Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 263 - de 23 a 29 de agosto de 2004
Leia nessa edição
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Feijão caseiro. Em cinco
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A liberdade de
expressão está em risco?

CLAYTON LEVY e EUSTÁQUIO GOMES


Luiz Inácio Lula da Silva concede entrevista após visitar seqüestradores do empresário Abílio Diniz, no Hospital das Clínicas de São Paulo, em 15 de dezembro de 1998: do assédio da imprensa ao endosso de proposta polêmica (Foto: Leonardo Colosso / Folha Imagem)Ao longo das últimas duas semanas o governo Lula, eleito dentro de um contexto democrático, foi colocado sob uma suspeição inusitada: o de que estaria se deixando levar pela “tentação autoritária”. A pedra de toque foi o anteprojeto para a criação de um Conselho Federal de Jornalismo, nos moldes dos conselhos já existentes para as categorias de profissionais liberais como médicos e advogados. A grita foi geral: interpretou-se a medida como uma tentativa de controle da mídia e da liberdade de informação, com o risco adicional de que a tarefa possa vir a ser confiada a um braço sindical do governo. O governo se defende com o argumento de que “a sociedade tem o direito à informação prestada com qualidade, correção e precisão, baseada em apuração ética dos fatos”, conforme exposição do ministro do Trabalho, Ricardo Berzoini.

Outros sintomas de “dirigismo” governamental foram evocados, como a tentativa de expulsão do jornalista do The New York Times em maio passado, o anteprojeto de lei que cria a Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual (Ancinav), o decreto que pretende proibir funcionários públicos de dar informações à imprensa, a tentativa de limitar o alcance da ação do Ministério Público e, por último, o decreto que permitiria ao governo, sem autorização adicional da Justiça, disseminar em suas instâncias executivas informações sobre pessoas físicas e jurídicas cujo sigilo fiscal, bancário e telefônico for quebrado.

Nesta e nas duas páginas seguintes, os professores Francisco de Oliveira (USP), Fábio Wanderley Reis (UFMG), Roberto Romano e Reginaldo Moraes, ambos do IFCH/Unicamp, na esteira dos desdobramentos da polêmica, avaliam as intenções do governo.

Jornal da Unicamp – Segundo os críticos dessas medidas, o que está por trás do “pacote regulador” do governo é um esforço de apropriação da informação pública. Ou seja, o governo gostaria de controlar a qualidade da informação que chega à sociedade e, ao mesmo tempo, ter acesso livre e privilegiado a informações sigilosas sobre os cidadãos. Como o senhor analisa essa postura? O senhor vê nisso algum risco ou os críticos estão vendo fantasmas?

Fábio Wanderley Reis – Creio que “algum risco” certamente existe. Acho negativo sobretudo o fato de termos simultaneamente várias iniciativas, o que lhes dá o caráter de “pacote” de que fala a pergunta, e as origens do PT (e mesmo algumas experiências de governo, como eventos ocorridos, por exemplo, na seleção de professores durante o governo de Olívio Dutra no Rio Grande do Sul) permitem supor que setores do partido se apeguem a uma perspectiva ideológica sectária e de fraco compromisso com os princípios da democracia liberal e das liberdades civis.

Francisco de Oliveira – Não acho que os críticos estejam vendo fantasmas. Acho que os críticos estão apenas incidindo que isso é uma característica do governo Lula. Na verdade, a coisa é mais grave. Os Estados da periferia do capitalismo estão condenados a ser Estados de exceção. São Estados pré-totalitários. Para agüentar o rojão da globalização desenfreada, eles tentam conter e controlar todos os limites da sociedade e da economia. Isso leva à banalização do instituto da Medida Provisória. Qualquer crise na periferia torna-se urgente e o Estado, então, utiliza esses mecanismos de exceção. No caso da informação, é o que está se apresentando.

Reginaldo Moraes – As palavras não são inocentes. Apropriação da informação pública? Quem se apropria? E quem é expropriado? De quem é, hoje, essa informação que se diz “pública”? Nesse campo, como diz o ditado, manda quem pode, obedece quem tem juízo. Qualquer jornalista que se aventurou a ter alguma idéia na cabeça – e que não correspondesse àquela de seu patrão – sabe do que estamos falando.

Será que temos mesmo dirigismo governamental, com a criação desse conselho? Engraçado é ver um detalhe desse projeto de lei enviado ao Congresso – e que não foi iniciativa do governo, mas da Federação dos Jornalistas, há vários anos. Ele disciplina a composição do Conselho. E ele... não tem representantes do governo. Detalhe singelo. A liberdade de imprensa atualmente em uso permite, por exemplo, que centenas de páginas e horas de transmissão de rádio e tevê tenham sido produzidas por esse assunto sem que certas pequenas coisas tenham sequer sido mencionadas. Por exemplo, essa, que os conselheiros serão eleitos entre todos os jornalistas profissionais. Não serão nomeados pelo governo.

Curiosamente, também, sequer notícia breve se registrou sobre o fato de que o Congresso Nacional de Jornalistas, recém-realizado na Paraíba, apoiou unanimemente o envio do projeto de lei. TVs, jornalões e rádios não deram essa notícia, nem para dizer que esses jornalistas são doidos: melhor não dizer, não é mesmo?

Os críticos não estão vendo fantasmas, não. Eles estão muito lúcidos. Estão atirando naquilo que vêem. Mas querem que pensemos que atiram em outra coisa. A “informação que chega à sociedade” não “chega” – é levada por alguém. Alguém que quer permanecer na sombra.

Roberto Romano – Tenho uma posição antiga sobre o tema. Em dois livros (O Caldeirão de Medéia e O Desafio do Islã) trato da situação contraditória seguinte: quanto mais os governos tornam-se opacos para os cidadãos, mais a cidadania é submetida às lentes dos administradores e perde condições de se defender da espionagem (CIA ou Abin, pouco importa o nome), da Receita Federal, etc. Esse problema é antigo e tem a idade do próprio Estado moderno. Todos os debates internacionais de hoje, no mundo acadêmico e político, sobre a razão de Estado, o encaram. Assim, o nosso governo de hoje nem é original. Ele retoma a prática de controlar os cidadãos para obter o monopólio das informações, com o uso de seus “quadros” em organismos para-estatais, como a Federação de Jornalistas, etc.

Quando governos querem o monopólio das notícias e das análises, eles deixam o terreno do jornalismo e penetram o campo da propaganda. Para os teóricos nazistas e todos os demais doutrinadores autoritários de “esquerda” ou “direita”, a liberdade, a democracia, os direitos são apenas relativos, jamais absolutos. É um modo de afirmar que a liberdade de imprensa, os direitos dos indivíduos, e tudo o que é mais sagrado na vida ética e moral, são relativos aos direitos do governo.

Os atuais dirigentes brasileiros herdaram uma visão instrumental das instituições e das prerrogativas jurídicas. Devem ser preservadas, no seu entender, apenas as formas que permitem aos partidos políticos a permanência nos palácios. Sua idéia sobre o mundo estatal enquadra-se perfeitamente nas figurações coletivistas do século 19 e 20. Elas estão longe de serem adequadas ao Estado democrático de direito. As investidas do atual chefe da Casa Civil, do ministro do Trabalho, do ministro encarregado pela Comunicação e, o mais espantoso, do próprio ministro da Justiça contra a imprensa ecoam perfeitamente as palavras emitidas em 1985 pelo então candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sobre as liberdades: “Acho que a liberdade individual está subordinada à liberdade coletiva. Na medida em que você cria parâmetros aceitos pela coletividade, o individualismo desaparece. Ou seja, não há razão para a defesa da liberdade individual. O que você precisa é criar mecanismos para que a grande maioria da comunidade possa participar das decisões” (Folha de São Paulo, 29/12/1985). As últimas medidas anunciadas pelo governo são “mecanismos” supostamente para garantir a palavra à sociedade, mas de fato dirigidas para impor teses favoráveis aos ocupantes ocasionais do governo. Todo um programa é agora implantado sine ira et studio, numa ideologia que se corporifica em atos normativos e reguladores. Fantasmas ?

Gostaria de lembrar que o escrito mais lúcido e alerta sobre os golpes de Estado, na literatura mundial, começa com as advertências de um fantasma. Refiro-me ao Hamlet de Shakespeare. O desenrolar da peça evidencia que mais fantasmagórica era a “realidade” do golpe de Estado. Este último não precisa ser cruento ou militar. Ele pode surgir como eficaz veneno, imperceptível para a opinião pública. Recordo também as análises de pesquisadores ligados à “Escola de Frankfurt” sobre a maneira pela qual os nazistas se apoderaram da imprensa alemã: compravam um jornal, mantinham a diagramação e introduziam paulatina e cautelosamente novos conteúdos, os almejados pelo partido. E grande parte dos leitores não percebeu a mudança. É o mesmo que se passa com as medidas “disciplinares” do governo brasileiro em relação à imprensa. As doses são homeopáticas mas o alvo é ampliar o monopólio do governo no mundo cultural. Quando ocorrem processos dessa natureza, o despertar é amargo. É preciso notar a técnica usada pelos partidários do governo (incluindo a Federação dos Jornalistas): repetir sempre a mesma tecla e atacar as pessoas que se recusam submissão aos ditames da hora. Tais métodos são fascistas e devem ser rechaçados enquanto é tempo.

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Colaborou Álvaro Kassab

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