Alunos
muito especiais Unidades da Unicamp se mobilizam para melhor
atender a procura de jovens portadores de deficiências
CARLOS
LEMES PEREIRA movimentação
no quarto de Viviane Maria Missio, 19 anos, deixa transparecer apenas os preparativos
de uma jovem prestes a encarar o segundo semestre letivo, após as férias.
Na Unicamp, porém, uma agitação bem maior já vinha
tomando conta de faculdades e institutos. Intensidades à parte, os dois
cenários estão interligados. Viviane é cega e ingressou,
em março deste ano, no curso de Pedagogia. Uma vitória conquistada
justamente num período em que a Universidade se engaja mais decisivamente
na luta pela inclusão e permanência de alunos portadores de deficiências. As
iniciativas partem de unidades diferenciadas, como o Centro de Estudos e Pesquisas
em Reabilitação Professor Dr. Gabriel Porto (Cepre)
e Serviço de Visão Subnormal, ambos da Faculdade de Ciências
Médicas; Serviço de Fisioterapia e Terapia Ocupacional, do Hospital
de Clínicas; departamentos de Computação e Automação
Industrial e de Engenharia Biomédica, os dois da Faculdade de Engenharia
Elétrica e de Computação; coordenadorias do Curso de Pedagogia
e Licenciatura, Grupo de Pesquisa, Pensamento e Linguagem, e Laboratório
de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diversidade (Leped), da Faculdade de Educação.
Juntas,
estas iniciativas valorizam a Unicamp no ranking das instituições
de ensino superior brasileiras preocupadas em não apenas cumprir a atual
legislação escolar, mas em efetivamente desempenhar uma ação
de cidadania. Uma postura que ganha ainda mais importância tendo em vista
a proximidade das inscrições para o vestibular 2002, daqui a algumas
semanas. E uma atitude que, na verdade, está em consonância com um
súbito aumento da demanda de vestibulandos portadores de necessidades especiais,
verificado recentemente. Considerando-se a partir de 1994, quando a Comissão
Permanente para o Vestibular da Unicamp (Comvest) passou a ter um controle mais
detalhado sobre o assunto, a média de inscritos nessa categoria se manteve
em nove por ano, até 1999. De repente, nos dois últimos vestibulares
(2000 e 2001), o número simplesmente triplicou, com 18 inscritos em cada
ano (veja quadro). Mesmo em 99, já se evidenciava o salto na procura, com
12 inscrições de portadores de deficiências. No
entanto, a média de aprovados continua baixa, um pouco acima de três
a cada vestibular. E a de matriculados, menor ainda: somente um. Com o agravante
de casos como o registrado em 1997, quando uma garota cega, matriculada em Ciências
Sociais, não continuou o curso por não ter obtido aproveitamento
no primeiro semestre. Eis uma estatística das mais cruéis,
resume Clara Germana de Sá Gonçalves Nascimento, coordenadora de
Pedagogia da FE. Por isso, nos sentimos confrontados com uma questão
séria e desafiadora: criar condições para garantir o desenvolvimento
acadêmico de alunos portadores de deficiências que já estão
na Unicamp e de outros que virão, em número cada vez maior, segundo
previsão que a Comvest nos apresentou, acrescenta. Políticas
institucionais Clara e Regina Maria de Sousa, coordenadora do Grupo
de Pesquisa, Pensamento e Linguagem, promoveram, na Unicamp, em 3 e 4 de maio,
o debate Estabelecimento de políticas institucionais para ingresso e permanência
de pessoas com necessidades especiais. O evento contou com a presença do
reitor, Hermano Tavares; do pró-reitor de Graduação, Angelo
Cortelazzo; da assessora da Secretaria de Educação Especial do MEC,
Marlene Gott, e de outros especialistas . Foram vários os objetivos.
O ponto de partida foi possibilitar uma maior socialização das informações
sobre as leis, portarias, recomendações e decretos governamentais
relacionados com a acessibilidade de pessoas portadoras de necessidades especiais
no ensino superior, diz Clara. A partir daí, buscamos promover
uma discussão crítica de tais documentos, das ações
que têm sido realizadas pelas instituições de ensino e daquelas
que ainda requerem ser consideradas. Lembrando que o debate atraiu representantes
de outras universidades, ela complementa: Tentamos ainda realizar um primeiro
exercício, mais coletivizado, de elaboração de propostas
e encaminhamentos de ações. Em
cumprimento à Lei de Diretrizes e Bases, a FE incluiu no seu projeto pedagógico
componentes curriculares que capacitam professores de educação básica
para a integração de alunos que necessitam de atenção
especial. É, inclusive, a única faculdade pública do país
a oferecer, gratuitamente, e dentro do curso de Pedagogia, oficinas semestrais
de Libras (Língua Brasileira de Sinais). Oficinas ministradas por uma pedagoga
surda. Já formamos mais de 200 pessoas e, só no semestre passado,
matricularam-se 96, o que nos obrigou a ampliar a oferta, orgulha-se Clara. Ela
ressalta como relevante o fato de essas disciplinas especiais serem abertas não
só a professores da rede fundamental e alunos das licenciaturas, como a
pais de pessoas surdas e até portadores de deficiência auditiva,
notadamente da terceira idade, que passaram boa parte da vida limitados pelo não
domínio de um código eficiente de comunicação. O
debate não demorou a render resultados práticos. Ainda neste
mês lançaremos uma campanha itinerante de conscientização
da comunidade acadêmica, adianta Clara. Houve efeitos positivos inclusive
para a capacitação educacional voltada para outros tipos de deficiências.
Fiz um pedido oficial à Pró-Reitoria de Graduação
para a montagem de uma oficina Braille e já recebi o sinal verde; os equipamentos
serão de uso comum de toda a Universidade, conta. Continua
...
Sem
essa de super-herói | Voltemos
ao quarto de estudos de Viviane, a garota cega que está cursando Pedagogia
na Unicamp. Em meio a equipamentos especiais, como máquina de escrever
em Braille e computador interativo por estímulo vocal, há outros
objetos, mais prosaicos, mas que para ela simbolizam conquistas tão importantes
quanto entrar na universidade. Um teclado eletrônico que ela toca nos momentos
de descontração. Fotos. Muitas. Nelas, vemos Viviane em várias
fases de sua vida, praticando hipismo (a hipoterapia foi um tratamento importante
para ela), natação (domina as quatro modalidades) e balé. É
nesse quarto repleto de singelos troféus que ela conta sua história:
Eu nasci prematura, com seis meses de gestação, e tive que
ir pra incubadora. Foi quando, durante a fototerapia, houve um acidente que me
causou a chamada retinoplastia da pré-maturidade. Os pais, relata,
só conseguiram notar a cegueira quando ela tinha meio ano de idade. A
partir daí, recebi todo o apoio e estímulo imagináveis por
parte deles. Com 1 ano e 9 meses entrei na Escola Pró-Visão. Mas
acabei sendo alfabetizada, em Braille, na primeira série do Colégio
Batista, em sala comum. Viviane também passou por processo de reabilitação
no Cepre na adolescência, tendo recebido informações em recursos
educacionais, orientação e mobilidade e terapia ocupacional. Passar
na Unicamp foi apenas um de seus feitos escolares. No mesmo ano, prestou para
Psicologia na PUC de Campinas e também foi aprovada. Ainda em 2000, como
treineira, havia sido aprovada em Tecnologia Sanitária. Uma escalada que
anima a coordenadora de seu curso, Clara Germana, a considerá-la um
desafio que passou a enriquecer o nosso cotidiano. Viviane
não tem dúvidas de que as universidades realmente precisam
se mobilizar para garantir o acesso e a continuidade dos portadores de deficiências
em seu meio, pois hoje vivemos sob o signo da inclusão social em todos
os níveis e a tendência é isso se expandir cada vez mais.
Mas nem por isso deixa o realismo de lado. Ainda há muito preconceito.
As pessoas ditas normais tendem a nos ver de formas extremas: ou nos
isolam ou nos tratam como super-heróis. Os dois ângulos são
equivocados e não nos ajudam em nada, denuncia. Enquanto
fala, vai organizando o material para a volta às aulas. Com muita destreza.
Tudo bem, nada de super-heroísmo, como ela abomina. Apenas dignidade e
beleza.
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