Elaine Pereira da Silva deu de ombros para o destino. Negra, filha de pai pedreiro e mãe empregada doméstica, desejou desde cedo cursar Medicina. Motivo: ajudar as pessoas a se livrar da dor. Mesmo contra todos os prognósticos, alcançou o objetivo almejado. Graduou-se por uma das melhores universidades do país, a Unicamp. Hoje, aos 43 anos, precocemente aposentada por causa de uma lesão neurológica, continua assistindo de forma voluntária crianças e adultos de uma favela de Campinas. E mostra-se gratificada por cumprir a missão que se impôs. “Sabe por que eu consegui? Porque os sonhos não envelhecem”, afirma, tomando emprestado os versos compostos por Lô Borges para a canção “Clube de Esquina 2”. A trajetória de Elaine, marcada pela pobreza, humilhação e preconceito, mas principalmente pela superação, está contada no livro
Pérola Negra História de um Caminho (Editora Komedi), que ela lançará no próximo dia 28 de abril, a partir das 15h, no Salão Nobre da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp. A orelha do livro é assinada pelo escritor Rubem Alves. Segundo ele, quem ler o livro “ficará maior”.
A biografia de Elaine, que foi tema de reportagem do Jornal da Unicamp em maio de 2003, parece zombar do determinismo. Na infância e adolescência, estudou em escola pública. Quando chegou o momento de cursar o ensino superior, as dificuldades se ampliaram. Não tinha dinheiro para pagar uma universidade particular e nem condições de disputar uma vaga em instituição pública com os vestibulandos que se prepararam durante meses em cursinhos. Num primeiro momento, o jeito foi tentar se conformar, optando por um curso mais barato. Elaine, então, decidiu fazer Biologia. Trabalhava de dia como escriturária em um hospital e estudava durante a noite.
Naquela oportunidade, ela já apresentava os primeiros sintomas da neurocisticercose, doença causada pelas larvas da Taenia solium, presente na carne de porco. Quando se instalam no sistema nervoso, podem causar problemas como convulsões, hipertensão intracraniana e, no caso de Elaine, distúrbios de comportamento. “Naquela fase, eu tinha muito sono. Dormia praticamente a aula toda”, conta no livro. Meio dormindo, meio acordada, ela conseguiu se formar. Prestou concurso do Estado e tornou-se professora. “Como o salário melhorou um pouco, decidi resgatar o sonho de me tornar médica. Com muita dificuldade, fiz dois anos e meio de cursinho e prestei o vestibular. Passei na Unesp, na Santa Casa e na Unicamp, mas optei por esta última porque ela oferecia moradia gratuita aos estudantes carentes”, relata.
Morando de graça e recebendo uma bolsa do Serviço de Apoio ao Estudante (SAE) da Universidade, Elaine afirma que sentia “orgasmos múltiplos” por estar finalmente cursando Medicina. As adversidades impostas pelo fato de ser negra, pobre e introvertida iam sendo vencidas, embora com dificuldade. Mas a situação piorou muito em 1993, quando ela estava no 5º ano. Nessa época, foi internada pela primeira vez. Ficou quatro dias em coma no Hospital das Clínicas (HC). Só então seu problema foi definitivamente diagnosticado, embora tivesse procurado auxílio médico várias vezes anteriormente.
Enlouquecida Quando a doença se agravou, as dificuldades aumentaram na mesma proporção. Por conta da lesão neurológica, Elaine “enlouqueceu”. Gritava na rua. As pessoas, inclusive os colegas de classe, começaram a se afastar dela. Uma das poucas exceções, segundo Elaine, ficou por conta de um de seus professores, o médico Jamiro da Silva Wanderley, que lhe deu apoio irrestrito. Ao todo, Elaine teve mais 17 internações, o que a obrigou a prolongar a sua permanência na universidade.
Ao fim de nove anos, ela finalmente obteve o tão sonhado diploma de médica. A sensação daquele momento, de acordo com ela, foi indescritível. Atualmente, Elaine, que teve a sanidade mental diagnosticada por um dos mais renomados especialistas da cidade, convive com algumas seqüelas da doença, como fortes dores de cabeça. Mas nada que a impeça de exercer sua profissão com “enorme tesão”, como ela define. “Modéstia às favas, sou uma excelente profissional porque amo o que faço. E sabe por que? Porque morro de medo de errar, assim como erraram comigo”, afirma.