Artigo
Inovação nas
multinacionais no Brasil
SÉRGIO QUEIROZ
Nos anos recentes tem sido muito alardeado o fato de que, no Brasil, é fraco o engajamento das empresas em atividades tecnológicas, particularmente em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Em contraste com o observado em outros países, são as universidades, e não as empresas, que respondem pela maior parte do gasto em P&D e que empregam cientistas e engenheiros em maior número.
Dados de pesquisas de inovação realizadas recentemente, como a Pesquisa Industrial Inovação Tecnológica - Pintec (IBGE) e a Pesquisa da Atividade Econômica Paulista - Paep (Seade), corroboram esse quadro ao mostrar que apenas 14% das empresas inovadoras realizaram P&D contínuos em 2000 (4,4% do total de empresas industriais da Pintec). Ou que apenas 180 empresas industriais empregavam mais de 10 empregados de nível superior em atividades permanentes de P&D no final dos 90 (Seade).
Isto tem sido considerado um dos motivos de se observar no Brasil uma baixa produtividade tecnológica medida, por exemplo, pelo número de patentes registradas nos EUA , em que pese uma produção científica razoavelmente elevada para um país em desenvolvimento.
Mas por que esta baixa atividade de P&D nas empresas?
Diversas razões têm sido aventadas para explicar esta situação. Primeiramente, deve-se ter em conta de que é pequena a participação dos setores intensivos em tecnologia na estrutura industrial e de serviços. Casos como o da Embraer são muito mais a exceção do que a regra. Sendo grande o peso de setores de baixa intensidade tecnológica na economia, a demanda por atividades de P&D fica evidentemente reduzida.
Alguns analistas têm também chamado a atenção para o fato de que as condições de competição pouco isonômicas ainda prevalecentes na economia brasileira são outro fator limitante das atividades tecnológicas. De fato, parece não fazer muito sentido realizar um grande esforço técnico para obter um determinado ganho de custo ou de qualidade quando outras medidas, de natureza fiscal, por exemplo, propiciariam um diferencial competitivo muito maior. Situações como a da guerra fiscal entre os Estados estariam fazendo com que as empresas tenham muito maior retorno com a contratação de advogados tributaristas do que com a de cientistas e engenheiros.
Outro motivo tradicionalmente invocado para explicar o baixo envolvimento das empresas com P&D é a forte internacionalização da economia brasileira. O argumento é que as firmas multinacionais, com significativo peso na produção industrial e de serviços, seriam essencialmente importadoras de tecnologia desenvolvida em suas matrizes, não demandando assim a realização de maiores esforços de P&D localmente.
Desta última razão convém um exame mais detalhado. É verdade que as empresas multinacionais concentram fortemente suas atividades de P&D em algumas poucas unidades, normalmente localizadas nos países de origem. Mas também é verdade que essas firmas estão mais e mais propensas a intensificar suas atividades tecnológicas no exterior, fenômeno tratado por uma crescente e já vasta literatura relativa à internacionalização da tecnologia. A exemplo de outras funções corporativas como vendas e produção, também a tecnologia vai sendo progressivamente globalizada pela grande empresa internacional. E embora o principal destino dos investimentos em P&D no exterior sejam os países desenvolvidos, a ponto do fenômeno ter sido tratado mais como “triadização” do que internacionalização por alguns autores, alguns países em desenvolvimento, como Índia e China principalmente, também têm sido contemplados pelas firmas multinacionais.
Recentemente, algumas das conseqüências desse processo de internacionalização de atividades de alto valor adicionado tecnologia entre elas começaram a se tornar visíveis para um público mais amplo. Nos EUA o debate político já incorporou como tema a externalização das atividades de manufatura e de serviços promovida pelas firmas americanas e suas implicações para o futuro do país, especialmente no que diz respeito ao emprego. De um lado, estão os que vêem o chamado offshoring como parte de um processo natural de busca de maior eficiência, cuja conseqüência acabará sendo uma maior competitividade das empresas, com reflexos positivos sobre a economia americana no longo prazo. De outro, estão aqueles que observam consternados a migração de empregos qualificados e de altos salários para países como a Índia. Quando eram transferidos para o exterior empregos na manufatura ou nos serviços de baixo valor não havia tanta preocupação. A diferença agora é que serviços de alto valor, como os das atividades de P&D, também se tornam alvo do offshoring.
China e Índia estão despontando como importantes receptores de investimentos estrangeiros em tecnologia. Na China as firmas multinacionais já contam com mais de cem centros de P&D instalados e de acordo com um funcionário do Ministério de Comércio Exterior e Cooperação Econômica (MOFTEC), “o número de instituições de P&D estabelecidas por multinacionais na China irá dobrar nos próximos cinco anos”.
Um exemplo ilustrativo do fenômeno é o estabelecimento da unidade de pesquisa do Bell Labs em Beijing. De acordo com o comunicado de inauguração, em março de 2000, “... é a primeira vez na história do Bell Labs que a empresa estabelece um laboratório de pesquisa fora dos EUA. Este laboratório será um centro de excelência técnica e de inovação com a herança do Bell Labs Research. Será para conduzir pesquisa básica nas áreas de rede de dados, software, comunicação, redes óticas, ciência da computação, matemática aplicada, entre outras”.
A Índia não fica atrás. Das aproximadamente cem unidades de P&D de multinacionais existentes no país em fevereiro de 2003, mais de 70, incluindo a Delphi, Eli Lilly, Hewlett-Packard, Heinz, Honeywell e DaimlerChrysler, foram estabelecidas nos últimos cinco anos.
Embora a maioria dessas unidades esteja voltada para tarefas relativamente simples de desenvolvimento, a Índia também possui centros globais de empresas estrangeiras conduzindo atividades mais sofisticadas. Este é o caso, por exemplo, do centro de P&D da General Electric (GE) em Bangalore, o maior complexo de pesquisa da empresa fora dos EUA, que emprega mais de 1.600 funcionários, incluindo 1.100 técnicos especializados (destes, 31% são doutores e 44%, mestres). O centro destina 20% de seus recursos para pesquisa básica na área de nanotecnologia, entre outras. Outro exemplo é o centro de pesquisa da empresa farmacêutica Eli Lilly em Delhi, o maior na Ásia e o terceiro maior no mundo (depois dos EUA e Canadá).
E quanto ao Brasil?
Ainda que as multinacionais, como se comentou acima, sejam muitas vezes apontadas como uma das razões para a incipiência da P&D realizada nas empresas, outro fato que desponta das pesquisas de inovação recentes é que o esforço tecnológico das firmas estrangeiras é, em média, mais intenso do que o das firmas nacionais. Embora o Brasil não tenha atraído nos últimos anos a mesma atenção dedicada à China ou à Índia, o país tem sido receptor de investimento direto externo de longa data e muitas empresas multinacionais aqui estabelecidas vieram acumulando lenta e continuamente um significativo conjunto de competências tecnológicas.
O caso do setor automobilístico é bastante ilustrativo. As principais montadoras de automóveis do país, subsidiárias de multinacionais, percorreram claramente uma trajetória técnica evolutiva. Primeiro, adquiriram a capacidade de adaptar para as condições brasileiras os modelos projetados no exterior, a chamada “tropicalização” dos veículos. Em seguida, passaram a projetar derivativos locais a partir dos modelos básicos trazidos de fora. Assim nasceram as versões Sedan e Picape de diversos automóveis originalmente desenhados apenas em suas versões Hatchback. Finalmente, algumas dessas montadoras se tornaram capazes de conceber veículos completos.
Um exemplo notável é o caso da minivan Meriva, da General Motors do Brasil (GMB). O conceito foi proposto pela GMB e aceito pela corporação como um derivativo global do novo Corsa. Pela primeira vez na história da companhia, o Brasil foi a base do desenvolvimento de um projeto de veículo, de modo que a GMB assumiu a responsabilidade pela coordenação de todos os seus estágios. Como resultado, o carro foi lançado primeiramente no Brasil e só depois na Europa, invertendo (também pela primeira vez) a seqüência tradicional.
Outro exemplo muito interessante é o do projeto Tupi da Volkswagen do Brasil, que deu origem ao recém lançado Fox. O carro, desenhado com base na plataforma do Pólo, foi concebido não apenas para o mercado brasileiro, ou mesmo para outros mercados emergentes, mas também para os segmentos de base de mercados mais sofisticados como o europeu, para o qual será exportado a partir de 2005. Com isso, a filial brasileira da Volkswagen qualifica-se para a posição de desenvolvedora e produtora de modelos de entrada (entry-level) para o conjunto da corporação.
Desse modo, levando em consideração a grande participação das multinacionais na economia brasileira, sua expressiva acumulação de competências tecnológicas em alguns setores e a orientação cada vez mais nítida das corporações de ampliar as atividades de P&D no exterior, inclusive para países em desenvolvimento, é razoável concluir que essas empresas podem vir a desempenhar um papel ainda mais importante em nosso sistema de inovação. Elas podem e devem contribuir bem mais do que já fazem para mudar a situação de baixa produtividade tecnológica no Brasil, acima apontada.
Para isto, é também importante reconhecer a importância das políticas públicas. China e Índia mais uma vez vale invocá-las como exemplos buscam ativamente tirar proveito das tendências internacionais. A primeira, em especial, utiliza habilmente sua capacidade de atrair investimentos estrangeiros para alavancar seu acesso à tecnologia de várias maneiras. Em primeiro lugar, a China é seletiva quanto ao que as multinacionais devem produzir, dando prioridade aos projetos de alta tecnologia. O governo favorece o investimento estrangeiro com a condição de que as tecnologias mais sofisticadas sejam transferidas para o país. Segundo, a China vincula investimento em manufatura com investimento em atividades tecnológicas. As firmas estrangeiras interessadas em se estabelecer no país são bem-vindas, mas em muitos casos são encorajadas a estabelecer unidades de P&D simultaneamente. Assim, políticas comerciais, tecnológicas e poder de compra do Estado são coordenados com a aprovação dos investimentos diretos externos com o objetivo de aumentar as capacidades tecnológicas locais.
Fica, portanto, uma tarefa relevante para a agenda política do governo: a de articular as políticas voltadas para o desenvolvimento tecnológico do país com as medidas de atração de investimentos estrangeiros, de modo a incorporar com mais vigor a empresa multinacional no papel de agente do sistema nacional de inovação.
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Sérgio Queiroz é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp.