LUIZ
SUGIMOTO
Físico
com certa queda para biólogo, o professor Marcus Aloizio
Martinez de Aguiar, do Instituto de Física Gleb Wataghin
(IFGW) da Unicamp, está entre os autores do artigo em destaque
na edição de 16 de julho da revista Nature por alimentar
a discussão em torno dos mecanismos que levam à formação
de novas espécies – a especiação. “Acho fascinante
o tema da dinâmica das populações e a teoria da evolução.
A própria existência de espécies, onde indivíduos se
agrupam e não se reproduzem com indivíduos de outro grupo,
já é algo misterioso. Sempre me perguntei por que não
existe um continuum genético”.
Marcus Aguiar assina o artigo juntamente com a aluna de
doutorado Elizabeth Machado Baptestini e três colaboradores
dos Estados Unidos: Yaneer Bar-Yam (New England Complex
Systems Institute), Michel Baranger (Massachusetts Institute
of Technology, MIT) e Les Kaufman (Boston University). Os
autores apresentam um modelo que simula a formação de
novas espécies a partir de uma população de indivíduos
inicialmente idênticos e distribuídos no espaço, com
a diferenciação se dando através de mutações e do acasalamento
seletivo.
O docente da Unicamp explica que os biólogos ainda não
se convenceram de que sejam possíveis outros mecanismos
de especiação além do alopátrico, que é o mais aceito. “O
processo de especiação alopátrica baseia-se no isolamento
geográfico, em que uma população é dividida pelo surgimento
de obstáculos como rios ou montanhas. Não havendo mais reprodução
entre indivíduos dos dois grupos, interrompe-se o fluxo
genético. Ambos vão sofrendo mutações ao longo do tempo,
até a incompatibilidade genética tornar impossível a reprodução
entre eles, criando-se duas espécies”.
Entretanto, Marcus Aguiar vê pouca sustentabilidade na
tese de que a especiação alopátrica seja única, haja vista
a estimativa de que existem entre 10 milhões e 100 milhões
de espécies no planeta. “A história evolutiva mostra que
as espécies são instáveis: algumas se ramificam, outras
desaparecem, em movimento constante. Como vivemos numa escala
de tempo muito pequena, achamos que está tudo no seu lugar.
Penso que a especiação acontece a toda hora e de maneira
fácil e espontânea”.
O pesquisador afirma que vem crescendo o número de evidências
de especiação simpátrica, na qual novas espécies aparecem
sem que haja isolamento geográfico, citando o exemplo das
centenas de espécies de peixes ciclídeos encontrados no
lago africano Vitória. “Estudos indicam que o lago foi colonizado
por uma única espécie ancestral, que teria vivido há cerca
de 1 milhão de anos. No lago não existem barreiras, mas
como ele é grande, os peixes foram se espalhando e acasalando
seletivamente. Considerando que o fluxo genético de um ponto
a outro do lago pode demorar várias gerações, acreditamos
que ali o isolamento por distância teria sido o mecanismo
de especiação”.
Uma espécie de pássaros em Camarões, também na África,
pode ser um caso de especiação simpátrica em curso. Esses
pássaros colocam seus ovos nos ninhos de outras espécies
que, por sua vez, tornam-se pais adotivos dos filhotes.
Quando adultos, os filhotes já incorporaram características
da outra espécie, como padrão de canto e outros hábitos.
Embora esses novos pássaros ainda possam acasalar entre
si, já surgiram diferentes raças e as fêmeas, para reproduzir,
preferem machos com o mesmo padrão de canto que elas emitem.
O professor do IFGW está particularmente interessando em
estudar pássaros da Amazônia, que possui enorme diversidade
de espécies, ainda que numa floresta praticamente contínua,
sem obstáculos importantes. “Há a teoria de que na última
era glacial a região secou e foi reduzida a trechos isolados
de floresta, com a consequente diferenciação de espécies.
No entanto, o biólogo canadense Paul Colinvaux mostrou que
a floresta, apesar das mudanças climáticas bruscas, permaneceu
contínua e verde, o que contrariaria a tese de especiação
alopátrica na Amazônia”.
Marcus Aguiar ressalta que a proposta deste grupo de pesquisadores
é demonstrar a existência de outro mecanismo de formação
de novas espécies, e não desacreditar a versão mais corrente.
“A especiação alopátrica seguramente ocorreu em diversos
momentos, mas não achamos possível que seja o único processo.
Por outro lado, acreditamos que a especiação simpátrica
não é tão rara como se pensa. Entender a diversidade do
planeta é um problema ainda em aberto e que desperta muito
interesse”.
A simulação
O modelo desenvolvido pelo grupo traz a novidade de se basear
apenas na auto-organização da população em conjuntos que
se formam principalmente por conta do acasalamento seletivo.
Ao contrário de outros modelos atuais de especiação simpátrica,
esta simulação não envolve suposições ecológicas como a
segregação pela adaptação a determinados nichos ou a disponibilidade
de alimentos.
Segundo Aguiar, o que se monitorou foi a evolução de uma
população cujos membros são inicialmente distribuídos de
maneira uniforme no espaço e possuem genomas idênticos.
“Julgamos que os ingredientes fundamentais para o acasalamento
são a distância espacial (S) e a distância genética (G).
A hipótese é de que, para reproduzir, o indivíduo escolhe
um parceiro mais próximo (a uma distância espacial inferior
a S) e que reconheça como da mesma espécie (distância genética
inferior a G)”.
Sem entrar em tantos detalhes do modelo, como os descritos
na Nature, os resultados apontam que os valores de S e G
podem fazer com que uma população homogênea se divida em
grupos espacial e geneticamente isolados. “Simulando uma
reprodução sexuada com crossover, escolhemos um ponto arbitrário
no genoma dos pais para promover a troca de genes entre
os dois indivíduos e construir o genoma do filho; em seguida
permitimos a mutação dos genes e a dispersão do filho. O
resultado é o aparecimento de conjuntos de indivíduos que
vão se separando geneticamente da população principal. No
entanto, existem situações em que não ocorre a especiação,
particularmente quando os valores de S e G são muito grandes”.
Anel do Tibete
Uma ocorrência deste tipo de especiação tratada no modelo
é o “anel de espécies” do Planalto Tibetano, formado por
grupos de pássaros Phylloscopus trochiloides, em que as
diferenças genéticas são progressivas ao longo da cadeia
de indivíduos. Isto faz com que aqueles localizados nos
extremos sejam diferentes a ponto de não poderem mais se
acasalar com indivíduos da população original. A justificativa
é que na última era glacial, quando a Sibéria se dividiu
em pequenos focos de floresta, essas aves ficaram confinadas
ao sul da área em que viviam anteriormente. Reconstituída
a floresta, elas seguiram para o norte circundando o platô
pelo oeste e pelo leste.
Marcus Aguiar abre no computador uma imagem colorida que
retrata a ocupação do espaço e as mudanças graduais nos
padrões de canto dos grupos de pássaros do Tibete, conforme
foram dando a volta no platô. “Quando o canto é parecido,
eles ainda se reconhecem como da mesma espécie e a reprodução
é possível. À medida que se distanciam, os pássaros de um
extremo já não reproduzem com os do meio – porque o canto
ficou completamente diferente – mas o fazem com outros enquanto
avançam. No futuro, o anel poderá ser composto por espécies
totalmente distintas”.
O modelo ainda inclui um parâmetro Q, que é a probabilidade
de que um indivíduo não reproduza. Nesse caso, um vizinho
é escolhido para fazê-lo. Como nas populações naturais,
os melhores adaptados deixam mais descendentes. Na simulação,
a escolha de quem se reproduz ou não é aleatória, e o modelo
pode ser definido como “neutro”, sem seleção natural.
O professor da Unicamp acrescenta que o número de espécies
formadas e de indivíduos em cada espécie depende igualmente
dos parâmetros S e G. As curvas estatísticas mostram que
o número de espécies formadas e a abundância de seus indivíduos
variam bastante. “Os resultados que produzimos foram bastante
compatíveis com dados observados na natureza, explicitamente
sobre um conjunto de pássaros da Inglaterra e de árvores
no Panamá. A comparação pesou para que o nosso trabalho
ganhasse esse destaque na Nature”.
Sobre a seleção natural
O modelo elaborado pelo professor Marcus Aguiar
e seus colaboradores é tido como neutro porque não
inclui os efeitos da seleção natural, mas isto não
significa descrença no processo proposto por Darwin.
“A seleção natural é fundamental e deve começar
a agir logo que acontece a especiação. O comentário
favorável ao nosso trabalho é de que se trata de
uma contribuição importante para mostrar que o modelo
neutro de especiação é compatível com dados de abundância
encontrados na natureza”.
Aguiar afirma que um exemplo clássico de seleção
natural é a evolução das baleias, mamíferos que
vivem na água e precisam subir à superfície para
respirar. Seus ancestrais em terra buscaram o ambiente
marinho, certamente devido à abundância de alimentos
neste habitat. “A baleia era uma espécie de porco
que, ao longo da sua cadeia evolutiva, foi perdendo
as patas e ganhando um bico maior, a ponto de seu
nariz se deslocar para a parte superior da cabeça.
É um processo de especiação que implica na transformação
completa de uma espécie em outra, chamado de anagênese”.
O mecanismo abordado pelos autores do artigo na
Nature está relacionado com a cladogênese (de clado,
ramo), que é a divisão de uma espécie em outras.
“Nós, humanos, originamos de um ancestral que deu
origem também ao chimpanzé, gorila, orangotango.
Em nossas simulações, observamos uma espécie se
ramificando em duas ou mais. Dependendo dos parâmetros,
é possível gerar vinte espécies de uma só vez”.
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