RAQUEL
DO CARMO SANTOS
A
forma como a ocupação urbana tem se configurado, em Campinas,
torna visível o aumento da distância entre ricos e pobres.
De um lado, os especuladores imobiliários buscam cada vez
mais áreas próximas aos fragmentos florestais para a incorporação
de loteamentos e construção de condomínios de alto e
médio padrões. Por outro lado, os estratos sociais de
baixa renda estão distribuídos em locais da cidade onde
não há acesso à natureza – áreas verdes preservadas
ou bosques municipais. Para o professor do Instituto de
Geociências (IG) Antonio Carlos Vitte e sua aluna de doutorado
em Geografia Mariana Cisotto, essa segregação está expressa
na morfologia urbana e no acesso ao patrimônio natural.
Esse modelo, explica o professor,
reflete o processo de re-estruturação urbana de Campinas,
no qual coexistem um padrão de cidade dispersa e difusa
– com novas centralidades, condomínios e acesso ao patrimônio
natural – com uma cidade onde predomina a verticalização
de favelas ou de bairros onde residem estratos sociais de
baixa renda econômica, vivendo em situação ambiental precária.
Em outras palavras, a morfologia urbana mostra claramente
o acirramento das diferenças socioambientais. Esta constatação
está registrada na dissertação de mestrado de Mariana Cisotto,
apresentada no IG e financiada pela Fapesp.
Em nome da qualidade de
vida e ambiental e com a escassez de áreas verdes, o discurso
da proximidade da natureza tem sido a tônica para justificar
o aumento vertiginoso de áreas antes tidas como rurais para
a construção de empreendimentos imobiliários de luxo. Em
outros casos, regiões da cidade de Campinas onde predominava
uma urbanização tradicional estão começando a conviver com
um novo padrão urbano, agora em encostas com declives acentuados
e vales fluviais, onde a vegetação está em regeneração.
Processo como esse ocorre, por exemplo, na região dos jardins
Ipê e São Gabriel, na saída de Valinhos, que atualmente
tem sido alvo de especulação imobiliária com a construção
de um condomínio de altíssimo nível e a consequente valorização
do local.
Já na região dos Dic’s,
onde se localiza majoritariamente uma população de renda
média e baixa, foi observado processo contrário tanto
no campo como em mapeamento de satélite. Essa região tem
vegetação escassa e cursos d’água altamente poluídos,
o que traz sérias consequências à saúde pública, além
de uma péssima qualidade ambiental. Com isso, concluem
os geógrafos, o uso da natureza na cidade é muito restrito
e seletivo.
Em determinadas áreas da periferia, quando existem, os
bosques são distantes e não há rios. Esse quadro é ocasionado
pela velocidade das construções, pelas ocupações urbanas
e pela falta de fiscalização do poder público. Ademais,
a região sudoeste sofre com a verticalização dos imóveis,
a qual acarreta um aumento desordenado das populações.
“Não há o menor controle em relação às construções
que se verticalizam para aluguel”, destaca o professor.
Há uma estratificação e, embora haja áreas regularizadas
com casas de alvenaria, percebe-se que só foi possível
a construção por meio de mutirões.
Além
da segregação social constatada pelos pesquisadores, Vitte
alerta ainda para outra consequência desta nova política
de urbanização: a privatização do bem público. “Algo
de direito do cidadão e da cidade, os fragmentos florestais
se transformam em espaços exclusivos para aqueles que podem
pagar por eles. A pergunta que se faz é quem usa essa natureza.
Nas regiões de Sousas, Joaquim Egídio e Barão Geraldo,
por exemplo, grandes incorporadoras se apropriam da natureza
como forma de chamar a atenção para os condomínios fechados
e de alto padrão”, exemplifica o geógrafo, que lidera
um grupo de pesquisa do CNPq sobre Natureza e Cidade.
Segundo o pesquisador, os
empreendimentos próximos aos fundos da mata nativa deveriam
funcionar como uma espécie de corredor biogeográfico de
uso comum. Ao invés disso, explica, a pessoa estende o muro
e se apropria dos fragmentos naturais como se fosse dele,
constituindo um sério problema para o meio ambiente. “É
uma preservação relativa, pois ao mesmo tempo em que os
bancos genéticos são preservados, há uma apropriação indevida
da mata por entenderem tratar de uma propriedade privada,
quando na verdade não é. Trata-se de um patrimônio natural
e público. Um exemplo é o problema do muro ou da cerca atrapalhando
a migração ou o deslocamento cotidiano de animais e insetos”,
lembra o professor do IG.
Os trabalhos de campo foram
realizados no espaço urbano de Campinas nos anos de 2008
e 2009. Além disso, foram feitas análises de imagens de
satélite, mapas e gráficos oferecidos pelo Censo de 2000
e estudo do plano diretor do município. Na pesquisa, Mariana
Cisotto tomou como base a análise de bosques e áreas verdes
de Campinas a partir do conceito de urbanização dispersa
– fenômeno recente, mas bastante estudado –, cuja ideia
é entender a reconfiguração urbana que se constitui com
áreas construídas mais concentradas e, ao mesmo tempo, de
maneira dispersa.
“Havia um modelo antigo
de urbanização que constituía a existência de um centro
de comércio e serviços, os bairros e uma região industrial.
Nesse contexto, a população se movimentava em razão do centro
da cidade. A partir dos anos 90, com a globalização, há
uma interferência no sentido de cidade, criando-se o que
chamamos de novas centralidades urbanas, associadas diretamente
ao cenário de condomínios, além das revoluções nos transportes
e na comunicação. As construções ou os aglomerados de construções
são afastadas e dispersas, com grande densidade populacional”,
explica o professor, que acredita no surgimento de várias
cidades em diferentes pontos da antiga Campinas. Em Barão
Geraldo, outro exemplo bastante analisado pelos pesquisadores,
as antigas fazendas são estrategicamente desmembradas para
abrigar pequenos condomínios.
Na verdade, salienta Mariana,
são dois processos antagônicos, fazendo parte de uma mesma
realidade. Na medida em que a população de condição social
mais elevada busca o distanciamento das regiões centrais
e a proximidade com a natureza – e também uma fuga da violência
–, há um aumento da densidade populacional nestas regiões,
provocando uma degradação de muitas áreas verdes, sem contar
o impacto ambiental negativo com a presença do homem nas
proximidades de mata nativa. “É como se buscasse aquilo
que vai perder, pois o adensamento tem se intensificado
ao longo dos anos”, avalia Mariana.
Os geógrafos citam diversos
conflitos nesta relação entre população e natureza. Estudos
alertam para os efeitos negativos que o cachorro doméstico,
por exemplo, pode causar em uma mata ciliar. Ou ainda, o
risco que as capivaras representam para as pessoas na questão
da contaminação. Outra situação típica é quando um animal
entra no condomínio e os moradores intencionam matá-lo.
Neste caso, corujas, cobras e outros animais são mortos,
paradoxalmente, no local de seu habitat natural. Por isso,
Mariana acredita que, ao mesmo tempo em que o homem busca
a natureza, “ele a quer higiênica, num aquário para olhar,
sem interagir com ela”.
Quando
a sombra de uma árvore vale muito
“Campinas é 98,8%
urbana e já existe uma estrutura consolidada, um cenário
patético de concreto”. A constatação não é nova, pois
Mariana Cisotto participou do diagnóstico das áreas
verdes da Região Metropolitana de Campinas (RMC) para
um plano de manejo, enquanto cumpria estágio na Mata
Santa Genebra. No entanto, acredita que a população
apenas se dá conta quando depara com os efeitos negativos
desta degradação ou no simples fato de buscar uma
sombra para estacionar um carro ou esperar um ônibus
sob o forte calor. “É nestas horas que a sombra de
uma árvore vale muito”, destaca o professor Antonio
Vitte.
A importância do estudo
realizado pelos geógrafos está em contribuir com a
prefeitura, planejadores, ONGs e associações e, assim,
deixar de lado a “ideologia do concreto”, uma vez
que o desenvolvimento não é sinônimo de construir,
pavimentar e canalizar rios. A pesquisadora acredita
que existem possibilidades para reverter esse quadro.
Neste sentido, Mariana está buscando na vizinhança
algumas soluções possíveis e de baixo custo que poderiam
ser aplicadas em Campinas. “Trata-se de iniciativas
de mobilização popular para a criação de pomares coletivos
em áreas abandonadas e de ferrovia, projeto de arborização
coletiva e outras ideias introduzidas na Argentina
e Chile e que pretendo compilar no estudo de doutorado”,
explica Mariana.
Afora este projeto,
as propostas dos pesquisadores são muitas para propiciar
um conforto térmico. Por exemplo, o plantio de árvores
nativas e pequenas, com incentivo fiscal municipal,
a adoção de praças públicas e áreas embaixo de pontes
e o estímulo à criação de jardins nas residências
ao invés de lajotão. “Enfim, uma conscientização por
parte da população em geral, de empresas e instituições,
pois a cidade é coletiva, não existe um dono, assim
como também não é responsabilidade exclusiva dos prefeitos
e vereadores preservar e manter as áreas verdes, embora
possuam o ofício de zelar e incentivar a participação
cidadã na reconstrução da natureza nas cidades”, declara
Vitte. Já para os geógrafos e demais cientistas sociais,
na opinião dos pesquisadores, o grande desafio é a
incorporação da natureza em uma nova teoria social
do espaço.
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