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Grilos e grilagens
A história da apropriação de terras no Brasil, segundo
aula de João Pedro Stédile para os jovens do MST


JOÃO MAURÍCIO DA ROSA

Grilo é um inseto cujo macho emite estrídulos noturnos, através de órgãos localizados sob as asas anteriores. Para o homem, “grilo” também pode significar chateação, amolação ou preocupação. No Brasil, além desta variedade de sinônimos, grilo pode ser traduzido como um ato de apropriação de terras públicas por meio de documentos falsificados – a famosa “grilagem”.

A origem deste último verbete, comum em dicionários, mas nunca explicada, pareceria piada se não fosse verdadeira. Quem lembra é João Pedro Stédile, dirigente nacional do Movimento Sem Terra (MST): “O cara falsificava uma escritura e, para dar aos papéis a aparência de antigos que devem ter, os trancava em uma gaveta cheia de grilos. Ao final de um mês, corroídos e amarelados por substâncias liberadas pelo inseto, pareciam legítimos. Daí a palavra grilagem”, ensina.

Stédile falou sobre a história da apropriação de terras no Brasil para perto de mil jovens do meio rural, na Unicamp. “Desde que Dom Pedro II criou a Lei 601, em 1850, instituindo a propriedade da terra, a grilagem virou prática corriqueira de coronéis que se apropriam de grandes áreas e não conseguem comprovar a sua compra”, continua.

Até então, todas as terras brasileiras eram de propriedade da Coroa e exploradas em regime de concessão. Daí, a necessidade de os papéis serem antigos. Todas as aquisições, obrigatoriamente, têm de ter um documento datado de 1850, geralmente lavrado em paróquias, já que os cartórios ainda eram raríssimos. Um latifúndio adquirido naquela época, e depois revendido, precisa comprovar origem naquela data de compra.

Quando o Incra, órgão responsável pelo controle das propriedades rurais, detecta dúvidas quanto à origem das mesmas, procura elucidar o problema aplicando uma norma chamada “reconstrução da cadeia dominial”, ou seja: a partir da escritura atual, vai retrocedendo no tempo até chegar ao primeiro documento. É quando podem surgir esses papéis rotos pela ação dos grilos.

Paranapanema – Um dos exemplos mais famosos desta fraude é um caso recente e tem legitimado o MST, por meio do reconhecimento judicial de suas reivindicações. Trata-se da região paulista do Pontal do Paranapanema, onde o Rio Paraná se encontra com o Rio Paranapanema, formando um triângulo de terras nunca comercializadas pela Coroa, nem pela República ou pelo Estado de São Paulo.

“São 700 mil hectares produtivos, grilados por uma única pessoa em 1942 e depois repassados para terceiros. Como esses terceiros nunca conseguiram provar que pagaram por essas terras, elas, portanto, são públicas”, argumenta Stédile. A grilagem de 1942, de acordo com ele, se deu através da falsificação da assinatura de um padre, então responsável pela escrituração, diante da falta de um cartório.

Na visão do dirigente do MST, a grilagem começou com a invasão do Brasil pelos portugueses e o conseqüente assassinato de mais de 4 milhões de índios entre 1500 e 1850. Nesse período, a população nativa despencou de 5 milhões para 1 milhão de pessoas, estimativa que considera a natalidade entre os índios, nunca incluída nas contas oficiais durante 350 anos de extermínio.

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A transformação racial em função da agricultura

Na época da Lei das Terras (1850), o modelo agrícola brasileiro, como hoje, baseava-se na exportação. As concessões de propriedades beneficiavam a quem possuísse capital para monoculturas de café, cacau, açúcar, gado ou algodão. “Não havia outras opções, não era uma agricultura para o consumo interno. A ordem era produzir o que a Europa precisava comprar: algodão para substituir a lã de ovelha; açúcar e cacau, que eles não tinham; e boi, mas somente para exportar o couro, pois não existia meio de transportar a carne”.

Sem mão-de-obra suficiente para atender a essas necessidades, e incapazes de escravizar os índios, os portugueses tiveram de importar um novo produto: os escravos da África. A transformação racial da população brasileira, neste período, foi radical. Além de 1 milhão de índios, haviam 300 mil brancos portugueses, enquanto o restante era formado por mestiços de brancos, negros e índios.

“A Lei das Terras determinava que qualquer pessoa poderia ser proprietária no Brasil, desde que tivesse o dinheiro para comprar. Desta forma, só a burguesia, composta por latifundiários – senhores de engenho e cafeicultores – puderam adquiri-las. Os trabalhadores do campo e ex-escravos ficaram de fora do processo”, recorda Stédile.
Por outro lado, ainda antes do final da escravidão, ficou claro que a tática de libertar os negros e ao mesmo tempo privá-los do acesso à propriedade, numa forma de mantê-los como assalariados, não daria certo. “Bem antes da Lei das Terras, eles já se rebelavam e fugiam para viver em quilombos. Preferiam morrer a continuar trabalhando para seus antigos senhores. Quem havia experimentado o chicote, não tinha a mínima vontade de continuar naquele estado”, observa o líder do MST.

Imigração – Desta forma, após a Abolição em 1888, os latifundiários perderam de vez a mão-de-obra e se viram obrigados a recorrer aos estrangeiros. Um levantamento de Darcy Ribeiro, referente ao período de 1850 a 1914, mostra que Dom Pedro II, através de propaganda entre europeus pobres, conseguiu atrair para o Brasil quatro milhões de imigrantes, entre portugueses, italianos, espanhóis, poloneses, alemães, ucranianos e austro-húngaros.

“Eram na maioria camponeses sem terra, que vieram em troca da garantia de pedaços de terra de 25 a 40 hectares (que eles teriam de pagar) ou para substituir a mão-de-obra escrava. No caso da região Sul, os imigrantes acabaram nas terras mais íngremes, pois as áreas planas já estavam todas compradas pela burguesia”, explica. Stédile classifica esta espécie de distribuição de terras como perversa, embora tenha propiciado a criação de uma classe camponesa no país. Até então, as classes econômicas se restringiam a grandes agricultores, escravos e exportadores.

Volta ao porto – Os ex-escravos que se recusaram a permanecer na lavoura, tomaram o caminho do mar. Desceram a serra e encontraram trabalho farto nos portos, carregando e descarregando navios. “Daí a predominância de população negra em cidades portuárias, como Rio Grande (RS), Santos (SP), Rio de Janeiro, Vitória (ES), Salvador (BA), Recife (PE) e São Luís (MA)”.

A política imperial de distribuição de terras explica, portanto, o porquê da rara existência de camponeses negros no Brasil até os dias de hoje. Nas regiões Sul e Sudeste, eles são predominantemente de origem européia. A única exceção ocorre no Nordeste, onde os mestiços deixaram os canaviais da margem litorânea rumo ao agreste, onde permanecem praticando cultivos de subsistência.

“Vocês devem conhecer muita gente nessas condições. Quem, aqui, não tem pai, tio, primos ou vizinhos que trabalharam a vida inteira no campo e nunca ficaram ricos?”, perguntou Stédile ao público de jovens sem-terra, com idades entre 14 a 25 anos, vindos de 23 estados brasileiros.

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