou mesmo no parentesco entre quem trocava, mas no efeito causado sobre os sentimentos das pessoas. “Os aspectos econômicos e afetivos são indissociáveis, já que as redes de troca acabam sendo impactadas pela questão da consideração. As relações de ajuda são, afinal, relações de aproximação e de confiança. Mesmo nas modalidades de troca mediadas por dinheiro, notei que se trata de parceria preferencial: sempre que é necessário contratar alguém, procura-se a pessoa com quem já se teve uma relação de troca anterior. Isso vai criando e aumentando relações de proximidade e, por vezes, a relação de ajuda se transforma em parentesco, quando acaba em casamento.”
A partir de uma análise mais detalhada da relação entre a ajuda e a construção da consideração entre as pessoas, Rezende analisou as relações no interior das casas das famílias de ribeirinhos, mostrando como a ajuda, enquanto uma relação especial da socialidade local, era ensinada às crianças desde cedo. “A ajuda é uma categoria central da socialidade. Na casa de Hilarino, a filha de 14 anos já ajudava na cozinha, a irmã de 10 cuidava da bebê, enquanto a de 8 ajudava carregando água. O trabalho de Iza no roçado e em casa também era ajuda, pois ‘trabalho’ mesmo era considerado apenas o de Hilarino, o chefe da casa.”
Na opinião do autor da tese, a ênfase dada durante a criação às relações de ajuda como uma relação primordial para a manutenção das casas é também uma forma de criar consideração e afeto entre as pessoas. “Se alguém cuida de mim quando pequeno, quando eu crescer vou olhar por ela, ficar ao seu lado na doença. Quando o filho cresce, normalmente fica morando perto do pai e dos irmãos, por conta da cadeia de relações entre eles e por saber que, quando precisar, vão olhar por sua necessidade.”
Nem tudo é harmonia
O autor reservou um capítulo da tese para mostrar, por outro lado, que as relações de ajuda e criação não implicavam em total harmonia dentro das casas ou da comunidade Iraçu. “Um dos filhos do líder não concordava com a forma de criação, reclamando que o pai pegava pesado demais no trabalho do roçado. Quando completou 18 anos, casou-se com a professora da escola e foi morar na sede do município com emprego assalariado. As comunidades amazônicas não vivem uma harmonia naturalizada, há processos de separação, seja por expulsão ou por saída voluntária para solucionar tensões.”
Certa feita, um homem comprou um bode, que comia as plantas do vizinho. Como ambos não eram parentes, o vizinho resolveu morar em outro lugar para evitar uma briga. “As brigas envolvem a família toda e podem se tornar violentas. Há um capítulo em que analiso essas relações de desconsideração e desrespeito, que são o avesso da ajuda: se alguém age de maneira indevida na casa ou na comunidade de outro, o dono tem autoridade moral para usar de violência; o chefe deve pôr ordem na casa, até porque a presença do Estado é baixíssima. Conversei com pessoas que não davam festas em casa por medo de que acontecessem atritos e fossem obrigados a tomar providências, talvez ferindo ou mesmo matando uma pessoa, o que significa, muitas vezes, entrar em conflito com toda a família da vítima.”
Outro caso registrado por Rezende envolveu a chegada à comunidade Iraçu de um ex-presidiário de Cruzeiro do Sul, segunda maior cidade do Acre. Desconhecendo o regime local, o chamado “marginal” bebia, mexia com as mulheres e se metia em brigas. Em uma rodada dominical do torneio de futebol entre comunidades, os membros de Iraçu se reuniram para discutir o que fazer com o forasteiro inconveniente. “As opções iam de avisar o pessoal da comunidade que o trouxe que ali a falta de respeito não seria tolerada, até de ‘pegar de pau’ o indivíduo. Como a violência não era desejável, eles combinaram que, se algo mais acontecesse, iriam amarrá-lo e chamar a polícia.”
A relação com políticos
Segundo Roberto Rezende, as relações de ajuda não se limitam ao espaço das comunidades, podendo se estender a comerciantes e políticos da sede municipal. “A diferença está na assimetria da relação. Se o agricultor precisa de um gerador de energia e não pode pedir ao irmão igualmente sem posses, ele procura o político interessado em seu voto, o que coloca nesta economia um componente redistributivo importante: espera-se que quem tem mais, ajude com mais. A ajuda é uma relação caracterizada pela precisão de uma pessoa e a condição de outra.”
Uma característica peculiar apontada pelo antropólogo é que, no processo de formação do município de Marechal Thaumaturgo, os políticos buscavam votos em troca de empregos para membros das famílias das comunidades. “A expansão dos serviços do Estado permitiu a distribuição de muitos cargos. Praticamente todas as escolas precisavam de professores, zeladores e outros servidores. A partir de 2013, tanto o governo federal reduziu o repasse de verbas, como esse mercado de trabalho estava saturado. Os políticos, então, já não conseguiam cumprir suas promessas.”
O pesquisador registrou o caso de um morador da reserva que subiu o rio Tejo com um candidato a vereador, ajudando-o a conseguir votos em troca de um emprego para si e de um gerador de energia para sua comunidade. “O vereador foi eleito graças justamente à diferença de votos dos parentes dele, que depois virou motivo de piada por que as promessas não eram cumpridas. O gerador só foi entregue depois de várias idas à cidade para pressionar o vereador e o prefeito, ameaçando não mais votar no partido deles; quanto ao emprego, a solução encontrada foi que dividisse o salário com outro auxiliar geral de escola, com o político contemplando, assim, duas famílias.”
Rezende não vê neste regime de troca apenas uma atitude maquiavélica dos políticos para enganar a população. “É uma economia própria do Tejo, uma via de dois sentidos: as pessoas utilizam as relações de consideração e ajuda para cobrar as promessas dos políticos, que na maioria também são da região e pensam da mesma maneira. Não se trata de pessoas politicamente mal formadas, e sim de uma forma bastante peculiar de entender as relações de troca e as relações políticas. Cada promessa política não cumprida vira também uma ofensa moral.”
Outro exemplo de política da ajuda e de seu componente redistributivo, lembrado por Roberto Rezende, é do presidente do sindicato de trabalhadores rurais que queria se eleger vereador e, através de um projeto com recursos do governo federal, subiu o rio distribuindo geradores, facões e outros bens para as comunidades. “Foi o mais votado nas eleições. No ano seguinte, durante um bingo no novenário da vila Thaumaturgo [a festa religiosa mais importante da região], ele e um morador da reserva preencheram ao mesmo tempo as cartelas com direito a um fogão e uma botija de gás. Os dois subiram ao palco, em frente a milhares de pessoas, e o vereador sugeriu que ficaria com a botija e o morador com o fogão, esperando a ovação por abrir mão do bem de maior valor. Mas acabou vaiado pelo povo, tido como miserável. Deixou de ser o político mais querido do município e provavelmente não será reeleito. Trata-se do componente redistributivo dessa economia: as pessoas esperam de quem tem que seja generoso com quem precisa.”
Publicação
Tese: “Camponeses da bacia do rio Tejo: economia, política e afeto na Amazônia”
Autor: Roberto Sanches Rezende
Orientador: Mauro William Barbosa de Almeida
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)