Festa ou insurreição? Historiadora faz marxistas
torcerem o nariz ao falar sobre a Comuna de Paris
CARLOS
TIDEI epois
que Ernest Hemingway sentenciou que Paris é uma festa, a modernidade
parece ter se conformado de que tudo já estava dito sobre a chamada Cidade-Luz.
Mas, será que a síntese do genial e beberrão escritor norte-americano
acabaria por condenar a essa dimensão lúdica até os episódios
mais graves que crivaram a história da capital dos vanguardismos?
Teria, hoje, se degenerado em mera festa inclusive a memória
da Comuna de Paris, que diversas correntes de esquerda ainda consideram uma das
mais originais experiências da luta operária no mundo? Pois, passados
130 anos daquela insurreição relâmpago (resistiu apenas 72
dias, entre 18 de março e 28 de maio de 1871), foi exatamente essa conotação
que ecoou no auditório do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH) da Unicamp, pela voz da historiadora francesa Danielle Tartakowsky. Pesquisadora
da Universidade de Sorbonne e especialista em manifestações das
ruas parisienses, ela abriu, com a conferência A Historiografia da Comuna
de Paris, o evento internacional 130 anos da Comuna de Paris (1871-2001), promovido
pelo Centro de Estudos Marxistas (Cemarx), do IFCH, em parceria com a Coordenadoria
de Desenvolvimento Cultural/Preac-Unicamp, Secretaria de Cultura de Campinas e
outras entidades. Costuma-se
classificar a Comuna de Paris como a primeira insurreição comunista
do mundo, que teria sido inspirada diretamente pela Associação Internacional
de Trabalhadores. Ou a 1ª Internacional, criada por Karl Marx e Michael Bakunin.
Isso, em 1864, quando ainda era possível a parceria entre o pensador alemão
que passou à história como o pai do socialismo científico
e o russo invocado que defendeu até a morte o socialismo libertário. Numa
brecha na desorganização sócio-política que dominou
a França depois de sua derrota para a Prússia, socialistas franceses
e revolucionários de muitos outros naipes deflagraram uma explosiva revolta,
com adesão das camadas populares parisienses, objetivando tomar o poder
na capital e torná-la o epicentro de uma sociedade igualitária.
No entanto, o sonho acabou destroçado violentamente pelo Exército
de Versalles, com o consentimento da Prússia, cujas forças ainda
ocupavam a França. Declínio
das idéias Em sua exposição, porém, a professora
da Sorbonne começou ressalvando: Os novos estudos consagrados sobre
a Comuna, dos quais falarei, não são mais condicionados pela urgência
política; eles detêm raízes nas questões médias
da historiografia francesa, que eu poderia caracterizar, muito rapidamente, por
aquilo que chamo de declínio da história das idéias.
E continua: É possível que fosse preciso que a memória
viva se apagasse para que surgisse uma historiografia. Portanto, trata-se de uma
verdadeira reviravolta historiográfica. Os
estudos consagrados a que a pesquisadora se refere são de autores
que, numa medida ou noutra, emanaram posições revisionistas acerca
da Comuna. Principalmente Jacques Rougerie (Procés des Communards - Paris,
Editora Giliard, 1964), R. V. Gould (Insurgent identidies: class, community and
protest in Paris from 1848 to the Commune, Editora Chicago-University Press, 1995)
e Robert Tombs (Le communux dans la ville: des analyses recéntes à
létranger, Revista Le Mouvement Social nº 179, 1997). Com
base nesses textos e em suas próprias pesquisas, Danielle mostrou-se partidária
da visão da Comuna muito mais como uma tentativa do povo de Paris
de retomar uma cidade. Povo que tinha sido alijado pelas grandes
obras de Georges-Eugène Haussmann, o administrador nomeado prefeito por
Napoleão III e que remodelou a capital, ao longo de 17 anos, com a colaboração
dos melhores arquitetos e engenheiros franceses. Daí nasceram, por exemplo,
os boulevards. Belas avenidas, que hoje constituem uma das maiores atrações
turísticas da cidade. Mas largas o suficiente para dificultar a montagem
das barricadas dos anos insurgentes. Houve
segregação social em virtude das reformas urbanas, de modo que a
Comuna representava uma reconquista da cidade. E, a partir daí, se desenvolve
o tema da revolução popular como festa, disse a especialista
francesa, realçando a palavrinha que teve o poder de provocar visíveis
torções de nariz entre os marxistas da platéia. Elevando
a temperatura da polêmica, ela lembrou a conclusão de Rougerie, de
que a Comuna se inscreveria mais como a última das insurreições
do século 19, sendo, portanto, um crepúsculo e não
uma aurora. A Paris de 1871 que Danielle revisitou seria um lugar
de socialização específica e politização precoce.
E que esteve na origem de uma verdadeira ética popular, uma moral do trabalho,
para a qual o adversário é quem vivia do ócio, muito mais
do que o capitalista. Era
dos genocídios A pesquisadora acredita que toda a historiografia
pós-Rougerie mostraria que a Comuna desempenhou um papel decisivo muito
mais na construção republicana na França do que na construção
socialista. O próprio autor, segundo ela, descreve que a Comuna se
quer inseparavelmente democrática, social e republicana. A grande maioria
dos communards esperava a República, não apenas porque a forma republicana
antecedia uma democracia social, mas porque, para eles, a República era
consubstancialmente democrática e social. Para
reforçar, ela citou o trabalho recente de um aluno seu, baseado nos arquivos
do Banco da França: Há o dia-a-dia das negociações
entre os delegados da Comuna e os representantes do Banco da França, e
se vê que são negociações afinal amigáveis,
de uma parte e de outra. Os communards obtêm aquilo que pedem e não
pedem mais. Uma atitude que demonstraria o apego à república
social, pois utilizar os meios do Banco da França seria impedir
o pagamento da indenização de guerra a Bismarck e, portanto, apunhalar
a República. Tombs,
segundo ela, aprofunda a concepção de que a violência
republicana do Exército de Versalles exorcizou a violência revolucionária.
Assim, a Semana Sangrenta como passou à história o período
da última e inglória resistência dos communards teria
sido o Massacre Inaugural, necessário para a consolidação
do regime republicano na França. O efeito perverso da Comuna teria
sido permitir a naturalização da república conservadora,
à medida que os republicanos de Versalles mostraram-se capazes de colocar
fim a revoltas populares, tais como as que se sucederam ao longo do século
19, declarou Danielle. Ainda citando Tombs, ela frisou: Estamos diante
da primeira barbárie moderna. Fim das revoluções do século
19, mas o primeiro sinal da era moderna dos genocídios. O
massacre da Comuna dá credibilidade aos republicanos diante dos olhos dos
conservadores. Isso tem efeito sobre a esquerda revolucionária. A esquerda
não só é dizimada pelas mortes, deportações
e exílios, como passa por uma transformação irreversível.
A partir desse momento, na França, a insurreição se torna
um fantasma. Uma lenda heróica e, portanto, um possível momento
de comemoração, mas deixa de ser um método político,
conclui a historiadora. Veja
os artigos >>
Eco do século 18 ou prenúncio
do século 20? >> Insurreição
e governo operário >> Um
governo socialista?
|