Edição nº 668

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de setembro de 2016 a 18 de setembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 668

Filmes revelam resistência
da cultura negra em Campinas

Trilogia mostra a importância de códigos e
manifestações populares para a formação da cidade

Com a força do orixá Exu, ou de um rio, que “vai serpenteando... e por onde passa interferindo na vegetação, criando uma floresta”, a cultura popular e negra vem resistindo e driblando os livros de história, que insistem em esquecê-la. Não é diferente em Campinas. A invisibilidade das questões do negro não permite contar que a cidade já foi, por exemplo, reduto do samba de bumbo, vertente do samba paulista, ou que abriga grupos com uma trajetória de quase três décadas celebrando a cultura popular.

Uma trilogia de filmes documentários realizados pelo professor Gilberto Alexandre Sobrinho, do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação do Instituto de Artes (IA), procura narrar algumas dessas trajetórias. O filme mais recente, “A Dança da Amizade. Histórias de Urucungos, Puítas e Quijengues”, segundo da trilogia, aborda a história do Grupo Urucungos, Puítas e Quijengues, com sede no bairro Vila Teixeira, em Campinas. O primeiro filme foi “Diário de Exus”, lançado em 2014. Para 2017 está previsto o terceiro filme, com o título provisório “A Mulher da Casa do Arco-Íris”, sobre a trajetória de Mãe Dango, sacerdotisa do candomblé, moradora da cidade vizinha de Hortolândia, líder religiosa e comunitária, idealizadora e coordenadora da Lavagem das Escadarias da Catedral, evento anual de Campinas.

“A trilogia propõe elaborar, do ponto de vista poético, narrativas que lidam com a questão do negro em Campinas, realçando seu papel central e formador na constituição cultural da cidade. Há uma presença negra muito forte na cidade e a inscrição de códigos culturais originários de Campinas e que você não encontra em outros lugares”, ressalta. E não se trata de grupos isolados, complementa o professor. “Na verdade existe uma rede tramada com vários agentes, artistas de vários fazeres, gente que há muito tempo está fazendo coisas, portanto, com espessura histórica”.

Raquel Trindade é uma delas. No final dos anos 1980, a artista popular, filha do poeta Solano Trindade, foi convidada para dar aulas de danças afro-brasileiras no departamento de Dança da Unicamp. O convite partiu do então professor do IA Antônio Nóbrega. “O Celso Nunes viu, gostou muito e me convidou para as artes cênicas. Fui dar aulas de folclore, teatro negro no Brasil e sincretismo religioso, fui para a graduação e vi que só tinha um negro. Aí eu pedi à Unicamp para fazer um curso de extensão. Vieram negros que eram funcionários da Unicamp, vieram negros da comunidade de Campinas e vieram japoneses, chineses de outras graduações”, conta no documentário.

O curso de extensão foi a origem do grupo Urucungos, Puítas e Quijengues, que até hoje defende o repertório ensinado por Raquel e é umas das referências do samba de bumbo, vertente do samba paulista. “Raquel desenvolveu, com o grupo, um repertório de sambas nordestinos, o maracatu, o bumba meu boi, uma série de outras manifestações, como o jongo, o samba lenço paulista, danças populares, enfim, ‘pequenas óperas’ como diz Naná Vasconcellos [percussionista pernambucano], e que não tem esse reconhecimento”, afirma Gilberto.

Raquel Trindade é a primeira entrevistada no documentário “A Dança da Amizade”. Parte de uma família de artistas que migra de Pernambuco primeiro para o Rio de Janeiro e, depois, para São Paulo, Raquel é continuadora da obra do pai, e tem seu próprio repertório artístico estabelecido em Embu das Artes. “Solano é um dos grandes poetas da língua portuguesa, mas que também não é muito lembrado, parece haver um esforço de apagamento dessa herança”, reforça Sobrinho.

Para Gilberto, o que a artista ensinou para o grupo Urucungos foi, sobretudo, o despertar para códigos culturais ligados à cultura popular aprendidos em casa, no caso dela, em Pernambuco, e isso posteriormente se traduz em performances artísticas. O mesmo acontece quando os participantes, principalmente, homens e mulheres negros, como Alceu Estevam e Ana Miranda, que têm um forte laço com a cidade, “começam a reativar na memória coisas que eles tinham visto nas suas próprias casas e que não ocupavam essa arena”. Assim foi recuperado o samba de bumbo, aquele rio que “vai serpenteando... e por onde ele passa vai interferindo na vegetação e criando uma floresta”, como diz Boni, um dos entrevistados do filme.

Exus
Se “A Dança da Amizade” se ocupa da experiência do grupo Urucungos, Puítas e Quijengues, “Diário de Exus”, o primeiro curta-metragem da trilogia é, na maior parte, ambientado na Unicamp, no curso de Artes Cênicas. A professora Grácia Navarro, também responsável pela pesquisa do filme, aparece no documentário atendendo ao pedido de uma “formatura informal” do funcionário Jacinto Rodrigues da Silva, o mestre de capoeira Jahça, que estava, naquele momento, se aposentando. A ideia então foi fazer uma peça de teatro sobre a divindade africana do Exu, com Jahça como protagonista.

“O filme é uma visão um pouco mais livre sobre o negro na cidade, a partir do orixá Exu e do mestre Jahça, que foi funcionário do Restaurante Universitário e depois tornou-se ‘funcionário artista’, atuando como porteiro e mestre de capoeira junto com a graduação”. O processo de criação da peça é registrado pela câmera. “O documentário atualiza o mito do orixá Exu. Mestre Jahça é o fio condutor que conecta os diferentes lugares onde habita essa divindade” descreve o professor.

Para Gilberto, os dois primeiros filmes trazem as relações entre a universidade, a cidade e o racismo. “O lançamento da ‘Dança da Amizade’ adensa algo que já estava colocado no ‘Diário de Exus’, que é uma relação da Unicamp com parte da história da cidade que não é isenta das contradições e do racismo, já que é um grupo de cultura afro-brasileira que nasce aqui na universidade”. A trilogia está inserida nas atividades de extensão universitária. “A história do ensino superior no Brasil é uma história de exclusão dos negros. A criação dessas redes e parcerias se traduz em um projeto de extensão que deve durar. Um desdobramento do curta “A Dança da Amizade” foi uma oficina de formatação de projetos em documentário para as comunidades do Ponto de Cultura Ibaô e Urucungos. Os filmes foram favorecidos por editais do Fundo de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Extensão (Faepex) da Unicamp, além de recursos do Fundo de Investimentos Culturais de Campinas (FICC)”.

A imagem do negro nos dois primeiros curtas-metragens da trilogia retrata a beleza e a riqueza de um repertório cultural. São filmes de celebração. Nada têm a ver com a representação rotineira da pobreza e da violência presentes na televisão. Uma dessas riquezas foi registrada pela equipe de gravação que participou da “Festa do Cururuquara”, realizada anualmente, desde o dia seguinte à abolição da escravatura, em 1888, em Santana do Parnaíba. 

A história contada nos filmes da trilogia também diz respeito, pessoal e intelectualmente, ao docente. “Uma questão que permeia a história do documentário é a da exterioridade, são pessoas falando do outro. À medida que os filmes foram se desenvolvendo, eu tive uma clareza de que estava indo em outra direção, de que eu também estava falando de mim. A relação com outro, por meio da realização documentária, contribui, assim, para uma inspeção pessoal sobre minha própria história, um olhar pessoal sobre a formação de territórios e memórias de Campinas e um adensamento na pesquisa sobre os alcances do filme documentário, artisticamente falando.”